Crítica
Ouvimos: Gossip, “Real power”
- Real power é o sexto disco da banda indie norte-americana Gossip, formada por Beth Ditto (voz), Nathan Howdeshell (guitarra, teclados, baixo, bateria eletrônica) e Hannah Blilie (bateria).
- É também o primeiro disco do grupo desde o retorno em 2019 – o anterior foi A joyful noise, de 2012. Entre 2016 e 2019, Beth Ditto montou uma linha de roupas, gravou solo (Fake sugar, de 2017) e ganhou papéis em filmes e séries.
- O disco tem produção de Rick Rubin. A gravação teve início em 2019 no estúdio caseiro de Rubin em Kauai, Havaí, mas foi interrompida por causa da pandemia. O grupo chegou a ter gravadas entre 30 e 40 músicas das sessões com Rick.
Você não ouvia um álbum novo do Gossip desde 2012 – e sempre é estranho observar como uma banda que ficou sem lançar nada por tanto tempo soa em meio a mudanças não apenas na música, como no mercado. Por sorte, o rock se tornou cada vez mais revisionista e menos dado a grandes inovações nos últimos tempos. E para facilitar, o Gossip já vinha se parecendo cada vez menos com aquela banda punk garageira dos primeiros tempos e adotando um som mais pop e dançante – uma metamorfose que às vezes dá saudade de discos como Movement (2003) e Standing in the way of control (2006), mais experimentais e mais dados ao diálogo baixo-voz-bateria típico das bandas influenciadíssimas pelo pós-punk.
Real power traz o grupo liderado por Beth Ditto trabalhando volta e meia numa zona cinzenta entre Clash, Fleetwood Mac e Blondie, na criação de melodias e arranjos. Por sinal, o grupo de Debbie Harry, justamente por fazer um som de gueto roqueiro e ter virado uma “coisa” pop, talvez seja o melhor ponto de comparação para se entender a nova fase do trio, hoje mais dado a fazer uma música fácil de ouvir e entender, do que a desafiar o ouvinte. Não custa dizer que o Gossip de 2024 (ou melhor, de 2019 a 2023, tempo necessário para gravar o álbum) corre o risco de lembrar um Paramore mais maldoso, e faz parte da mesma onda de bandas e artistas atuais que reveem a disco music com um design sonoro mais indie (Girl Ray, por exemplo).
Do comecinho do Gossip, quando a banda lembrava um Cramps com um pouco mais de consciência comercial, não há nada aqui. A cara da banda em 2024, que vem de uma evolução dos discos anteriores, é dada por sons felizes como o indie pop-rock Crazy again, a balada Light it up, a quase disco music Give it up for love, a sessentista fake Act of god (essa, com vocal realmente lembrando Debbie Harry) e a faixa-titulo, uma música que poderia estar no repertório da fase Bad girls de Donna Summer, aparentemente outra grande referência de Beth e do Gossip.
Já Turn the card slowly é pop-country demais até para os padrões dos desvios pop das bandas mais alternativas. Cuidado para não se assustar. Mas Real power tem pop-soul ruidoso e programado em Tell me something, batidões com guitarra em stacatto em Tough, e folk eletrônico e agridoce em Peace and quiet.
Nota: 7,5
Gravadora: Columbia/Sony
Crítica
Ouvimos: Afonso Antunes, “Filho único”
- Filho único é o primeiro álbum solo de Afonso Antunes, vocalista da banda Alpargatos. O álbum teve direção artística de Rômulo Fróes e produção de Mario Arruda, com colaborações de Nina Nicolaiewsky e Nego Joca. O álbum tem músicas mais antigas ao lado de canções feitas durante a gravação.
- “A narrativa do álbum é tecida por letras que abordam temas como a relação com o tempo, a ansiedade diante das possibilidades, o medo da morte e a certeza da vida”, diz o texto de lançamento.
- Além do trabalho como músico, Afonso é professor de português. Com o Alpargatos, ele já gravou três álbuns. “E não sou filho único”, diz no Instagram.
Durante o projeto de seu primeiro álbum solo, Filho único, o gaúcho Afonso Antunes contou com a mentoria de Romulo Froes. A presença do músico, cantor e compositor paulistano é clara no álbum, que apresenta experimentações com samba, canção pop, folk, lo-fi e coisas eletrônicas – um variedade que surge, às vezes, em poucos segundos de diferença.
Filho único, a faixa-título, é bossa-samba-eletrônico, com uma letra que parte de percepções que vão da infância à idade adulta (bom verso: “o leite derramado/quem bebeu?/não fui eu”). Bigorna parte de um samba eletrônico com levada soul para algo até bem próximo do pop gaúcho oitentista na letra. Se eu morresse amanhã é um samba-canção em tom sombrio, com percussão quase cardíaca, cuícas e samples de vozes dando o ritmo. Em cada porto tem seu ambiente introduzido por barulhos de barco ao mar, e prossegue como uma balada com cara blues, marcada pelo uso de cordas. E não é mais rio é um blues violeiro, com letra sobre amores e mudanças, ganhando mais peso e guitarras do meio para o final.
Na segunda metade do álbum, surgem os sons de rua e o tom pop de Porto Alegre 12:30, a delicadeza da balada contemplativa Tanta coisa, as constatações da balada jazzística e ruidosa Pelas seis, com Nina Nicolaiewsky (dos versos: “a TV me falou que é normal/um dia chove, no outro faz sol/um dia morre pro outro nascer/acho que vou desligar a TV”) e a MPB bedroom de Topografia, com voz, violão e ruídos, e letra voltando para o ciclo inicial do álbum, da linha do tempo começando na infância (“bem perto daquele menino que falava errado/e via tão certo”).
Nota: 8
Gravadora: Frase Records.
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Crítica
Ouvimos: Tomemitsu, “Dream 2”
- Dream 2 é o quinto álbum de Tomemitsu – ou melhor, Martin Tomemitsu Roark, um músico que faz “gravações bedroom direto de Echo Park, Califórnia” (ou “um artista de dream pop que cria melodias lo-fi e mid-fi, que vão do sonolento e nebuloso ao tropical e saltitante”).
- O novo álbum é definido pelo texto de lançamento como “possivelmente o LP mais sonhador de Tomemitsu, se não o mais diverso. Entre as influências do novo álbum, ele enumera. “Criadores como Thelonoius Monk, João Gilberto, Daniel Johnston, Brian Eno, Bill Withers, Arthur Russell… todos eles foram imediatamente inspiradores para mim”, diz.
Tem algo, vá lá, terapêutico no som de Tomemitsu, um músico que se dedica a fazer bedroom pop em seu próprio estúdio, sempre soando entre os anos 1970 e 1980, e quase sempre parecendo que compõe com um filme na cabeça, ou que faz música para a/o ouvinte fazer seu próprio filme do dia a dia. Ele se interessa por sonhos (o assunto ocupa uma parte boa do disco que, ora bolas, se chama Dream 2), por amores contemplativos e um tanto platônicos, por sensações (boas) do dia a dia, e por climas perto do que as redes sociais andam chamado de delulu (o bom e velho otimismo delirante). E o som do disco acompanha as escolhas das letras.
Quick enough abre o disco com algo de bossa nova na composição, e de new wave no design musical, destacando os teclados e a letra algo surrealista (“tenho pensado em levantar/sair, ir embora/socorro, não consigo levantar/porque, querida, estou colado na sua imagem”). A quase faixa-título Do you dream too?, uma conversa em que o personagem destaca o quanto os sonhos são importantes para ele (“você também sonha?” é uma pergunta feita com naturalidade ao longo da faixa, como quem pergunta as horas, soando como recado ) é pop adulto psicodélico em tom de “perdidos do horizonte” – e um clima que lembra a trilha do clássico soft porn Emmanuelle.
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Por aí já dá para ter uma ideia do universo embevecedor de Tomemitsu, que prossegue com folk contemplativo e fluido (A little light on you), city pop (Losing my mind), uma música que abre com ruídos e com um violão lembrando In the beggining, de Emerson, Lake and Palmer (Do you know?) e até power pop (Dream queen). Tem ainda o folk groovado e irônico de Health insurance (“tentei te contar sobre a minha dor/talvez tenha sido difícil ouvir em meio à chuva/você só se importou com meu seguro de saúde/por que você não se importa com minha sanidade?”).
De qualquer jeito, em Dream 2, quando você acha que o clima não poderia ficar mais amigável e tranquilo, Tomemitsu surge com Pizza with you, um som sintetizado, grudento e simpático, lembrando um The Cure convertido ao dream pop, e falando sobre como é legal comer pizza com alguém (“eu quero comer pizza com você/eu vou até o local/para pegar você e uma fatia/e encher a cara com um pouco de pizza”). Distração e escapismo pop encapsulados em 40 minutos.
Nota: 8,5
Gravadora: Friends Of Friends
Crítica
Ouvimos: Omni, “Souvenir”
- Souvenir é o quarto álbum do Omni, trio de Atlanta, Georgia, ligado ao pós-punk clássico. Entre as bandas preferidas deles estão REM, The Cure, Big Audio Dynamite, e “clássicos do college radio”. Na formação do trio hoje, Philip Frobos nos vocais e baixo, Frankie Broyles na guitarra e teclado, e Chris Yonker na bateria.
- O novo álbum é o segundo deles pela Sub Pop. O grupo tem influências dos anos 1970/1980 mas não se considera purista em nada “Nem sequer gravamos em tape ou algo assim. Mas gostamos de cair dentro de tudo e fazermos nós mesmos”, diz Frobos ao site Kiyi Music.
- Com Souvenir, Frobos, que foi bartender durante a pandemia, estreia como músico em tempo integral. “Nada de errado com isso também. Conheço músicos muito maiores do que a nossa banda que têm contrato com grandes gravadoras e trabalham em segundo emprego apenas para manter o dinheiro fluindo. Infelizmente, é disso que todos precisamos. Faça o seu melhor e mantenha suas expectativas sonhadoras, mas realistas. E não tenha medo”, aconselha.
Quase impossível não pensar numa versão mais robótica do Television ao ouvir o som do Omni. As referências são bem claras: além do grupo de Tom Verlaine, nomes como Talking Heads, The Cure, Gang Of Four, Devo, Buzzcocks e certa dose de The Clash batem ponto no som desse grupo da Georgia, promovendo uma fusão exatíssima de punk britânico e norte-americano, ambos setentistas e clássicos.
Em Souvenir, o quarto disco, o som do Omni ressurge filtrado pelo indie rock dos anos 2000, nos riffs ágeis de Exacto e Plastic pyramid – esta, com Izzy Glaudini, do Automatic, dialogando nos vocais, e um certo ar hard rock nos solos de guitarra. E pelos ritmos e andamentos inusitados e quebrados de Common mistakes, uma espécie de canção de paquera no isolamento, ou algo do tipo. A letra, com versos como “se você não tem vontade de falar enquanto está no trabalho/faça seu trabalho, pessoa bonita/a vida é apenas uma tarefa”, parece um daqueles comentários bizarros feitos por Jonathan Richman nas músicas dos Modern Lovers.
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INTL waters parece uma espécie de união XTC + Gang Of Four, com agilidade complementada pelo arranjo cheio de surpresas, pelas partes diferentes da melodia, e pela letra revoltada (“caçando oligarcas/pegue todos eles pelo que eles têm/e isso é muito”). Já faixas como PG, a funkeada To be rude e Double negative soam como o King Crimson soaria se fosse produzido por Tom Verlaine. Ou o Television por Robert Fripp, quem sabe (não é difícil de imaginar, já que uma velha lenda diz que Fripp se convidou para entrar para o Television como terceiro guitarrista, mas Tom e Richard Lloyd não acharam a ideia boa).
Rola um tom quase no wave no disco em músicas como Granite kiss e Verdict, por causa dos ritmos inusitados e das experimentações em arranjos e composição. Mas tem ainda F1 que quase ameaça um punk progressivo, se é que isso é possível. E tem o final, com a sinuosa Compliment, que escancara de vez o quanto essa turma reza no altar do Television, mas deixa a impressão de que Black Sabbath está na playlist deles. Ouça essa banda com bastante atenção.
Nota: 10
Gravadora: Sub Pop
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