Crítica
Ouvimos: Amaro Freitas, “Y’Y”
- Y’Y é o quarto álbum do pianista pernambucano Amaro Freitas. O título do disco se pronuncia “ieiê” e significa água ou rio em dialeto indígena sateré mawé.
- O disco veio, em parte, de estudos de Amaro sobre piano preparado (técnica do compositor John Cage), que usa peças metálicas entre as cordas do piano, com a ideia de tirar sons mais percussivos.
- Músicos como o flautista inglês Shabaka Hutchings, o guitarrista Jeff Parker e a a harpista Brandee Younger são convidados do álbum.
- O selo Psychic Hotline, que lançou o álbum, tem sede na Carolina do Norte, e é dirigido pelos integrantes do duo eletropop Sylvan Esso (Amelia Meath e Nick Sanborn). “Não procuramos possuir propriedade intelectual em nenhuma circunstância, nem subscrevemos abordagens de carreira baseadas na escassez. Nós nos esforçamos para expandir sempre nossa comunidade musical; para acolher mais vozes e mais perspectivas”, contam no site da empresa.
Ouça Y’Y, disco novo do pianista Amaro Freitas sem olhar para os nomes das faixas e encarando-o como uma única peça musical, dividida em vários segmentos instrumentais, que sugerem um passeio marítimo – com direito a seres quase imaginários, mistérios, uma ou outra sensação de perigo, cenas quase de desenho animado. Bom, não sou eu quem vai estragar sua audição, ouça como quiser. Mas a principal diversão na audição de Y’Y é imaginar cenas, como se o material do disco novo do músico sugerisse um filme.
Só que… é bom saber que as imagens evocadas pelo disco novo de Amaro são bem reais. Y’Y traz para o jazz atual o universo amazônico e a preocupação com o destino dos rios, das águas e da natureza do Brasil. Um tema que envolve anos de descaso e poluição, e mais do que tudo, envolve futuro, dia de amanhã. O Amaro que aparece no disco, tocando só ao piano, ou acompanhado de músicos como o guitarrista Jeff Parker e a harpista Brandee Younger (que participam respectivamente de Mar de cirandeiras e Gloriosa), sugere imersão pessoal total nas matas e mares, e na música brasileira evocada pela natureza.
É o que acontece na referência a Asa Branca, de Luiz Gonzaga, em Sonho ancestral, no piano-de-uma-nota-só do riff central de Gloriosa (que antes e depois ganha mais notas, com harpa circulando em torno do instrumento) e na homenagem ao percussionista Naná Vasconcellos de Viva Naná, repleta de percussões que produzem ruídos da mata. E também na viagem submarina de Uiara (Encantada da água) – Vida e cura. E no jazz nordestino de Encantados, encerramento do disco, no qual o piano de Amaro e a flauta de Shabaka Hutchings se alternam em termos de prevalência, um apoiando e liderando o outro.
O “pra quem gosta de” evocado por Y’Y, em termos de música brasileira, aponta imediatamente para Milton Nascimento – os voos instrumentais do autor de Clube da esquina surgem na mente em vários momentos da audição. Mas no geral, o cantor entra numa soma de referências que faz de Y’Y um álbum instrumental que funciona como um discurso, do começo ao fim.
Nota: 10
Gravadora: Psychic Hotline
Crítica
Ouvimos: Caxtrinho, “Queda livre”
- Queda livre é o disco de estreia de Caxtrinho, ou Paulo Vitor Castro, músico de 25 anos, vindo de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense (RJ). O álbum teve produção de Vovô Bebê e Eduardo Manso. O álbum integra as comemorações dos dez anos do selo fonográfico QTV.
- A capa traz uma pintura, em acrílico sobre tela, do artista plástico Arjan Martins. “A tormenta e a ressaca do mar remetem à profusão sonora inventada por tantos músicos reunidos neste trabalho, em que samba e rock psicodélico se amigam e se transam o tempo todo”, conta sobre a capa o release do disco, que também recorda a origem do cantor. “O samba vem de Caxtrinho e da sua herança cultural do candomblé, que se estende da bisavó baiana até o artista carioca que, naturalmente, cresceu entre o pandeiro e o tambor”.
- Da lista de músicos participantes de Queda livre, constam Negro Leo (voz), Ana Frango Elétrico (voz, piano), Thomas Harres (percussão) e Bruno Schiavo (voz).
Se você escutar o primeiro disco solo de Caxtrinho do começo ao fim, e ainda assim não conseguir entender o que é racismo em praticamente todas as suas manifestações…. Bom, ouça de novo. E de novo. Nas letras do álbum, o preconceito é um monstro nada discreto que surge em distâncias geográficas, nas (poucas) opções de diversão, nos problemas de transporte, na praia bem longe de casa, na cara feia de quem precisa lidar com você fora do lugar onde você mora. Na apropriação cultural nossa de cada dia.
Musicalmente, Queda livre é torto – e isso é um elogio. Daria para colocá-lo na gaveta dos retropicalismos, mas calma: tudo soa como se Luiz Melodia e Jards Macalé decidissem aderir à no wave, mas para responder aos discos de Lydia Lunch e James Chance, fizessem um disco brasileiro por opção, trevoso por raiz e psicodélico por vocação. Há um samba-blues de peso no álbum, Papagaio, um tema instrumental cubano-brasileiro, Vó Jura, e um samba curto, mais próximo do formal, que curiosamente se chama Samba errado. Mas no geral é um disco para ser ouvido como quem vê um filme cheio de cenas rápidas, cortes bruscos e sangue escorrendo.
O material é direto e reto como um soco, um recado para quem ainda não entendeu que a realidade pode ser bastante cruel, dependendo do primeiro cenário que você observa pela janela quando acorda. É o que rola no passeio nada feliz de Cria de Bel, na verdade de Branca de trança (“se subir o morro vai dar pressão/as pretas não vão entender legal, não”), na branquitude esfregada na cara de Brankkos (“tênis de marca/bochecha rosa/Santa Cecilia/férias no Leblon/blusa de banda/carne na mesa/match no Tinder”).
O final é para ouvir várias vezes: Rolé na B2, música aterradora, em que cuícas fantasmagóricas e efeitos dividem espaço com o relato de Caxtrinho sobre um estranho momento de respiro, cujo roteiro passa pela Avenida B2, em Duque de Caxias. Desastre na pista é um samba lisérgico para esses tempos de Ferraris usadas como se fossem armas (“chamava pista de meu bem/alto, corria bem/mas pista não é de ninguém”). Queda livre é um disco que tira o sono de quem não dorme o sono dos justos.
Nota: 10
Gravadora: QTV
Crítica
Ouvimos: Faust, “Blickwinkel” (curated by Zappi Diermaier)
Se você está procurando uma música indecente para assustar vizinhos e atazanar transeuntes, esqueça qualquer grupo de heavy metal ou de punk, e tente a banda alemã Faust. Artífices do krautrock – o rock experimental alemão, parente tanto do punk quanto do rock progressivo – eles começaram em 1971, e desde o começo, fizeram carreira na experimentação, na dissonância, nas microfonias e nos efeitos de estúdio. Tanto que Werner “Zappi” Diermaier, Hans Joachim Irmler, Arnulf Meifert, Jean-Hervé Péron, Rudolf Sosna e Gunther Wüsthoff (a primeira formação do grupo) fizeram questão de agregar um engenheiro de som exclusivo, Kurt Graupner.
O curioso a respeito do Faust é que as origens da banda são até bem (vá lá) comerciais, já que o grupo tinha um criador, produtor e mentor. Era o jornalista e crítico musical Uwe Nettelbeck, que havia sido procurado pela Polydor alemã com uma proposta tentadora: criar uma banda “underground” que poderia ser a resposta do país aos Beatles e Rolling Stones.
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Uwe, digamos, entendeu mais ou menos bem a proposta: reuniu duas bandas alemãs em uma e montou o Faust, que levou para a gravadora. Convencer a empresa de que aquela banda numerosa e “difícil” seria a sensação do ano deve ter sido até fácil. Difícil foi convencer o público a ouvir um grupo tão maluco e experimental, inspirado por jazz e música concreta. Afinal se tratava de um grupo que no terceiro disco, The Faust tapes (lançado em 1973 pela Virgin, quando a própria Polydor já havia desistido), apresentava só duas longas músicas sem título, divididas em pequenos segmentos com ruídos, microfonias e gravações caseiras.
O Faust existiu até 1975, se reagrupou durante os anos 1980 para poucas apresentações e retornou nos anos 1990 com três integrantes originais. Fizeram até uma primeira tour pelos EUA em 1994. De lá para cá, dá para dizer que a banda nunca mais parou, com direito a uma vinda ao Brasil em 2011. Em 2022, saiu Punkt, disco “perdido” deles gravado em 1974, e que havia sido recusado pela Virgin. Agora é a vez de Blickwinkel, álbum que marca uma fase em que a banda tem curadoria do fundador Zappi Diermaier, com a presença de uma turma animada de músicos (um deles, o também fundador Gunther Wüsthoff).
O grupo que ajudou a fundamentar a estética motorik (batidas intermitentes e quase robóticas), copiada pelo pós-punk todo, volta disposto a criar cenários fantasmagóricos e psicodélicos, em sete longas faixas instrumentais que chegam a parecer surrealistas – uma delas, basicamente uma música de violão, percussão e ruídos, se chama Sunny night (“noite ensolarada”). For schlaghammer, na abertura, parece uma música de perseguição, criada por percussões que lembram passos, sintetizadores e ruídos metálicos.
Künstliche intelligenz lembra um pouco a fase A saucerful of secrets, do Pink Floyd (1968), e tem um ar meio Syd Barrett em alguns momentos. Kriminelle kur é progressivo funkeado e distorcido na onda do King Crimson, e é a faixa do disco que mais se aproxima da noção de “rock instrumental”. No final, o ruído inconformista, perturbador e heavy de Die 5 revolution, e o batidão aterrorizante de Kratie.
É música, literalmente, feita para incomodar.
Nota: 9
Gravadora: Bureau B
Crítica
Ouvimos: The Wolfgang Press, “A 2nd shape”
- A 2nd shape é o primeiro álbum da banda britânica The Wolfgang Press em mais de três décadas. O grupo se notabilizou por ser uma das bandas da primeira onda da gravadora 4AD. Desde o retorno, o trio só havia lançado um mini-LP comemorativo do Record Store Day, Unremembered remembered (2020).
- A banda volta com formação mudada: o tecladista Mark Cox saiu e a Michael Allen (voz e baixo) e Andrew Gray (guitarra), junta-se o irmão deste último, Stephen. O disco foi gravado com métodos pré-Pro Tools, como se fosse uma gravação dos anos 1980. “Sempre começamos pelo barulho, e foi o que fizemos nesse disco novo”, contou Allen ao site The Quietus.
Uma das bandas mais interessantes da era de ouro do selo 4AD, antes até da gravadora se notabilizar pelos álbuns dos Pixies, o Wolfgang Press sempre fez basicamente pós-punk gótico sem os vícios de tudo aquilo que é chamado de “gótico”. Em alguns casos, dava para dizer que era um Killing Joke ainda mais cerebral, e mais interessado em sonoridades próximas do funk – e o que diz muito a respeito do Wolfgang Press é a paixão que o vocalista e baixista Michael Allen tem por Metal box, segundo álbum do Public Image Ltd.
Sumido há quase três décadas, o WP retornou este ano sem o tecladista Mark Cox, e com Allen e Andrew Gray (guitarra) formando um novo trio com o irmão do guitarrista, Stephen, nos teclados. O grupo fez questão de esquecer os poucos momentos em que tentou soar mais palatável – como em hits Going South, Kansas, Christianity e A girl like you, repletos de ganchos melódicos, combinando groove e estética musical sombria. A palavra de ordem aqui é “esquisitice”, mas na medida certa: o grupo largou o lado funky de lançamentos anteriores e A 2nd shape parece um Cabaret Voltaire com algum balanço, um Steve Albini marcial e eletrônico, com músicas gravadas com tecnologia antiga (usaram um gravador ADAT de oito pistas), baixo, teclados e programações na frente, e vocais lamentosos.
No novo álbum, o Wolfgang Press faz até uma paródia dark de música surfística (a assombrosa The sad surfer), mas o que chama mais atenção é a disposição para construir atmosferas sonoras de teor quase industrial, em temas como a guerreira Take it backwards, as kraftwerkianas Glacier e The 1st, o bolerinho 21st century, as sinistras Knock, knock e This garden of Eden. Quase tudo em A 2nd shape é marcado por teclados e programações que se assemelham a passos distantes ou ruídos por trás da porta, como numa série de canções para ninar monstros.
Nota: 8,5
Gravadora: Downwards
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