Crítica
Ouvimos: Ana Frango Elétrico, “Me chama de gato que eu sou sua”

- Me chama de gato que eu sou sua é o terceiro disco da cantora, compositora e produtora carioca Ana Frango Elétrico. Ela fez a produção e a direção artística do álbum. No disco, ela canta e toca instrumentos como piano elétrico e sintetizador. Dora Morelenbaum (Bala Desejo) fez arranjos de cordas, Marlon Sette fez os de metais.
- Ela conta que no disco, conseguiu ter tanta visão de produtora que era quase como se ela não estivesse ali cantando. “Acho que o meu próximo álbum vai ser só instrumental. Se quiser eu posso cantar, mas não preciso ser cantora”, disse a O Globo.
- Em texto da ficha técnica do disco, ela explica que o trabalho em Me chama de gato começou em 2021, “com a intenção de mostrar em sons os entendimentos e sentimentos sobre o amor queer, me expondo subjetivamente”, diz. “É engraçado pensar que o termo não-binário tem muito a ver com qualquer possível aparência sonora que este álbum possa ter”.
- Ana recentemente produziu discos para Bala Desejo, Julia Branco e Sophia Chablau E Uma Enorme Perda de Tempo (esse, na pós-produção).
Dá pra entender perfeitamente o que é que Ana quis dizer quando falou a Silvio Essinger no O Globo que Me chama de gato que eu sou sua é um disco de energia sexual. Ela está nas letras, explícita e implicitamente, mas está em melodias, composição, arranjos, no corredor musical no qual ela escolheu trilhar o disco.
Em músicas como Electric fish e Nuvem vermelha, Ana canta como se tentasse unir jazz e synth pop, boogie nacional dos anos 1980 e MPB, arranjos de rádio de quarenta anos atrás e modernidade musical, funk e lounge. Coisa maluca, num mundo ideal em que letras como essa pudessem ser gravadas lá por 1975 ou 1976 sem causar choro e ranger de dentes, poderia estar no repertório setentista de Gal Costa, desde que rearranjada. Nenhuma das referências é óbvia, e tudo que entra em Me chama de gato surge como se tivesse passado por um filtro muito pessoal, no qual gêneros existem – em todos os sentidos – mas servem para misturar e nortear, nunca para limitar.
Dela traz arranjos e vocais tranquilos, lembrando as intervenções de Evinha e Marizinha (do Trio Esperamça) em discos de MPB dos anos 1970, e o som nacional da mesma época. O lado pop-indie verde-e-amarelo fica mais acentuado no balanço de Boy of Stranger Things (“sou o garoto de Stranger Things/não sou a garota que você imagina”), que lembra os arranjos de Lincoln Olivetti – e não deixa de ser curioso que a ambientação musical Los Angeles de Olivetti sirva de modelo para um trabalho tão independente e repleto de ganchos pessoais (por acaso, Marlon Sette, criador dos arranjos de metais, trabalhou com Lincoln).
Já Dr. Sabe Tudo é moderna na gravação/mixagem, vintage na concepção – soa quase como um lado B de Rita Lee e Roberto de Carvalho, ou uma canção de uma das musas do Programa Carlos Imperial, com versos maravilhosos como “pra que sustentar o amarelo/no sorriso tão pé de chinelo”. Insista em mim, inspirada em Tim Maia, tem lentidão meio reggae, e arranjo sofisticado como os do disco Reencontro, de Tim (1979), ou como os de Arthur Verocai. Os arranjos de orquestra, aliás, são uma atração à parte, feitos como se viessem de uma época em que cordas e metais eram mais do que enfeites para uma canção – eram necessários, tinham que ser muito bonitos para vender discos e tocar em rádio.
Falar que Me chama de gato soa especial por causa das misturas musicais dá uma imagem errada do disco – como se Ana fosse uma cantora que atirasse em todos os estilos num só álbum. É um disco mutante, no melhor dos sentidos, e em todos os sentidos, mas com posicionamento e segurança.
Gravadora: Risco
Nota: 9
Foto: Hick Duarte/Divulgação
Crítica
Ouvimos: Clara Bicho, “Cores da TV” (EP)

“Artista visual, musicista e jornalista pela UFMG”, como se define em seu instagram, Clara Bicho oferece mais do que apenas música em seu aguardado primeiro EP, Cores da TV – o disco é um universo esperando para ser desvendado. As melodias tem ar indie pop, as letras têm clima de diário, os cenários mostram Clara interagindo com todos os lugares dos quais ela fala nas letras.
A paleta indie pop do disco traz influências de disco music na faixa-título Cores da TV (parceria com Sophia Chablau), que traz sonoridade remetendo a grupos como Girl Ray, enquanto Meu quarto é mais experimental, soando como um passeio introspectivo pelos guardados de Clara Bicho e pelas recordações de uma vida (“faz um tempo ue eu tento me organizar / mas disso tudo aqui eu não quero me livrar”).
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Quase sempre, o som de Cores da TV parece “derreter”, como numa psicodelia pop, herdada tanto de Mutantes quanto de Flaming Lips. Rola isso na bossa indie Música do peixe, que depois se transforma numsamba-rock, e também no pop adulto oitentista (city pop, digamos) de A rua. Luzes da cidade, quase na mesma vibe, é um pop de quarto que remete ao boogie dos anos 1980, cujo vocal tem sujeira de gravação feita em casa.
No final, o som luminoso e repleto de recordações de Árvores do fundo do quintal, gravada ao lado da banda catarinense Exclusive Os Cabides (“as árvores do fundo do quintal / mandam lembranças / de quando a gente era criança”). Uma música, e um EP, em que passado e afeto são tão importantes quanto o futuro, e formam uma visão nova de música pop.
Nota: 9
Gravadora: Bolo de Rolo
Lançamento: 5 de maio de 2025.
Crítica
Ouvimos: Maré Tardia, “Sem diversão pra mim”

Lançada em 2022, a estreia epônima do Maré Tardia era um disco bastante juvenil, mais ligado a uma combinação de indie rock e surf music. Mas já indicava o caminho que a banda seguiria com Sem diversão pra mim, seu segundo álbum. O Maré Tardia atual soa mais explosivo, apresenta composições bem mais afiadas e parece ancorado em diversas fusões estilísticas que se alternam: punk dos anos 1970, indie dos anos 2000, pós-punk (tanto o original quanto o revisitado a partir da virada do milênio) e, em especial, sonoridades que remetem a bandas como Libertines e Television Personalities.
Essa mistura aparece em faixas como Leviatã, Já sei bem, Junkie food (com um clima surfístico-misterioso que lembra o início do Dead Kennedys) e na faixa-título – cujos vocais evocam a fase punk do Ultravox e, não por acaso (note o nome do disco), também têm algo de Titãs. Tarde demais traz vários riffs, vocais gritados, uma pegada grunge e, surpreendentemente, encerra com um clima de maracatu punk, com percussões marcantes e guitarras inspiradas. Uma inesperada brasilidade também marca Nunca mais, última do álbum, com batida discreta de bossa nova e um improviso samba-rock no final.
Ian Curtis, que homenageia o saudoso vocalista do Joy Division, tem guitarras que lembram o U2 do início e grupos pouco lembrados do pós-punk, como Comsat Angels. Já a despojada Nadavai, lançada como single, é punk indie com batidas à la Dave Grohl e um vocal descolado que remete ao rock dos anos 2000 (Arctic Monkeys, Strokes). Sem diversão pra mim, o disco, carrega por acaso muito do romantismo que permeou o rock brasileiro de vinte anos atrás – aquela estética de falar de si e dos sentimentos como quem comenta o mundo, firmando posição diante de tudo. Ouça correndo.
Nota: 8,5
Gravadora: Deck
Lançamento: 30 de abril de 2025.
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Crítica
Ouvimos: Y3ll, “Entre samples roubados & cerveja barata”

Direto do extremo leste de São Paulo – entre Guaianases e Cidade Tiradentes -, Daniel Oliveira, o popular Y3ll, soltou nas plataformas Entre samples roubados & cerveja barata, álbum de título certeiro e alma 100% urbana. Aqui, o rap vira quase city pop, mesmo nos momentos em que a estética japonesa não está diretamente presente. É trilha sonora de rolê pela cidade — real ou imaginária —, desses que começam na quebrada e terminam em algum lugar no controle remoto ou nas profundezas das plataformas de streaming.
A faixa Livre já dá o tom: sample do tema do programa do Datena no SBT misturado com Estou livre, de Tony Bizarro. Não se vão carrega peso e ironia: um rap encorpado por grooves de disco music e sonoridades de flashback, com Y3ll fazendo a pergunta que vale um milhão: “por que idiota falando bosta atrai multidão?”. Em Coral — que traz o título do disco num dos versos —, o clima muda: sambinha-rap suave, tranquiilo. Pela Leste, por outro lado, volta pro grave e dançante: batidão pesado, com sample até do programa do João Kléber.
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Os temas variam entre prazeres simples e duras realidades: sábado à noite, boletos, tretas, polícia, morte. Estão todos ali na sombria Dono do pedaço, com um riff de teclado de influência árabe, e no rap falado, lento e quase confessional de Não sei. Interlúdios dão o respiro: Comerciais simula um dial girando entre anúncios, Interlúdio traz papos paralelos, e Viva a vida é um velório vem com ninguém menos que Zeca Pagodinho filosofando sobre os enterros felizes no bairro carioca de Irajá.
No fim das contas, Entre samples roubados & cerveja barata é um disco-vinheta. Um mosaico sonoro da quebrada, da vida, da cidade — daqueles que não contam só uma história, mas várias ao mesmo tempo.
Nota: 8,5
Gravadora: Independente/Tratore
Lançamento: 9 de maio de 2025.
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