Cultura Pop
Aquela vez em que Jorge Fernando mostrou o jovem dos anos 1970 na TV
Jorge Fernando, ator e diretor, morreu. Gostava das novelas dele, mas a maior lembrança que tenho é que ele fez parte de um dos projetos mais corajosos da televisão brasileira. Essa série aí.
https://www.youtube.com/watch?v=ih_vrzrQl5c
Ciranda Cirandinha foi uma das primeiras séries brasileiras feitas pela Rede Globo, em 1978. A ideia do programa era falar dos problemas que a juventude brasileira tinha na época. Não era brincadeira: o sonho hippie tinha passado e uma renca de jovens já tinha percebido que muita coisa da utopia bicho-grilo não tinha a menor conexão com a realidade. Lembro de ter lido uma entrevista do Daniel Filho, que foi diretor e um dos mentores da série, dizendo que o mote era “o sonho acabou, mas papai não tem razão”.
Pelo “muita coisa da utopia bicho-grilo” acima, entenda-se: os muitos exageros do hippismo, como a utopia de que era possível todo mundo viver em comunidade, e de que havia uma nação Woodstock (no mesmo estado de calamidade pública do festival) para cada jovem. E de que isso tudo era bom.
Jorge Fernando, que ainda não era diretor, fazia um dos garotos que passavam a dividir um apartamento no Leblon – os outros eram interpretados por Fabio Jr, Lucélia Santos e Denise Bandeira. Essa série fez sucesso de crítica. Artur da Távola, que por aqueles tempos era colunista de TV do jornal O Globo, escrevia crônicas e mais crônicas sobre o programa.
O personagem mais interessante da série era uma ovelha negra do grupo, interpretada por Eduardo Tornaghi. Uma espécie de Jim Morrison tupiniquim que, para se tornar mais palatável, ganhou um ar de Charles Bukowski, sempre com uma garrafa na mão. Evidente que o problema do personagem não era bebida: era ácido demais e excesso de messianismo. Não dava pra explicar que o maluco era quase um dublê de Charles Manson numa série exibida na Globo em 1978. A censura poderia até deixar. Mas ninguém entenderia direito (nem a censura).
A série era um bom retrato do que era ser jovem no Brasil de 1978. Vá lá: jovem que frequentava a zona sul carioca e vivia seus white people problems, mas a série era extremamente cativante e os temas eram bem “gente como a gente”. E vale citar que nos anos 1970, ser “xóvem” no Brasil era bem diferente de ser jovem lá fora. Ser fã e consumidor de cultura pop, mais ainda.
Em 1978 o jovem brasileiro ainda curtia rock progressivo. E Led Zeppelin. E os mais avançadinhos estavam curtindo disco music e o rock que se relacionava com ela (Rita Lee, Stones, Fleetwood Mac, um pouco Rolling Stones). E MPB, já que justiça seja feita: Caetano Veloso e Gilberto Gil praticamente criaram o modelo de MPB jovem que vigora até hoje. Punk e new wave, naquela época, no mainstream brasuca, nem pensar. Discos de bandas como Sex Pistols, Stranglers e Blondie eram lançados aqui e iam para as mãos de quem tinha que ir. Ok, Heart of glass esteve na trilha de Pai herói, novelão da Globo em 1979. Com Jorge Fernando como ator, diga-se.
Tinha uma molecada que ouvia reggae no Brasil em 1978. Mas você teria que penar para achar alguém com camisa do Bob Marley circulando pelo Rio – falei disso numa reportagem que escrevi para a Rolling Stone há anos. Era um culto parecido (como diz meu amigo Wagner Fester, DJ) com o daquela galera que curtia música cubana entre os anos 1990 e a década passada. O punk, que ja chamava atenção lá fora, foi uma revolta contra o mainstream do rock e seu distanciamento dos fãs. Só que no Brasil os maiores revoltados contra uma coisa BEM MAIS ESCROTA (a ditadura militar) eram os chefões da MPB. Que tinham mais o que fazer do que pensar no, er, jovem brasileiro.
E voltando a Ciranda Cirandinha, o subtexto da série era bem verdadeiro e corajoso: mostrar que o jovem dos anos 1970, que ia pra universidade e estava tentando começar uma carreira, era um ser humano muito triste.
Era um jovem que tinha perdido várias referências, já que o bonde da cultura pop passara mal por aqui e os ídolos deles ainda eram os de vários anos atrás. Não por acaso, o primeiro episódio termina com todo mundo cantando Bob Dylan. Um ídolo de gerações anteriores. Se eu estivesse na equipe de roteiristas, insistiria para colocar a seguinte fala na boca de um dos garotos do apartamento do Leblon: “Galera, um amigo meu me deu esse LP importado aqui, Sally can’t dance, do Lou Reed. Bora ouvir Kill your sons?”. Primeiro íamos rir muito juntos, depois me expulsariam da equipe de roteiristas.
A tristeza não era só cultural: em 1978 a ditadura militar fazia 14 anos. Quem tinha 16 anos em 1970 (como a personagem da Lucélia Santos) se acostumara a ver a repressão como parte do dia a dia. Era quase como escovar os dentes e tomar banho.
Um outro detalhe curioso no primeiro episódio da série: quando o personagem do Jorge Fernando resolve sair de casa e se juntar aos amigos no Leblon, os pais dele quase se matam. Hoje pode parecer ingênuo tudo isso. Mas ainda havia um outro detalhe: as pessoas nos anos 1970, hum, ficavam velhas mais cedo.
Ok, não fui claro, vamos lá: até os anos 1980, era comum que pessoas com mais de 40 já fossem consideradas “senhores (as)”, pessoas respeitáveis. Fazer 40 já era sinal de velhice ou de estar perto dela. Da mesma forma, longe iam os tempos da juventude de quem já era mais velho. Conflito de geração era mato e, quanto mais conservadora fosse a pessoa, menos ainda ela entenderia as experiencias e os voos que um jovem (de idade ou de espírito) quer ter.
Daí tudo a ver que a série comece justamente pelos dilemas de quatro garotos de 20 e poucos em busca de um lugar pra morar (enfim: um mocó pra fumar um, ouvir um som, ficar na moral). O mais comum é que os mais velhos não entendessem. E tinha muito garoto que, depois dos 18, se ainda estivesse meio perdido na vida, ou era endireitado pelos pais ou posto pra fora de casa. Tem isso até hoje, imagina ha 40 anos.
Por sinal, o primeiro episódio termina com uma cena que, enfim, eu acho bastante tocante e significativa: os personagens começam a arrumar a bagunça feita pelo Joel (Tornaghi) na casa. Ele tem um ataque e começa a destruir o jardim caseiro que a personagem de Lucélia Santos havia montado. A câmera, como se estivesse na janela, mostra cada um deles olhando fixamente por alguns segundos. Como se estivessem sendo vigiados, ou num cartaz de ‘procurado’. Isso resume tão bem o que era ter pouco mais de 20 anos na época, que você pode pular TODO O VÍDEO e ver só isso se estiver sem tempo.
No mais, R.I.P. Jorge Fernando, que – felizmente – não se tornou “aquele ator daquela série dos anos 1970, como é que o nome mesmo?” e revolucionou a teledramaturgia. Mas já merecia ser lembrado só por ter mostrado o jovem dos anos 70 para ele mesmo na TV. Por algum motivo, é essa música que vem na minha cabeça agora. E isso daria um BELO episódio de série brasileira jovem dos anos 1970. Vai aí como homenagem ao Jorge.
Ah, sim, Ciranda cirandinha foi lançada em DVD tem uns anos. E tem outro episódio no YouTube, justamente o último. Pega aí.
Crítica
Ouvimos: Charli XCX, “Brat and it’s completely different but also still brat”
Vai chegar o momento em que as pessoas vão fazer como acontece depois de qualquer tipo de onda, e vão recordar a era de Brat, disco de 2024 de Charli XCX, com carinho, com afeição ou até como um barômetro de seu tempo. Assim como (e isso aconteceu até com os imitadores de Sgt Pepper’s em 1967/1968) muita gente vai se perguntar: “Como é que a gente foi achar legal esse negócio de um disco ter uma capa que até meu sobrinho de 7 anos poderia fazer no canva? Ou essas reedições com títulos engraçadinhos? E como tanta gente gostou disso?”
Enquanto isso não acontece – e vale citar que o dicionário Collins já escolheu “brat” como palavra do ano de 2024 – Charli XCX já aproveita para recauchutar seu sexto disco, lançado originalmente em 7 de junho, pela terceira vez. Já havia saído uma edição com três faixas a mais. E dessa vez, Brat and it’s completely different but also still brat transforma as dezoito faixas associadas ao disco numa verdadeira maratona. E numa festa.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
- Resenhamos Brat aqui.
O álbum duplo traz o material regravado, mudado e remixado por vários convidados, entre nomes novos e veteranos. Robyn e Yung Lean acrescentam seus versos e nomes a 360. Ariana Grande elenca as cascas de banana da fama em Sympathy is a knife, ao lado de Charli – com direito a frases ótimas como “é uma facada quando seu amigo começa de repente a pisar em você”, ou “é uma facada quando alguém diz que gosta mais da minha velha versão do que da nova/e eu penso: quem é ela, porra?”. Billie Eilish responde a Charli em Guess e marca presença no pop sáfico. Essas duas últimas são as únicas versões que valem como “grande e indispensável complemento ao original”.
Algumas coisas foram feitas propositalmente para desconstruir as noções de hit do original: I might say something stupid virou ambient nas mãos de Jon Hopkins e The 1975, e Bon Iver deu uma cara melancólica a I think about it all the time. O rapper sueco Bladee aumenta a lista de estresses da fama em Rewind, e Charli XCX confessa nos novos versos que acrescentou, que o dinheiro e a vida em Los Angeles (ela vive lá e em Londres) fizeram com que ela se tornasse “mais competitiva”.
Muita coisa no Brat reimaginado não influi nem contribui, mas não chega a ser ruim. Só que tem o lado chato, aliás chatíssimo: Julian Casablancas pegou Mean girls, uma das melhores músicas do disco, e transformou num indie-pop cagado com vocal de autotune, e a rapper espanhola BB Trickz diminuiu a velocidade de Club classics e só dá mais vontade de ouvir o original, mesmo. Por sinal, Brat and it’s completely different but also still brat vem com o Brat deluxe no disco 2, e reouvindo, dá para perceber o quanto o álbum de Charli é um hype dos mais justificados. Tem festa, sexo, doideira, vícios, saudade dos amigos, redes sociais, as nostalgias dos millennials, e um pop que vai do sombrio ao festeiro em pouco tempo – e de fato, é um barômetro comportamental de 2024, ou deveria ser.
Nota: 7
Gravadora: Atlantic.
Cultura Pop
No podcast, Sparks da pré-história à era de “Kimono my house”
Sparks, a melhor banda que você nunca ouviu, mas da qual já ouviu falar. Uma banda que na verdade é uma dupla – e uma dupla de irmãos. Russell Mael (o vocalista extrovertido) e Ron Mael (o tecladista introvertido de bigode) já atravessaram mais de cinco décadas fiéis às suas concepções de música e de espetáculo. Em discos como o clássico Kimono my house (1974), os Sparks fizeram pós-punk, new wave e synth pop antes do punk surgir – e adiantaram até mesmo o som do indie rock dos anos 2000.
E hoje no Pop Fantasma Documento, nosso podcast, você vai conhecer tudo que você sabe, não sabe e deveria saber sobre uma das bandas mais instigantes do mundo do rock, da pré-história até o auge. Ouça no volume máximo.
Século 21 no podcast: Immoral Kids e Dani Bessa.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Lou Reed, “Why don’t you smile now: Lou Reed at Pickwick Records 1964-1965”
“Eu era uma Ellie Greenwich malsucedida, uma Carole King pobre”, descascava sem dó Lou Reed, sobre o período em que foi um projeto de hitmaker (um “futuro” hitmaker que não emplacava hit nenhum, enfim) no selinho norte-americano Pickwick, localizado em Long Island City. Uma etiqueta musical que fabricava imitações de sucessos das paradas, e tentava ganhar grana lançando tudo em singles e coletâneas cata-corno de baixo preço. Essa época ressurge dissecada na coletânea Why don’t you smile now: Lou Reed at Pickwick Records 1964-1965, com 25 faixas nas quais Lou teve participação como compositor, intérprete ou as duas coisas.
Se for encarar as músicas de Why don’t you smile now todas de uma vez, vá com calma: o material tem bem pouco a ver com o que Lou Reed faria no Velvet Underground e nos primeiros anos de sua carreira solo – embora a composição de músicas para grupos vocais de garotos e garotas acabasse se tornando uma obsessão que iria pairar sobre vários álbuns importantes seus, inclusive New York, de 1989. Formado na Universidade de Syracuse, com planos bem mais ambiciosos em relação ao rock do que apenas fazer músicas por encomenda, e prestes a gravar as primeiras demos do que seria o Velvet Underground, Lou entrou para o time de compositores do selo Pickwick, ao lado dos colegas Terry Philips, Jerry Vance e Jimmie Sims.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
- Temos episódio do nosso podcast sobre Velvet Underground aqui.
- E dois episódios sobre Lou Reed aqui e aqui.
O selo já existia desde 1950, aliás resistiria bravamente até 1977 pirateando discos fora de catálogo (pôs nas lojas vários discos de Elvis Presley que estavam esgotados e deu muita dor de cabeça para a gravadora oficial do rei do rock, a RCA). E naquele momento tentava surfar simultaneamente várias ondas pop. The ostrich, por exemplo, era um tema bizarro que explorava os modismos inúteis do rock então em curso havia pelo menos dez anos. A faixa ensinava os passos da “dança do avestruz”, que consistiam em “você dá um passo para frente e então vira para a direita/você vira para a esquerda e põe seus pés para cima da sua esquerda” (!). A faixa, motivada por um modismo de roupas com penas de avestruz, foi composta pelo quarteto de compositores do selo, cantada por Lou e creditada a um grupo de proveta chamado The Primitives.
The ostrich geralmente é a faixa mais citada dessa fase por fãs roxos de Reed. Mas o material tinha bem mais: imitações de Jan & Dean (em Cycle Annie, creditada a The Beachnuts), pastiches de Phil Spector (como Love can make you cry, cantada por uma tal de Ronnie Dickerson) e muita coisa que poderia ter ido parar no repertório das Shangri-Las, como a tragédia adolescente Johnny won’t surf no more (com Jeannie Larrimore) e Teardrop in the sand (esta, com vozes masculinas, interpretada por The Hollywoods).
O método de trabalho era fazer o maior número de composições que pudesse ser feito em pouco tempo. Segundo Lou, Terry Philips – que chefiava o trabalho – pedia à turma: “Faça dez California songs, agora dez Detroit songs…”, numa demonstração básica de que o trabalho servia para agradar tanto os fãs de imitações dos Beach Boys quanto os seguidores da Motown. Uma curiosidade no disco é a faixa-título Why don’t you smile, parceria entre Lou Reed e seu novo amigo John Cale, que fazia parte do repertório do All Night Workers. Uma banda que não era uma invenção de Lou, mas sim um grupo formado por colegas seus de faculdade – o single deles saiu pela Round Records, selinho ligado à Pickwick.
The ostrich, por sua vez, acabou por se tornar o verdadeiro pré-Velvet: após o lançamento do single, a Pickwick achou que valia a pena investir num grupo de verdade para promover o disco. Terry Philips havia conhecido dois sujeitos numa festa, John Cale e Tony Conrad, que convidaram o amigo Walter DeMaria para compor a banda. Não deu certo, mas Cale e Reed formaram uma parceria que gerou o Velvet Underground e rendeu frutos por alguns anos.
Nota: 7
Gravadora: Light In The Attic
-
Cultura Pop4 anos ago
Lendas urbanas históricas 8: Setealém
-
Cultura Pop4 anos ago
Lendas urbanas históricas 2: Teletubbies
-
Notícias7 anos ago
Saiba como foi a Feira da Foda, em Portugal
-
Cinema7 anos ago
Will Reeve: o filho de Christopher Reeve é o super-herói de muita gente
-
Videos7 anos ago
Um médico tá ensinando como rejuvenescer dez anos
-
Cultura Pop8 anos ago
Barra pesada: treze fatos sobre Sid Vicious
-
Cultura Pop6 anos ago
Aquela vez em que Wagner Montes sofreu um acidente de triciclo e ganhou homenagem
-
Cultura Pop7 anos ago
Fórum da Ele Ela: afinal aquilo era verdade ou mentira?