Cultura Pop
Já leu o livro dos mil shows do Melvin?
Melvin Ribeiro já passou por bandas como Autoramas, Los Hermanos (tocou com eles por uma noite, e trabalha até hoje com o merchandising deles), Hill Valleys, Carbona (“seu” grupo, que existe até hoje). Já tocou com os Buzzocks, numa situação que ele mesmo não acredita até hoje que aconteceu de verdade. Também quase tocou no CBGB’s, meca ramônica, e acabou precisando desmarcar o show. Quando foi remarcar, lidou com a incredulidade dos funcionários, que não imaginavam que alguém fosse desmarcar um show no local onde a cena de Nova York dos anos 1970 começou – mas conseguiu finalmente tocar! Em outra fase, foi cabeludão e tocou thrash metal com uma banda na Argentina – e chegou quase a gravar um disco por um selo de porte com ela.
Cada um dos seus mil shows rendeu histórias memoráveis, engraçadas e bizarras (como a do dia em que um músico convidado – e desavisado – dedicou uma canção para a namorada do baterista de sua banda). Agora, essa trajetória está contada no livro Estrada – Mil shows do Melvin, lançado a partir de financiamento coletivo. O lançamento rola ao mesmo tempo em que o Carbona faz uma turnê e volta ao disco, e em que Melvin, além dos vários shows, continua fazendo de tudo. Inclusive lançar projetos musicais novos – como Melvin & Os Inoxidáveis, com quem gravou um EP ano passado.
Batemos um papo com Melvin sobre o livro e, como tem sido comum no POP FANTASMA, a ideia é, ir além de música e livros. Giramos em torno do seguinte tema: o que a pessoa leva pra casa de interessante (ou até de inspirador) quando observa a trajetória de um cara como Melvin, que além de tocar e produzir, já trabalhou em gravadoras e viu muita coisa acontecer? Pega aí.
POP FANTASMA: Como você tem visto o interesse dos fãs de rock, de música pop, pelos bastidores dos seus shows, e pela sua história?
MELVIN: Tenho sempre encontrado gente interessada. Na minha trajetória toda, eu via uma coisa que me interessava e resolvia fazer também. Tipo: “Aquela banda fez CD independente. Pô, dá pra prensar CD já? Vamos fazer um selo?”. É importante falar que não fiz o livro numa coisa de “o incrível cara que deu mil shows”. Até porque muitos músicos já fizeram isso mas não pararam para contar: o Marcelo Callado, o Gustavo Benjão, os próprios Los Hermanos. Todo mundo ali já chegou nisso. Os mil shows serviram para dar um ponto de partida pro livro. E como eu sou viciado em livros de rock, de bastidores, fiz o meu. Hoje eu vejo até que fiz o livro que gostaria que outros músicos fizessem. Se o Callado, se o Marcelo Camelo fizerem um livro com esse tipo de história, eu vou ser o primeiro a ler.
No livro tem material de diários antigos seus, coisas antigas suas. Como esse material estava conservado? Esse material sempre ia comigo. É uma tragédia, porque morei com meus pais até os 20 e poucos e depois me mudei seis, sete vezes. E em todas as mudanças tinha aquelas caixas, pastas com cartazes. Tinha um por um no plástico. Quando cheguei com esse material na casa da minha namorada, ela ficou meio horrorizada, mas quando comecei o livro, ela entendeu (risos). Mas alguns dos diários já estavam em digital. Os diários do Carbona estavam num blog que a gente tinha na época. Eu comecei a escrever o livro pelo índice, o que é meio doido. Ou não, sei lá. Nunca fiz outro livro (rindo).
Analisando bem, se você sabia o que queria escrever, era mesmo só organizar em tópicos. Acho que de repente foi até uma maneira boa de organizar tudo… Sim, sim. Na verdade nem sabia por onde começar. Muitas pessoas imaginavam que ia ser um livro de verbetes, falando show por show. Mas teve show que mesmo sendo importante, não tive muito o que contar dele. Deixei só as histórias que eu achei que eram relevantes mesmo, que eram divertidas. Peguei todas as histórias que eram best sellers, as que eu contava muito. E fui batendo com a minha lista de shows, os que não estavam sendo atendidos pela lista. Todo dia eu escolhia um capítulo para escrever e pesquisar sobre. Nessa de pesquisar, ir nos HDs, achei textos que mandamos para a Rock Press (revista, que hoje funciona na internet sob outra direção) e acabaram não saindo, e que contavam histórias que nem eu lembrava mais. Tem um capítulo que é o Henrique (cantor e guitarrista do Carbona) escrevendo tudo, porque é um diário de turnê que não achei registro meu e achei um dele, gigante. O Autoramas, fiz ali na hora, vendo e-mails e lembrando como foi.
Aquela história do anão (que roubou a mochila do Melvin nos bastidores de um show) é muito engraçada! Você teve contato com esse anão depois? Ele tá vivo? É sensacional, né? Eu tomei cuidado, porque não falei onde aconteceu essa história…
É, percebi… Se você quiser muito saber onde foi, tem um capítulo onde eu falo sem querer o lugar. Até porque a ideia não era humilhar o cara. Era contar uma história tensa. Como a do vocalista que cantou com a gente e dedicou uma música para a namorada do baterista.
Isso foi muito engraçado. Bom, deve ter sido tenso na hora! Foi desesperador! Mas a história não ficava melhor se eu dissesse com quem foi. Mas o anão fez uma grande carreira. Ele era negro, de black power e tatuado. Ele foi para a Europa, morou um tempo lá, fez filmes lá – tem fotos dele em set de filmagem – e hoje ele é um leprechaun de St Patrick Day em alguns lugares. Acho que ele mora em São Paulo. Esse cara nunca passou incólume em lugar nenhum, acho que todo mundo que lê o conto e passou pela mesma cidade em que esse cara esteve pensa: “Ah, conheci”.
Como foi a trabalheira pra fazer o crowdfunding e como teve essa ideia? Engraçado porque eu tinha o Embolacha, que era uma empresa de crowdfunding. Entrei lá por um desafio profissional. Mas eu nunca achei crowdfunding muito legal. Achava meio pedir esmola. Fui entender o esquema, fiz para os outros, mas ficava bolado de fazer o meu. Eu fiz do Autoramas na época, mas antes disso eles já tinham feito dois. Eu ficava meio cagado, eu queria mesmo era uma editora para lançar. Mas fui vendo que o mar não tá pra peixe, mesmo as editoras que tinham mais a ver davam uma enrolada…
O mercado está complicado mesmo. Mas aí um dia um amigo meu, o Mateus, apareceu, e falei que estava escrevendo um livro. Perguntei se ele queria dar uma lida e ele: “Eu conheço uma menina que vai diagramar o livro pra você”. Era a Carol Santos, que fez a capa, depois saiu do projeto. E ela sugeriu de fazer crowdfunding. De fato, uns meses depois, com o livro meio pronto, eu tava sem horizonte. Não tinha a grana pra lançar, e ninguém aparentemente estava a fim de lançar. E pensei: vamos tentar o crowdfunding.
E deu certo. Não sei te explicar direito porque deu tão certo. Fazia isso no Embolacha, tinha uma noção, mas deu muito, muito certo. Foi uma mistura de coisas.
Eu vi uma história num filme sobre crowdfunding. O cara fala que quando você consegue transmitir para as pessoas que aquilo é um projeto que importa muito para a sua vida, elas chegam junto. Mais do que o fato de ser um produto legal ou não: quando as pessoas entendem que você quer muito fazer isso, elas ajudam. No Embolacha a gente tinha uma meta que era fazer 10% no primeiro dia. É porque arranca, depois estaciona e no final arranca de novo. E fiz 10% em uma hora. Em um dia, eu estava com 40%, o que é um absurdo. Tanto que nem enchi muito o saco com a campanha depois. Minha namorada é escritora e ela ficava tentando dimensionar o que podia acontecer comigo, pra eu não me decepcionar muito. Falava: “Pensa que vai vender uns duzentos livros”. E vendi 188 no crowdfunding. Pra minha cabeça, já saiu resolvido.
E o livro ainda tá à venda? Eu prensei 500 livros, eles estão quase acabando. Não dá pra prometer, mas a minha ideia era fazer uma segunda edição com uma ou outra revisão de erros que já achei. E ainda continuar vendendo. Mas chegou a 500 e eu já achei uma loucura.
Como que você analisa esse tempo todo de Carbona, que é uma banda que já passou por vários lançamentos e selos, já tocou lá fora, já teve altas mudanças de formação, agora tá tendo esse gás aí de ter o Fred (Raimundos) na bateria… Qual o balanço que você faz da história do grupo? Cara, é muito louco. Se você olhar pra sua coleção de CDs e pensar em bandas que você gostou na vida, a quantidade de bandas que passam do quarto disco, do quinto disco, é pequena. A maioria das bandas que passa disso é muito pequena, diria que 5%. E a gente virou isso. Uma banda de 22 anos, onze discos, que sempre manteve a mesma base – Eu, Henrique e o Pedro (bateria). O Fred entrou tem dois anos. A gente preferia esperar o Pedro voltar pro Brasil, porque ele está morando fora. Mas chegou uma hora que bateu vontade de tocar mais, o Fred eu tinha acabado de conhecer no Autoramas e o chamei para entrar na formação nova, que é meio família. A gente tem grupo com o Pedro e com o Fred (no WhatsApp). O Pedro veio tocar em dezembro com a gente e o Fred emprestou os pratos pra ele. E a gente acabou de fazer o melhor disco da gente.
Disco novo? Isso. Se chama Vingue no ringue, foi gravado com um produtor de Porto Alegre, tem as melhores composições e a melhor gravação disparado. Depois das turnês em que a gente passou o Brasil todo, fizemos menos show. Durante quatro anos a gente fazia só show no Rio, gravava disco, mas não saía do Rio. Quando o Hangar foi fechar, anunciou que ia fechar um ano antes, a gente pensou: “Precisamos dar um jeito de ir pra São Paulo”. Marcamos um show no Hangar, o cara de Curitiba chamou (para fazer show), o de Porto Alegre chamou, o de Goiânia chamou… Não sei dizer se hoje está pior, estamos como a gente aguenta. Por causa dos compromissos de todo mundo não temos como viajar muito, mas estamos fazendo Rio e São Paulo direto, uma ou outra cidade.
Você considera que sua trajetória como profissional da música, e não apenas como músico de banda, é inspiradora para outros profissionais? Você foi um cara que além de ser músico passou por diversos outros lugares: Som Livre, Embolacha… E agora tem o livro. Pois é, eu cheguei a escrever em algumas dedicatórias do livro: “Que esse livro possa te inspirar…”. Achei meio pretensioso, mas eu estava meio pretensioso no dia (risos). Eu tenho um amigo que é técnico de futebol e comprou meu livro. E ele me fez umas perguntas bem interessantes, me disse: “Pô, eu li seu livro inteiro e queria saber em qual momento você deixou de perseguir aquele sonho da rádio e do estádio lotado”. Uma pergunta que eu nunca tinha me feito. Quando comecei, o sonho não era estádio lotado. Era o sonho de ter uma banda empreendedora, que corria atrás de tudo, que queria desbravar. O CD independente estava em voga, as bandas estavam começando a se virar só com isso. Nunca teve uma coisa de: ‘Ah, daqui a pouco a gente vai estar na trilha da novela!’. Era: “Daqui a pouco a gente pode prensar nosso CD e viajar”. Mesmo em termos de hoje o Carbona é um absurdo. Em 1997, com seis meses de banda, a gente estava com repertório, já tinha gravado disco e estava em Detroit com CD no bolso.
https://www.youtube.com/watch?v=U_ew72wP_Wk
Minha escola foi muito mais de cair dentro do que tentar outro tipo de recompensa. E eu penso até muito no Panço, que sempre foi muito inspirador. Era um cara que se tinha alguma coisa que ele queria fazer, ele fazia. Na minha leitura era assim: quer lançar um zine? Lança um zine. Quer lançar um livro? Lança um livro. Isso é inspirador, o lance de correr atrás, de fazer as coisas. É legal passar isso adiante, mostrar que se você cair dentro, você vai conseguir resultados. Não é uma coisa de “fiz isso e fiquei milionário”, mas vai fazendo as paradas.
Vou tocar agora em Portugal com o Guga Bruno, meu guitarrista, e quero armar shows lá. E eu estava pensando: “Cara, tá difícil pra caralho, um lugar pode, o outro quer mas não pode porque a bateria faz barulho, o outro não responde e-mail há cinco dias…”. Mas é tão legal fazer isso, sabe? Quero tanto fazer esse show, que nem estou aguentando isso. Tem uma galera que desiste antes porque é chato pra caralho mesmo, sabe? O quanto você está disposto a disparar de e-mails para fazer um show numa cidade onde você não tem interesses comercial nenhum, que você quer fazer porque quer fazer? Acho que se for pra inspirar alguém, é nesse lado de “faz as paradas”. Tem uma galera que me escreve e fala: “Que maneiro seu livro. Quero fazer também”. E eu: “Faz seu livro! Quero conhecer suas histórias!”. Muita gente me pergunta onde fiz o livro, com quem diagramei, como cheguei na editora mais barata… E vamo lá, vamo só fazer.
Hoje em dia mudou muito o jeito como as pessoas se relacionam com tudo isso. O alcance de internet é tão grande que o cara tenta ser grande no mundo antes de ser grande na cidade dele! A gente pirava em lotar em Empório. Não tem uma banda hoje em dia querendo lotar o Audio Rebel. Nego parece que já tá querendo ir mais adiante, tipo: “Quando é que eu vou tocar no Maracanã também? Los Hermanos já tocou!” (risos). Bom, eu queria inspirar as pessoas a terem resultados maneiros e pra mim o melhor resultado que cheguei até hoje foi o livro. Achei que dava trabalho e foi o maior barato escrever. E dá pra sonhar com alguém falando: “Pô, eu caí muito dentro de uma parada porque li aquele livro”.
Você falou de Los Hermanos e muita gente comprou o livro para ver as histórias suas com a banda. Como você vê essa conexão e como tem sido o contato com os fãs deles? Bom, desde a turnê de 2015 sou o responsável pelo merchandising deles. Você acaba batendo papo com as pessoas da lojinha, numa hora você conta que tocou na banda… Quando fiz o crowdfunding, o produtor deles, o Alex, foi um dos primeiros a entrar. Ele e o Barba foram no show de lançamento pegar o livro. Depois o Alex me falou: “O livro tá muito legal, vamos vender na lojinha”. Na lojinha tem um menu com camisa, ecobag, LP e… “livro do Melvin” (risos). As pessoas sempre perguntam: “Mas quem é Melvin e por que o livro dele tá aqui?” (risos). E é uma deixa, como aquela sobremesa especial do Outback que os funcionários vão adorar explicar. É o item do menu que nosso funcionário vai adorar explicar: “Ah, o Melvin tá aqui, é amigo deles, já tocou na banda”. Volta e meia alguém se interessa. O Marcelo (Camelo) já veio comentar do livro, falou de algumas histórias. Tá fluindo bem no universo deles. O show que fiz com o Los Hermanos eu subi no YouTube, inclusive.
Tá no YouTube? Sim, o da final da turnê do Bloco do eu sozinho (em 2002). Mas tem coisas ali que são raras em vídeo. Não sei exatamente o que é, mas tem coisas que são meio raras ali, volta e meia comentam. Tem um cara achando que eu sou o Patrick (Laplan, ex-baixista da banda).
https://www.instagram.com/p/BxHqW0KlxtB/
E como você analisa esse sucesso que os Hermanos fizeram até chegar no Maracanã? No livro eu falo uma coisa que eu não consigo falar diferente… Durante muito tempo vi as pessoas usando eles como referência, porque a relação que aquelas músicas criaram com os fãs é uma loucura. Ninguém acreditava no Maracanã, um amigo meu foi e não estava acreditando lá (risos). Ele chegou cedo pro Tim Bernardes e quando viu o estádio vazio falou: “Ufa, achei que eu estava ficando maluco”. Só que depois ele viu o estádio enchendo e falou: “Caralho, eu tô maluco mesmo!” (risos). Eu fico na gerência, correndo de uma lojinha para outra, e sempre tento ver o início do show. Ver o cara tocando A flor e levantando o Maracanã, uma Fonte Nova… É sempre emocionante. O do Maracanã, eu lembro de ter visto uma galera falar depois: “Ah, vou pra São Paulo ver!”. Eu sempre falava: “Cara, vai, mas o que rolou no Maracanã não pode ser recriado”. Acho que pesou pra todo mundo, tava todo mundo com nó na garganta, senti a banda eletrizada de outro jeito. E não tem explicação, não tem fórmula mesmo. Acho quase uma ofensa alguém se achar muito conhecedor do business e achar que descobriu a fórmula que está por trás. Não tem isso! É uma relação dos fãs com as músicas que eu vi poucas vezes na vida.
Algum recado para quem não conhece o livro? Bom, quem se interessar fico muito feliz. São os maiores sucessos das histórias que eu já contei várias vezes, e o livro mostra um pouco do que foi ter banda nesses vinte anos. Viajei em van com banda, fui pra fora com baixo nas costas… O livro é uma forma de retratar isso sem ter a pretensão de dar uma forma definitiva. Nem eu, nem Panço nem Pedro de Luna saímos para escrever a verdade absoluta disso tudo. Quem ler todos esses livros vai ter um entendimento mais legal.
Fotos: Divulgação/André Oliveira
Crítica
Ouvimos: The The, “Ensoulment”
- Ensoulment é o novo disco do The The, banda-de-um-homem-só criada em 1979 pelo músico Matt Johnson, sempre com o auxílio de convidados. O disco sai pelo Cineola, selo criado pelo próprio Matt, que abarca também uma rádio com o mesmo nome. A produção foi feita por Matt e Warne Livesey.
- No começo da epidemia de covid-19, Matt foi internado para remover um abcesso da garganta. Depois disso, ele ficou seis meses sem cantar. A estadia sombria no hospital vazou para uma das faixas do novo disco, Linoleum smooth to the stockinged feet. “Talvez eu tenha morrido. Pensei que era isso que tinha acontecido. Estou morto. Agora estou naquela sala de espera entre o céu e o inferno”, contou ao The Independent.
The The é a banda-de-uma-pessoa-só que tem hits como Uncertain smile, This is the day e Slow emotion replay – músicas que já animaram festas por aí e que costumam rolar em rádios rock, das mais ousadas às mais motoclubistas e conservadoras. O fato de terem vindo dos anos 1980 e terem uma estética que fica a meio caminho de grupos como The Cure e New Order, ajudou nesse sucesso aqui no Brasil, claro.
Bom, não é bem por ai. Matt Johnson, criador e único integrante oficial do grupo, já foi louco de tacar pedra. Um dos maiores hits da banda é o eletrogótico Infected, e a coleção de clipes Infected: The movie, lançada em 1986, traz vídeos em que o cantor se mete em brincadeiras bastante arriscadas. Tipo descer um rio selvagem num barco, só que amarrado numa cadeira, ou contracenar com uma cobra. O período em que Matt chamava Jesus de Genésio por causa das drogas se foi, sua banda passou a ser mais conhecida como autora de trilhas sonoras e, em 2018, anunciou o retorno dos shows ao vivo.
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O sombrio Ensoulment, álbum novo do The The, continua na linha de mostrar que o grupo de Matt Johnson sempre esteve mais para banda pop dirigida por Tim Burton do que pra autores de jingle radiofônico de loja de surf wear (Slow emotion replay, a “da gaitinha”, foi por muito tempo usada no Rio de Janeiro exatamente para essa função). Era o que vinha acontecendo nas trilhas sonoras feitas pelo The The e foi o que rolou no obscuro disco NakedSelf (2000), basicamente um álbum de rock industrial.
Ensoulment é uma trilha para um filme que possivelmente só existe na cabeça de Matt, e cujo design sonoro está mais para discos de Iggy Pop e Leonard Cohen do que para qualquer som de festa, como rola na abertura com a climática Cognitive dissident e na folk e nostálgica Some days I drink my coffee by the grave of William Blake – esta com melodia delicadamente sampleada de The house of the rising sun, tema tradicional imortalizado por The Animals. O blues maldito Zen & the art of dating lembra uma mescla de David Bowie e Marilyn Manson, enquanto Kissing the ring of POTUS é uma balada de terror, e Life after life volta a mexer no baú de Leonard Cohen. Ajuda o fato de Matt ter enfatizado mais ainda o registro grave de sua voz com o passar dos tempos.
Daí para a frente, o álbum traz músicas como a funérea e romântica I want to wake up with you, o blues de piano fantasmagórico Down by the frozen river, o r&b lúgubre de Risin’ above the need e o folk de outros mundos de Where do we go when we die?. Sem contar as lembranças sombrias da estadia num hospital em Linoleum smooth to the stockinged feet. E assim Ensoulment é a volta do The The num clima de fantasia, mais narrativo e sofisticado.
Nota: 8,5
Gravadora: Cineola
Crítica
Ouvimos: Nando Reis, “Uma estrela misteriosa”
Se você não for exatamente um/uma fã ardoroso (a) de Nando Reis, provavelmente vai achar um enorme exagero o lançamento de um álbum triplo de carreira do cantor. Vale acrescentar que poucos artistas se aventuraram por esse tipo de formato, e entre eles estão Smashing Pumpkins e ninguém menos que Nelson Gonçalves. E que, se em outros tempos, uma ousadia dessas era sinal de que há público pagante, hoje em dia, com os mistérios das redes sociais e das plataformas, tudo fica na base do ”só vendo”.
No caso de Uma estrela misteriosa – que na versão em vinil ainda ganha um LP bônus, estendendo o título do álbum com o rabicho …revelará o mistério – Nando volta ao noticiário com um projeto tão ambicioso quanto a turnê Encontro dos Titãs, sua ex-banda. Tudo bem conveniente para um artista que sempre soube usar muito bem a mídia e suas ramificações (show, lançamentos ao vivo, feats, podcast, entrevistas, canal do YouTube). E tudo, quem sabe, ótimo para os fãs, que ganham o primeiro material verdadeiramente novo do cantor desde 2016, quando saiu Jardim-pomar. Não custa lembrar que Nando, mesmo sendo parte integrante do mainstream musical brasileiro, é um artista independente, não está rasgando dinheiro, e o projeto todo deve ter partido de uma relação custo-benefício (que já rendeu além do disco, uma turnê por todo o Brasil), e não de megalomania patrocinada por uma gravadora.
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Se o disco triplo é bom… Aí vamos por partes. Em sua obra, Nando costumeiramente se dá melhor quando veste a capa de uma certa MPB heartland, baseada em riffs roqueiros, argamassa quase pesada, letras que mostram detalhes diferentes do cotidiano, e um certo romantismo idealizado, de retorno ao passado – lembrando uma mescla pouco usual de Roberto & Erasmo e Neil Young. Em Uma estrela misteriosa, essa estética toma conta do disco 3, em faixas como O muro, Ginger e Red, Na lagoa e Tome o seu lugar. Rola também na abertura do set com A chave, e na fanfarra brega (no bom sentido) de Coragem é poder mostrar. Os arranjos de metais são uma atração à parte, soando em alguns casos como uma mescla de MPB popularesca dos anos 1970 e Dexy’s Mindnight Runners. Já Azul febril ameaça lembrar uma versão MPB-balada de Ballet for a rainy day, do XTC.
Por outro lado, tem as horas em que Nando parece lembrar que produz músicas para serem tocadas nas poucas rádios de MPB que ainda tomam conta do dial – e aí surgem músicas um tanto repetitivas, como Inverso, a balada blues Pedra fundamental e Daqui por diante. Como letrista, Nando não é como Gilberto Gil, que sabe misturar metáforas e conversas simples, às vezes numa mesma música. No disco triplo, essa disposição para exagerar nas imagens e patinar no hermetismo fica bem clara em várias letras. Por acaso, o álbum tem uma faixa, justamente Estrela misteriosa, que leva o discurso de O segundo sol para Júpiter, e que fala em “79 luas”.
Uma estrela misteriosa foi feito para os fãs de verdade – até pelo seu caráter exclusivista, de ser uma caixa de LPs – e provavelmente vai ser compreendido por eles devido a seu aspecto afetuoso. Como produto, rende altos e baixos. E Para quando o arco íris encontrar o pote de ouro, segundo álbum de Nando (2000) ainda é o disco recomendável a quem quiser encontrar MPB verdadeiramente ligada ao lado invernal da música dos anos 1990.
Nota: 7
Gravadora: Relicário
Crítica
Ouvimos: Velocity Girl, “UltraCopacetic (Copacetic remixed and expanded)”
No ano passado, os indies norte-americanos do Velocity Girl se reuniram para seu primeiro show depois de duas décadas separados. Sarah Shannon (voz), Kelly Riles (baixo), Jim Spellman (bateria), Archie Moore e Brian Nelson (ambos guitarra) aproveitaram para entrar em estúdio e remexer em seu disco de estreia, Copacetic, lançado originalmente pelo selo Sub Pop em 1992, e que agora retorna em edição remixada e expandida, com capa nova, e nome alterado para UltraCopacetic.
A edição nova traz as doze faixas do disco original, incluindo músicas queridas dos fãs, como Audrey’s eyes (cujo clipe passou até mesmo na MTV Brasil), Pop loser, Crazy town e a faixa-título. Além do som sombrio e levemente sessentista (e lembrando Velvet Underground) de Here comes. Complementando, surgem músicas de compactos, uma faixa inédita gravada nas sessões de Copacetic (e que se chama Even die) e faixas gravadas no programa do DJ britânico John Peel – incluindo duas faixas que não foram ouvidas desde a transmissão original.
No todo, um som angustiado e um espécie de primo em comum do shoegaze e do indie rock britânico. No comecinho, o grupo (que veio de Washington DC) dizia inclusive que bandas da Rough Trade e do começo do selo Creation haviam inspirado o som deles. E não custa lembrar que o nome do grupo foi tirado de Velocity girl, canção do Primal Scream, lançada numa época em que o grupo escocês estava mais próximo do jangle pop – aquele rock batido na guitarra, influenciadíssimo pelos anos 1960. Além disso, o VG era um exemplo de supergrupo indie, com ex-integrantes de bandas como Black Tambourine e Piper Club na formação.
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O Velocity Girl tinha raízes bem mais sessentistas do que fazia supor – e vale recordar que o grupo chegou a ser cortejado pela Silvertone, gravadora dos Stone Roses, mas se sentiu mais segura na Sub Pop. No caso de Copacetic, o que ficou mais na mente dos fãs era que o disco trazia canções bastante melodiosas, em meio a uma parede de guitarras e distorções, que também havia levado de roldão os vocais habilidosos de Sarah. Era basicamente um shoegaze mais melódico que o habitual, compreensível para fãs de bandas como Jesus and Mary Chain e Primal Scream.
Curiosamente, uma entrevista recente de Sarah e Moore à newsletter First Revival surpreende um total de zero pessoas: os integrantes da banda nem sabiam direito o que era shoegaze quando começaram a compor as músicas do disco, e foram descobrindo a posteriori que o som que faziam estava inserindo numa cena (“mas nunca fomos influenciados pelo Slowdive, ou por aquele som de guitarra etéreo”, diz Moore). Sarah, por sua vez, ouvia um tipo de música completamente diferente do rock indie da época – era fã de bandas como Fishbone e Trouble Funk.
O objetivo da nova edição é dar uma guaribada monstra no original, produzido e mixado por Bob Weston, um cara bem próximo do estilo de produção de Steve Albini – tocou com ele na banda Shellac e trabalharia inclusive como assistente dele no In utero, do Nirvana, lançado em 1993. Na época, o VG não entendia muito de produção, e Weston fez exatamente o que o grupo pediu para ele fazer.
O resultado é que a própria banda detestou o resultado final. Um texto do site Stereogum conta que o grupo pegou ranço a ponto de nem sequer ouvir o disco. O jornalista Rodrigo Lariu, que conta ter também ficado decepcionado com o álbum na época, enfatizou na Midsummer Madness que as masters do disco passaram anos sumidas, e só foram encontradas ano passado na casa da ex-sogra de Jim Spellman. “Pensa bem, você se separa da sua mulher e larga as masters de um disco seu na casa da mãe dela… é zero apego isso”, afirmou.
No tal papo com o First Revival, Moore entrega que alguns integrantes sentiram de cara que o disco não representava o que eles queriam. “Queríamos que soasse mais como os discos britânicos que estávamos ouvindo, comprimido, brilhante, um pouco psicodélico de um jeito pop barulhento, um disco adjacente ao shoegaze”, contou, acrescentando que os fãs do disco original podem perceber algumas mudanças na nova versão. “Uma das grandes coisas é que a bateria vai soar mais como bateria em um disco estilizado de new wave ou pós-punk (…) Não é o Copacetic que você ouviu antes, é para ser um disco falso de shoegaze”.
O shoegaze falca do Velocity Girl rendeu um grande álbum em 1992, mesmo não tendo saído como a banda achava que deveria soar – pela capa original, com uma foto distorcida e colorida, dá para notar que climas psicodélicos e nublados faziam mesmo a cabeça do quinteto. Detalhe: nos dois discos que o VG gravou depois de Copacetic (Simpatico!, de 1994, e Gilded stars and zealous hearts, de 1996) fica bem clara a disposição da banda de trabalhar numa zona entre o power pop, o punk e o rock herdado dos sons sessentistas. Não há distorções, as canções são privilegiadas, o esquema de composição e arranjo é quase beatle às vezes, e os vocais de Sarah soam límpidos e bem na frente.
Copacetic sobreviveu mesmo com os problemas de produção (que só hoje se tornam claros para vários fãs), e mesmo com o fato de vir de uma cena que, em termos de batidas na porta do mainstream, parecia esconder-se dentro de si própria. E a edição que retorna mostra, no entendimento do grupo, como ele deveria ter soado em 1992.
Nota: 8,5
Gravador: Sub Pop
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