Crítica
Ouvimos (com atraso): Boygenius, “The record”
Dá para dizer que 2023 foi o ano do Boygenius? Olha que é tentador: o disco da superbanda formada por Lucy Dacus, Julien Baker e Phoebe Bridgers já andou aparecendo em várias listas de melhores do ano, e desde o dia 11 de dezembro ostenta o título de “álbum do ano” dado pelo New Musical Express. Tornou-se um caso de disco comentado ao longo dos últimos meses (saiu em 31 de março), com direito a um complemento valoroso: o EP The rest, de faixas apresentadas em meio a turnê do debute, e que serve de acréscimo ao álbum.
Ouvido com atraso (tinha escutado faz tempo o primeiro EP do projeto, lançado em 2018, e só), The record serve como resumo de um ano complicado, de renovação e transição. O Boygenius foi renovador para as três cantoras também: uma banda surgida da identificação com compositores preferidos, da troca de e-mails e sentimentos, da maturação (já que o álbum demorou para sair) e da presença de mulheres no estúdio – o disco foi produzido por elas ao lado da australiana Catherine Marks.
O grupo surgiu também de uma visão irônica e contestadora do mundo patriarcal – o “garoto gênio” do título é a velha falácia do menino dotado de suposta inteligência, que, desde cedo, lida com pais parciais que acham que qualquer flatulência produzida por ele é uma obra-prima. Já o som da banda é trilhado num corredor diversificado, que une características de todas as três compositoras, encaixa células de folk e country numa moldura indie, e investe num lado bittersweet que torna canções como Emily I’m sorry, Not strong enough e True blue as trilhas sonoras perfeitas para momentos de angústia – não apenas na vida real, como num filme da Sessão da Tarde. Cool about it, por sua vez, espalha brasa para Simon & Garfunkel (a introdução lembra bastante The boxer, e o clima de rodinha de violão introspectiva domina o álbum). Já $20 traz influências de Velvet Underground e Pavement para a história.
Nas letras, as três mandam avisar que vão vivendo como podem. Mesmo tendo que lidar com gente falsa (Cool about it), pessoas imaginárias que nada acrescentam (Revolution 0 – que, na onda beatle do título, tem um verso que poderia ter sido escrito por John Lennon: “eu costumava pensar que se eu apenas fechasse os olhos, eu iria desaparecer”), amores que se foram (We’re in love), amores mal embrulhados e cagados (Letter to an old poet) e outros temas incômodos. Para ouvir no último volume e no repeat, tem a ironia fina de Satanist, que leva peso ao disco – mas curiosamente faz lembrar um pouco o XTC de Drums and wires (1979).
- E aqui está a matéria do NME sobre The record.
Nota: 9
Gravadora: Interscope.
Foto: Reprodução da capa do álbum.
Crítica
Ouvimos: Sophie, “Sophie”
- Sophie é o segundo disco, e primeiro álbum póstumo, da DJ e produtora inglesa Sophie. Foi feito a partir de gravações que ela vinha finalizando, e teve produção do irmão dela, Benny Long, que tomou à frente na produção após a morte da artista.
- Em 30 de janeiro de 2021, aos 34 anos, Sophie morreu ao cair acidentalmente do telhado de um prédio de três andares em Atenas, Grécia, enquanto tentava tirar uma foto da lua cheia. Artistas como Rihanna, Sam Smith, Vince Staples e Charli XCX deram declarações de condolências. Brat, disco novo de Charli, tem uma homenagem a ela na faixa So I (a letra: “quando eu faço músicas, lembro das coisas que você sugeria/’acelere mais’/será que você gostaria dessa música?”).
Há notícias de que a DJ e produtora Sophie estava preparando um álbum bem pop antes de morrer prematuramente. A artista britânica vinha trabalhando em casa na sequência do segundo álbum, Oil of every pearl’s un-insides (2018), e levando adiante uma carreira que se tornou conhecida pela criação de texturas e atmosferas sonoras, que influenciaram de Pet Shop Boys a Charli XCX.
Músicas mais antigas como It’s okay to cry, Vyzee, Ponyboy e Lemonade soam mais como pequenas mixtapes, miniexperimentos de estúdio, prontos para serem esticados por DJs e produtores como módulos dançantes – o tipo de som que funciona na pista de dança e vira viagem individual quando ouvido em casa. E que, como costuma acontecer em projetos de produtores, permite a entrada de obras em progresso lado a lado com canções prontas.
Essa noção de que o inacabado tem seu tempo e lugar é o que permeia Sophie, primeiro álbum póstumo da DJ e produtora – e um disco cuja conexão com o ouvinte é imensa, o que já era comum na obra dela (não se lança uma música chamada “é Ok chorar” à toa, enfim). O material abre com uma canção climática, monocórdica e fantasmagórica, Intro (The full horror), que se aproxima mais do rock alemão dos anos 1970 do que da dance music. Repletas de participações, as dezesseis faixas assemelham-se mais a beats e criações nas quais Sophie vinha trabalhando, embora, segundo a família, componham um disco que já estava quase completo em 30 de janeiro de 2021, quando a produtora morreu.
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Como costuma acontecer em discos póstumos, sempre parece que algo está faltando – no caso, Sophie entregou os vocais para convidados como Cecile Believe, Liz e a controversa Nina Kraviz, que dão um ar mais humano a músicas como o popzão de FM My forever, a atmosférica The dome’s protection e ao house irretocável de Why lies e Live in my truth. O techno mais frenético surge na experimental Berlin Nightmare e no gabber de Gallop – ambas com participações de Evita Manji – e na parte final de One more time. Não há nenhuma faixa mal diagramada no disco, mas em alguns momentos, fica a ligeira impressão de que muita coisa de Sophie ainda seria repensada, e que estava sendo gravada quase como um mostruário de trabalho – como se alguns beats pudessem ser reaproveitados aqui e ali.
Nos títulos e nas letras (ou frases usadas como letras simples), dá para perceber que Sophie acreditava de verdade em sua música como fator de transformação e de proximidade. E essas são as melhores características do disco. Não deve ser por acaso que o álbum termina com a bela e dançante Love me off Earth (“ame-me fora da Terra”), quase uma mensagem post mortem para seus fãs, num clima bem mais ameno do que o próprio começo do disco.
Já Always and forever, um house celestial e discreto (que pedia um remix ou uma segunda parte com beats mais fortes) gravado com a amiga Hannah Diamond, parece uma carta dos amigos para Sophie: “tudo está se afastando/para mais e mais longe/(…) para sempre e para sempre/estaremos brilhando juntos”. Esse clima de mensagens trocadas quase como numa tábua ouija é o que mais fica na mente no fim da audição.
Nota: 7
Gravadora: Transgressive Records/Future Classic
Crítica
Ouvimos: We Hate You Please Die, “Chamber songs”
- Chamber songs é o terceiro álbum da banda punk francesa We Hate You Please Die. O disco tem produção e mixagem de Guillaume Bordier. Na formação da banda, Mathilde Rivet (bateria), Chloe Barabé (vocais e baixo) e Joseph Levasseur (guitarra).
- O grupo foi um quarteto até 2023, quando o ex-vocalista Raphaël Balzary saiu. Chloé assumiu os vocais desde então. “Tive que arriscar no início de 2023, quando tivemos que compor rapidamente para os shows. Coloquei muita pressão sobre mim mesma. E sinceramente, fiquei estressada com essa virada. Esforcei um pouco a voz, me perguntando o que eu poderia fazer, o que eu gostava de fazer também”, disse ao site Mowno.
Mal dá para imaginar que o We Hate You Please Die é uma banda francesa. O som desse trio é barulho que parece feito nos anos 1990 em alguma garagem dos Estados Unidos, com direito a muitas microfonias, vocais raivosos e refrãos explosivos, como os de Adrenaline e Stronger than ever. As partes iniciais das faixas são pura preparação para a ação – é aquele tipo de música que prepara o ouvinte para algo que vai acontecer nas caixas de som, no palco ou até mesmo na plateia (dá para imaginar as rodas ao som de faixas como Automatic mode e Control).
Em boa parte do repertório de seu novo álbum, o We Hate You Please Die traz influências bastante óbvias de bandas como Babes In Toyland, como nos vocais de quase todo o álbum, nas paradinhas de Lust e na parede de ruídos que introduz Vampirized – e toma quase 5 segundos da faixa. Asshole e Hero são punk vintage lembrando X Ray Spex. A cavernosa e quase falada Sorority prega, entre microfonias: “somos mais fortes se estivermos juntas/as mulheres não são suas inimigas”. No final, os cinco minutos e a torrente de ruídos de Surrender. Se não ouvir em alto volume, nem tem graça.
Nota: 8
Gravadora: Nouveau Monde Artistes Services/Incisive Records
Crítica
Ouvimos: The Waeve, “City lights”
- City lights é o segundo disco do The Waeve, projeto dos músicos, vocalistas e compositores Graham Coxon (Blur) e Rose Elinor Dougall (artista solo e ex-The Pipettes). O disco tem produção de James Ford.
- O single You saw é definido pela dupla como “uma música sobre reconhecer como decisões aparentemente minúsculas podem ter um impacto sísmico no curso da vida de alguém, como às vezes parece que a maneira como as coisas acontecem é predestinada”.
- O nome The Waeve é “the wave” (a onda) na antiga grafia inglesa. A dupla foi batizada assim porque ambos os integrantes são piscianos e há muitas referências nas letras das canções do The Waeve à água e ao mar.
Sim, o mundo precisava de uma união perfeita entre pós-punk e pop sessentista. Sendo que “pop sessentista” aí aponta para uma mescla de Motown, girl groups, Velvet Underground, The Who, Kinks, Beatles, unidos com uma visão lúgubre do que é fazer um rock que vá além dos três acordes. E se não precisava, vai acabar achando que precisa logo após ouvir City lights, segundo disco do The Waeve.
É complicado apontar referências diretas no som de Graham Coxon (Blur) e Rose Elinor Dougall (ex-Pipettes), mas em músicas como Mouth to the flame, bate ponto uma sonoridade que junta Ultravox (o final lembra o metais-e-programação de Hiroshima mon amour), Roxy Music e até a fase solo de Pete Shelley (Buzzcocks). You saw é o mais próximo possível de uma união entre Todd Rundgren e ABBA. I belong to… transporta o clima sombrio de uma canção de Alice Cooper para a Inglaterra dos anos 1980. A balada mântrica Simple days, destacando os vocais de Rose, a parede de guitarra-e-efeitos de Broken boys e o folk agridoce e mágico de Song for Eliza May e Girl of the endless night levam o álbum para outros lugares, bem diferentes musicalmente.
Não existe nada de eminentemente “progressivo” em City lights. Se bem que a última faixa, a belíssima Sunrise, chega perto disso. É uma música de sete minutos, bastante associável a Pink Floyd, mas com uma filiação glam que a deixa próxima do David Bowie de músicas como Memory of a free festival. E é uma grande surpresa no fim do álbum.
Nota: 9
Gravadora: Trangressive
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