Crítica
Ouvimos: Blue Öyster Cult, “Ghost stories”
- Ghost stories é o décimo-quinto disco da banda norte-americana de rock pauleira Blue Öyster Cult. O grupo, que tem dois integrantes da formação original, os guitarristas e vocalistas Donald Roeser (o popular Buck Dharma) e Eric Bloom, avisam que se trata de seu último disco.
- A ideia do álbum veio da Frontier, gravadora italiana que lançou o disco mais recente do grupo, The symbol remains (2020, o primeiro em 19 anos). O material veio de faixas gravadas entre 1978 e 1983, menos a versão do grupo para If I fell, dos Beatles, gravada em 2016 no camarim de um show. Todo o material antigo foi digitalizado e reimaginado com uso de inteligência artificial, pelo guitarrista Richie Castellano e pelo produtor Steve Schenck.
- Buck Dharma está preparando material solo. E acredita que não sairá mais nada com o nome do grupo. “Neste ponto da nossa carreira, não acho que tenhamos nada para fazer. Não temos nada a provar. Portanto, não há razão para simplesmente lançar as coisas por si só”, contou à Billboard.
O Blue Öyster Cult é uma banda norte-americana dos anos 1970 cujo lançamento envolveu uma possibilidade, lançada por empresários e executivos, de serem o “Black Sabbath dos Estados Unidos”. Uma lorota daquelas, claro. O Sabbath já fazia muito sucesso em terras estadunidenses, já havia um grande nome do rock pauleira nos EUA naquela época (o Grand Funk) e o BÖC era estranho o suficiente para não garantir tanto sucesso quanto o grupo de Ozzy Osbourne.
A discografia do grupo tem quase tantas bolas-fora quanto o Sabbath pós-anos 1980, com discos que soam mais como tentativas de se manterem no mercado do que como obras dignas de nota. De qualquer jeito, eram a banda de hits como Don’t fear the reaper e Burnin for you, e de discos pesados e perfeitos como Tyranny and mutation (1973) e Agents of fortune (1976). Turnês lotadas em plena onda do rock de arena e do começo do heavy metal ajudaram a compor o cenário. As novas gerações por sua vez, devem lembrar do engraçadíssimo esquete do “more cowbell” associado ao hit Don’t fear the reaper. Houve quem ficasse sabendo da banda por causa disso.
Agora vem Ghost stories, que ao mesmo tempo é uma despedida e uma recordação do tempo áureo do Öyster. A banda, ainda com suas formações clássicas, deixou gravadas várias canções que ficaram de fora de seus álbuns lançados entre 1978 e 1983. O som era hard rock básico e radiofônico em faixas como Late night street fight (lembrando Alice Cooper e Thin Lizzy), no boogie de arena Cherry e no blues-rock herdado de Aerosmith e Led Zeppelin de Soul jive. Tem ainda uma balada quase progressiva, The only thing.
O grupo tentava parecer mais moderno em Don’t come running to me (que tem refrão grudento e sintetizadores) e soava próximo do pré-punk nas releituras de Kick out the jams (MC5) e We got to get out of this place (Animals). O lado mais sombrio da banda, que volta e meia aparecia em algumas faixas, surge em So supernatural, a cara do grupo no fim dos anos 1980. O material encerra com uma versão gravada recentemente de If I fell, dos Beatles, com a formação mais recente.
As sobras incluídas em Ghost stories são um bom reaproveitamento de material que andava há anos pelos arquivos do BÖC. O grupo já havia perdido o interesse em lançar novos discos e retornou em 2020 com The symbol remains, um lançamento até que bem legal. Agora é a vez da banda anunciar o fim e, pelo menos profissionalmente, adiantar o trabalho da morte, que parodiaram em Don’t fear the reaper.
Nota: 7
Gravadora: Frontiers Music
Crítica
Ouvimos: Ney Matogrosso & Hecto, “Canções para um novo mundo”
- Canções para um novo mundo é o novo disco de Ney Matogrosso, que marca a parceria dele com a banda-dupla Hecto, formada por Guilherme Gê (voz, teclados, guitarra) e Marcelo Lader (guitarra). O disco tem participações de Roberto Frejat, Ana Cañas e Will Calhoum (Living Colour), além de colaborações musicais com Paulo Sergio Valle, Mauro Santa Cecilia e Sergio Britto (Titãs), entre outros.
- “A decisão de gravar um álbum com a Hecto se deu pelo repertório, que eu gostei muito, além de adorar o rock. As letras são muito contundentes, o que me chamou a atenção. Aí eu canto, porque não tenho restrição. E olha, a parceria vocal com o Gê é uma novidade, né? Eu tinha feito isso só com o Pedro Luis, lá atrás (2004)”, diz Ney.
- “Ney caiu de cabeça no álbum e claro, o projeto se transformou profundamente, foi o começo de uma grande parceria. Além disso, a generosidade e tranquilidade dele no processo todo é um aprendizado pra qualquer artista”, revela Guilherme.
O universo do rock não é nada estranho para Ney Matogrosso – que começou numa banda do estilo, Secos & Molhados, e em 1976, já solo, transformou Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, numa canção perdida de David Bowie ou do T. Rex. Mas se alguém achava que faltava um disco “de rock” na discografia solo do cantor, não falta mais.
Acompanhado do Hecto, em Canções para um novo mundo, o cantor afia a pegada indo para os lados do rap-metal com herança de Titãs (a zoação cruel Pátria gentil, com linguagem de telemarketing), para o hard rock com referências de música latina e samba (Teu sangue) e para o samba-metal com guitarra pesada e pandeiro (Nosso grito). Solaris tem tom quase pós-punk, com violões lembrando R.E.M. e Smiths. Dessa música participa Roberto Frejat, o segundo convidado mais bem aproveitado do disco – o principal surge na abertura, em que Will Calhoun, da banda Living Colour, toca bateria em Pátria gentil.
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Em época de 40 anos de Rock In Rio (a primeira edição do festival, aberta por Ney em janeiro de 1985) e de memórias tristes evocadas pelo filme Ainda estou aqui, não surpreende a sinergia que vem de Canções para um novo mundo, disco cujas letras falam de situações lamentáveis do país, mas sempre enfatizando que algo novo bate na porta.
A faixa-título, lembrando a MPB pop dos anos 1980 (de discos como Ideologia, de Cazuza, de 1988), grita: “são as mesmas questões de Shakesperare/guerras e beijos (…)/ninguém pode impedir do novo mundo chegar”. Anonimato, MPB com pegada samba-rock vinda dos anos 1990, suscita várias questões: a letra trata da devolução à não-fama das pessoas que estão fora do universo dos algoritmos? Fala sobre alguém que é sempre apagado historicamente? O refrão traz a frase “que saudade de existir!”
Para fãs antigos de Ney, outra novidade é que o vocal do cantor foi gravado de maneira diferente no álbum, trazendo uma certa sujeira que dificilmente alguém vai ver num disco dele, ou mesmo num show. Canções para um novo mundo, mesmo não sendo propriamente um disco do cantor (é um álbum basicamente do Hecto, embora com personalidade vocal dada por ele) traz também um novo mundo para a história de Ney Matogrosso.
Nota: 9
Gravadora: Som Livre.
Crítica
Ouvimos: Sofia Freire, “Ponta da língua”
- Lançado em março de 2024, Ponta da língua é o terceiro álbum da cantora e compositora pernambucana Sofia Freire. No disco, ela cantou, compôs, produziu, editou e gravou todas as faixas. Por acaso, o estúdio dela se chama Eu Mesma Produções.
- Definido como dark pop, o disco veio de uma crise criativa da pandemia. “Fiquei abalada mesmo, uma vida em pausa. Sabe quando algo está na ponta da língua e não sai? Tive dificuldades de lidar e de entender meus sentimentos, quase uma crise existencial. De alguma forma transformei isso em letras e esse disco é fruto disso. Por isso, o nome”, reflete Sofia.
Tem quase um ano que Ponta da língua, terceiro álbum de Sofia Freire, chegou às plataformas. E como os bons discos de art pop fazem, ele aponta tanto para o futuro que parece um lançamento de 2025 ou 2026. Basicamente é um disco de MPB feito com base no synth-pop. Mas não pense na MPB dos anos 1980, porque o lance aqui é outro, unindo referências claras de música brasileira experimental, indie rock, indie pop, e até neo-soul – na viagem anti-letargia e pró-transformações de Autofagia, que abre o álbum.
Até mesmo o que poderia soar mais orgânico no disco, como a própria voz de Sofia, ganha tratamentos diferentes, e é inserido pela própria cantora como um instrumento a mais. Seja nas vozes sobrepostas que aparecem em quase todas as faixas – e que às vezes soam como Laurie Anderson – ou no design rítmico e ágil das interpretações de Sofia. É o que rola em Arrebento, que mescla ritmos orientais, synths que lembram músicas de Kate Bush e David Sylvian, e o próprio ritmo pessoal da cantora, na letra (“como uma criança/em sincera indisciplina/ri e chora estourando/os balões cheios de ar/quero logo estourar”, contando uma história que passa por feminismo, desejos e projetos).
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Ponta da língua tem uma espécie de tecno-reggae-brega, que é Minha imaginação, cuja sonoridade lembra o synthpop oitentista – os vocais que surgem como surpresas ao longo da música. Orlando lembra os lados mais experimentais do tecnopop. Big bang tem tom orientalista que lembra bandas como Japan e Ultravox, e uma letra que alude ao lado mais visionário e ficcionista-científico de Gilberto Gil. Na faixa-título, uma ótima marcação rítmica traz como surpresas micropontos de pop nacional oitentista, com destaque para versos como “não haverá mais dia/que se passe/sem que eu pense/sem que eu pulse de vontade/de tocar a minha liberdade/com a ponta da minha língua”.
Dentro de mim é outra pérola rítmica, com vocais quase mântricos e letra medindo os custos e benefícios das mudanças diárias (“dentro de mim/basta/ser quem eu sou/custa/ser quem vou ser”). Mormaço une pop sintetizado e Nordeste. E uma surpresa do álbum é Resta saber, que abre como um lounge anos 2000 e vai ganhando características de house music e de batidões dos anos 1990. Se por acaso você deixou escapar esse disco em 2024, ponha na lista do começo de 2025.
Nota: 9
Gravadora: Independente.
Crítica
Ouvimos: Andréa Dutra, “Entre nós”
- Entre nós é o sexto álbum da cantora carioca Andréa Dutra, viabilizado por financiamento coletivo, e produzido por ela e por Léo Freitas.
- O material foi todo composto por ela, e o álbum é de voz e piano, só que com uma diferença: ela aparece acompanhada por diversos pianistas diferentes ao longo das faixas do disco. Por acaso, é o instrumento que ela usa para compor e ensinar música (Andréa é preparadora vocal e professora de canto, além de jornalista).
- A arte da capa foi feita por Tito Faria.
Entre nós tem um formato simplificado e atraente: nove músicas de voz e piano, todas com letra e música de Andréa Dutra – que surge acompanhada por pianistas diferentes em cada faixa. O material, apontando para a união de samba e jazz em vários momentos, ganha inicialmente uma cara alegre e expansiva no single Acerto, torna-se misterioso e introvertido em Entre nós (com versos esperançosos e engatilhados, simultaneamente) e lírico em Valsa nº1. São as três primeiras faixas, nas quais Andréa é acompanhada, respectivamente, por Adriano Souza, Paulo Malaguti Pauleira e Itamar Assiere.
Os pianistas acompanham o estilo de cada música. Entre os melhores momentos, o tom percussivo e simultaneamente clássico de Léo de Freitas em Deixa quieto, que celebra a chuva como um momento de introspecção (“meu pai disse: fica em casa, tá chovendo/nesses dias nem precisa trabalhar/chuva é feita pra tirar férias da vida/de olhos presos na vidraça até passar”), a percussão pianística do samba alegre Dadivosa, tocada por Leandro Braga, e o clima bossa pop de Maio, com Sheila Zagury. Pedra e flor, com letra de volta por cima, une Andréa a três dos pianistas (Adriano Souza, Leo de Freitas e João Braga), entre bases, solos e balanços.
No final, as várias partes de Conselhos para um adolescente na ponte-aérea RJ-SP, uma das melhores letras do álbum, com Antonio Fisher-Band no piano. Como se escrevia em algumas capas de LPs nos anos 1980, “este é mais um disco independente”. De verdade.
Nota: 8,5
Gravadora: Peneira Musical
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