Crítica
Ouvimos: Arcade Fire, “Pink elephant”

O Arcade Fire sempre trafegou entre a empatia e a chatice pura e simples – uma zona nebulosa, na qual até Sting já patinou. Ao vivo, no entanto, a banda canadense é um dínamo, e sua discografia guarda obras poderosas, especialmente o trio inicial de álbuns, da estreia Funeral (2004) a The suburbs (2010). Mas o equilíbrio parece ter desandado com Pink elephant, primeiro trabalho após o chatinho We (2022) e as denúncias de má conduta sexual envolvendo o vocalista Win Butler.
Talvez como uma forma de responder a tudo que a banda viveu nos últimos tempos, Pink elephant, que é o sétimo álbum do Arcade Fire, vem com um ar estranho de natureza morta, como se deixasse no ar bem mais do que o que foi dito (e vale dizer que Butler não tem sequer dado entrevistas). Um clima de positividade tóxica invade a letra de Year of the snake, uma canção sobre mudanças forçadas, rupturas e coisas fora do controle. As duas vinhetas instrumentais do disco, com sonoridade perto do que se chamava antigamente de new age music (Beyond salvation e Open your heart or die trying) têm o mesmo clima – e causam o mesmo estranhamento.
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Mas isso não é nada perto do desespero de Circle of trust (“eu roubaria, eu mataria / eu mentiria por seu amor”). E é bem pouco perto de Alien nation, que consegue unir ódio e vibe gratiluz nos mesmos versos: “devolvo a meus inimigos toda a dor que eles gostariam ou poderiam ter, porque / eu devolvo esse mal a eles com amor, em nome da legião estrangeira”. Está tudo ali — torto, desajeitado, mas presente — como se Win Butler, mesmo negando as acusações, tentasse digerir publicamente o próprio cancelamento e as consequências pessoais que vieram com ele.
O Arcade Fire — e o casamento de Butler com Régine Chassagne, sua parceira na banda — sobreviveu a essa fase, mas não sem sequelas. Pink elephant parece um álbum feito a portas fechadas, praticamente um trabalho do casal, com participação crucial do co-produtor Daniel Lanois (cuja assinatura sonora é perceptível nas dez faixas). O resultado é um disco soturno, contido, sem explosão. Há uma dor evidente ali, mas é quase como se Butler quisesse que o ouvinte compartilhasse da penitência.
Entre as faixas bem resolvidas, tem o quase-shoegaze de Pink elephant e a música eletrônica de roqueiro de Alien nation, que lembra o single Witch, do The Cult, além do rock britânico do começo dos anos 1990. Stuck in my head, de sete minutos, é a única faixa exuberante no disco, com início lembrando New Order e Public Image Ltd e melodia crescente. O restante do disco é formado por músicas sombrias, que prometem algo, mas que no fim entregam pouca variedade e uma vibe que não avança, como no folk contemplativo Ride or die (que parece gravado no fundo de uma caverna), no synth pop texturizado e mal-humorado de Circle of trust e no tecnopop gélido e repetitivo de I love her shadow.
Havia uma expectativa — ainda que vaga — de que o Arcade Fire reencontrasse o frescor dos primeiros anos. Mas Pink elephant soa mais como uma sessão de terapia em forma de álbum do que como um abraço aos fãs de longa data.
Nota: 5,5
Gravadora: Columbia
Lançamento: 9 de maio de 2025.
Crítica
Ouvimos: Hyldon e Adrian Younge – “JID023”

RESENHA: Hyldon celebra 50 anos de seu primeiro álbum com o psicodélico JID023, feito com Adrian Younge e com as últimas gravações de Mamão, do Azymuth.
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É um momento ótimo para Hyldon, que acaba de ter sua história lembrada num documentário (As dores do mundo, de Emílio Domingos e Felipe David Rodrigues, em cartaz no festival In-Edit), comemora 50 anos de seu primeiro álbum, Na rua, na chuva, na fazenda e vem lançando coisas: já saíram dois singles – um deles é uma versão ao vivo da gozadora Três éguas, um jumento e uma vaca – e este álbum JID023, dividido com o produtor norte-americano Adrian Younge.
Adrian, um cara que sonhava com a música brasileira lá de longe e conseguiu trabalhar com vários de seus ídolos, tem uma perspectiva bem diversificada de música. Seus discos costumam descascar a música até sobrar nelas o que há de mais psicodélico, despojado, experimental e viajante. Foi assim quando ele trabalhou com Marcos Valle, Azymuth, João Donato – e também quando, recentemente, ele reuniu uma galera animada para gravar o ótimo disco solo Something about April III (que resenhamos aqui).
Trabalhando com Hyldon, não foi diferente – aliás o Hyldon de JID023 é o artista que observava os sons por um viés absolutamente pessoal em Deus, a natureza e a música (o segundo disco, de 1976) e que cantava as paixões possíveis e impossíveis a plenos pulmões em Nossa história de amor (1977). Músicas como Viajante do Planeta Azul e O caçador de estrelas alinham-se a uma perspectiva quase pinkfloydiana do soul, com psicodelia, climas viajantes e certa sensação de desnorteio – além de uma ambiência que lembra o Khruangbin.
Músicas como Um lugar legal e Olhos castanhos continuam na mesma vibe espacial, combinando jazz e soul. Jenipapo robô abre com sons distorcidos e, ao engatar, chega a lembrar um tema de série. Favela do Rio de Janeiro vai para a área do samba-soul e Verão na Califórnia (Summertime in California) é o lado hippie do álbum, com guitarra wah-wah e balanço latino. No final, o afrobeat panteísta de Nhandervuçu (The creator god) impressiona mais ainda.
E se mesmo depois disso ainda falta motivos para você ouvir JID023, vai aí mais um: ele tem as últimas gravações de Ivan Conti (Mamão), baterista do Azymuth morto em 2023. Ouça tudo no volume máximo.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 10
Gravadora: Jazz Is Dead
Lançamento: 4 de abril de 2025.
Crítica
Ouvimos: Azymuth – “Marca passo”

RESENHA: O Azymuth volta com Marca passo, disco que homenageia o saudoso baterista Mamão e reafirma seu samba-jazz elegante, nostálgico, vivo e (bastante) resistente.
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O trio carioca Azymuth tem mostrado com o passar dos anos uma resistência digna das bandas de rock mais duradouras: foram-se o tecladista José Roberto Bertrami e o baterista Ivan Conti (Mamão), e o baixista Alex Malheiros manda bala no “o show tem que continuar”. Kiko Continentino já assumira os teclados após a partida de Bertrami (em 2012) e o experiente Renato Massa hoje ocupa as baquetas. Marca passo, novo álbum do grupo, foi anunciado pela gravadora britânica Far Out justamente quando completávamos dois anos sem Mamão (17 de abril).
O Azymuth não ressurge com nenhum hit de assimilação rápida, como aconteceu com as quase gêmeas Na linha do horizonte e Voo sobre o horizonte, e com a misteriosa Melô da cuíca – por sinal, as três impulsionadas por trilhas de novela, Cuca legal (1974), Locomotivas (1977) e Pecado capital (1975). Mas a banda ressurge afiada, com sua mistura vintage de samba, jazz, soul e pop que sempre definiu sua música. Tem o clima retrô de Fantasy 82, o balanço elegante de Marca tempo e O mergulhador (com vocoder nos vocais), e a beleza percussiva e quase etérea de Crianças valentes – faixa que parece pedir uma letra e um vocal feminino.
- Ouvimos: Marcos Valle – Túnel acústico
- Marcos Valle: “Por causa de Estrelar, em 1983, eu virei o Xuxo” (entrevista)
O trio também homenageia Mamão com a melódica Samba pro Mamão, que parece evocar trechos de O Guarani, de Carlos Gomes. Ainda revisita Last summer in Rio, do álbum Telecommunication (1983), agora com a guitarra de Jean Paul “Bluey” Maunick, do Incognito. E mostra que o samba-jazz ainda pode ganhar as rádios com Andaraí, samba-jazz simples ágil e rimado, com letra curta que combina “Andaraí” e “Icaraí”, entre outros lugares. Pra ouvir logo cedo e sair bem no dia.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Far Out Recordings
Lançamento: 6 de junho de 2025
Crítica
Ouvimos: Luedji Luna – “Antes que a Terra acabe”

RESENHA: Luedji Luna mergulha no romantismo cru em Antes que a Terra acabe, disco pop-soul com Arthur Verocai, dream pop, bossa e até pitadas de trap e psicodelia.
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“Enquanto o primeiro disco ilustra minha busca por amar e ser amada, o segundo revela até onde eu posso ir para resolver essa carência”, contou Luedji Luna, para diferenciar Antes que a Terra acabe de sua primeira parte, Um mar pra cada um, lançada uma semana antes (e resenhada pela gente aqui).
O título do álbum anterior terminava com uma vírgula — uma pista de que aquele pop marítimo teria continuação. E teve. Antes que a Terra acabe sugere uma virada mais seca e menos solar, mas entrega um disco de neo-soul de espírito hedonista, muitas vezes mais pop do que seu antecessor.
Ainda assim, há ousadias. Apocalipse, com Seu Jorge, ganha arranjos do veterano Arthur Verocai. Pavão flerta com o dream pop em algumas passagens, falando de um relacionamento em desequilíbrio. Bonita, gravada com participação de Alaíde Costa, mistura português, francês e inglês sobre uma bossa delicada.
- Ouvimos: Alaíde Costa – Uma estrela para Dalva
- Ouvimos: Raquel – Não incendiei a casa por milagre
- Ouvimos: Josyara – Avia
- Ouvimos: Assucena – Lusco fusco
Já nas letras, Antes que a Terra acabe investe pesado num romantismo cascudo, acostumado a lidar com frustrações, mas na espera do melhor. Como o amor não realizado de Imã, a vibe platônica do reggae soul Mara (com trecho de letra herdado de Beijo partido, de Toninho Horta) e o amor infiel do samba-reggae Iôiô. Já a ótima Às cegas é jazz-samba-soul sobre uma paquera duvidosa e sem muitas pistas.
Antes que a Terra acabe une também elementos de trap nos vocais e nas batidas de No Farol da Barra. E chega perto de um pop psicodélico e viajante em faixas como Requinte (com Zudizilla) e Outono, na qual teclados e programação parecem reproduzir a calmaria da estação.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8
Gravadora: Independente
Lançamento: 13 de junho de 2025.
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