Cultura Pop
David Bowie e Marianne Faithfull: aquele clima decadente que o mundo precisa
Em 16 de novembro de 1973, os fãs de David Bowie assistiram na ABC à última apresentação do cantor ao lado de dois dos Spiders From Mars, Mick Ronson e Trevor Bolder. Foi quando David comandou o programa de TV The Midnight Special, num evento gravado nos dias 18 e 19 de outubro daquele mesmo ano, no Marquee Club de Londres. E que ao ser levado à tela da TV, ganhou o nome de The 1980 Floor Show.
O programa todo misturava repertórios de discos como Space oddity (1969), The rise and fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (1972), Alladin Sane (1973) e até Diamond dogs (1974), que só sairia no ano seguinte. Tem também músicas do disco de covers Pin-Ups (1973) – entre elas o clipe de Sorrow, original dos McCoys.
Se você nunca viu, tá aí embaixo. Foi a primeira apresentação do cantor após dizer no palco que o show de 3 de julho de 1973 no Hammersmith Odeon seria “não apenas o último da turnê, mas o último que farei”.
A ideia original de Bowie era promover uma “extravagância” no palco, inspirada na linguagem do teatro e do cabaré. Convidou para estar com ele nessa Amanda Lear, The Troggs e Carmen, um grupo espanhol de flamenco glam, além de Marianne Faithfull. E arrebanhou para a plateia um punhado de rockstars e integrantes de seu fã-clube. Para os fãs, seria também a última oportunidade de ver Bowie tirando Ziggy Stardust da tumba, usando o visual do personagem durante quase toda a apresentação.
Michael Lipman, um advogado de Los Angeles especializado na indústria da música, criou um acordo para que Bowie pudesse ter total controle artístico. Nem tanto: o cantor chegou a aventar a possibilidade de que tudo fosse exibido ao vivo pela NBC, mas a estação achou que ficaria muito caro e não topou. O nome do especial, 1980 Floor, aliás, é um trocadilho maluco com “1984”. Vale lembrar que Bowie queria que Diamond dogs fosse a versão musicada de 1984, livro de George Orwell. O que acabou não acontecendo (o disco é apenas inspirado na obra).
Mas o que vale mesmo chamar a atenção na ida de Bowie ao Midnight Special é a dupla dinâmica formada pelo cantor com Marianne Faithfull. Os dois fizeram uma versão absolutamente bizarra de I got you babe, de Sonny & Cher, com desafinações e vocais lúbricos. Marianne usa um hábito de freira que mais parece uma piada com sua própria imagem no filme Lucifer rising, de Kenneth Anger. Bowie veste uma fantasia maluca que ele mesmo classificou como “o anjo da morte”.
O clima de doideira dos dois era tão grande que Marianne faz questão de puxar o hábito para mostrar que não usa nada por baixo. Essa imagem aparece por alguns segundos na filmagem bruta do encontro, logo no comecinho.
Essa é a versão que foi para a transmissão de TV, sem a tal molecagem de Marianne.
Via 5 Years e Rhino.com.
Crítica
Ouvimos: Chico Chico, “Estopim”
- Estopim é o segundo álbum solo de Chico Chico, produzido por Pedro Fonseca e Rafael Ramos. É o segundo lançamento do cantor pela Deck – em 2023 saiu o EP Espelho. Nomes já conhecidos dos álbuns dele, como Julia Vargas, Tui Lana e João Mantuano, participam do álbum.
- Pedro, que vem trabalhando com o cantor desde 2023, “entendeu bem essa dualidade das composições, tanto das imagens rurais quanto das urbanas que permeiam meu trabalho e se fazem presente neste álbum”, diz Chico.
- Nomes como Marlon Sette (trombone), Walter Villaça (guitarra e violão de aço), Thiago da Serrinha (percussão) e Jorge Continentino (sax barítono, flauta e pife) estão na lista de músicos.
Segundo álbum individual de uma carreira bastante voltada a registros em dupla ou grupo, Estopim é o disco mais sistemático (vamos dizer assim) que Chico Chico conseguiu fazer até o momento. E ele conseguiu isso numa gravadora de porte – a Deck -, sem abdicar da identidade própria que havia em todos os lançamentos anteriores. No novo álbum, a voz dele, mais até do que lembrar a da mãe Cássia Eller, soa como vários anos de história da MPB pós-tropicalismo condensados numa pessoa só – numa onda musical que abarca Elis Regina, Luiz Melodia, Gilberto Gil e até Oswaldo Montenegro.
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Nem parece, mas a carreira discográfica de Chico Chico já está prestes a completar dez anos – sua estreia 2×0 Vargem Alta, que era na verdade a estreia epônima de uma banda (formada por ele e vários amigos), saiu em outubro de 2015. A sonoridade quase blues e predominantemente acústica do disco ainda dá as caras em Estopim mas foi sendo acrescida de outros elementos, cabendo o soul forte de Parado no vento (na qual o registro vocal do cantor lembra o de Cazuza), o rock nordestino à moda de Alceu Valença e Raul Seixas em Toada, um som mais pop e suingado em Terra à vista (que por sinal foi o primeiro single do álbum) e uma MPB bem próxima da sonoridade pop setentista em Vai. Além do frevo de Moda do chapéu e do pop com sonoridades arábicas de Acorda Zé.
Quem curtiu músicas folk e brasileiras de Chico como Ribanceira (cujo potencial levou-a à trilha do remake da novela Pantanal) vai ficar feliz com o forró folk ágil de Altiva, gravada com Juliana Linhares, e com a interiorana Urminino, com participação (infelizmente pouco audível) de Julia Vargas. De novidade, tem a experimental Abismo, uma canção cujo arranjo é composto de várias vozes sobrepostas.
Nota: 8,5
Gravadora: Deck.
Cultura Pop
No nosso podcast, Talking Heads e a época de “Stop making sense”
David Byrne, Jerry Harrison, Tina Weymouth e Chris Frantz, os quatro integrantes dos Talking Heads, pareciam “artísticos” e diferentões demais para serem uma banda do mainstream – e mesmo na turma que girava em torno do CBGB’s, boteco roqueiro de Nova York, tinha gente que olhava torto pra eles. No entanto, se bobear você conhece pelo menos uma dezena de músicas deles. E sua rádio rock favorita toca pelo menos Psycho killer, And she was e Wild wild life todos os dias. E a última festa rocker que você foi botou geral pra soltar a voz no quase-hit The road to nowhere, ou no batidão Burning down the house.
Naturalmente, um projeto tão aberto a influências e novidades tinha que chegar nas telonas, e lá foram os Talking Heads dar aquela revolucionada no universo dos filmes de shows de rock e lançar Stop making sense (1984), que está de volta aos cinemas, remasterizado. E o Pop Fantasma Documento, podcast do site Pop Fantasma, dá hoje aquele sobrevoo no antes, durante e depois do filme, focando no período que vai do excelente disco Speaking in tongues (1983) ao magistral Little creatures (1985). Ouça, e depois ouça tudo dos Talking Heads.
Século 21 no podcast: Master Peace e Exclusive Os Cabides.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Laurie Anderson, “Amelia”
- Amelia é o décimo-terceiro álbum* da musicista de vanguarda Laurie Anderson, cujo tema é o voo solo ao redor do mundo feito pela aviadora norte-americana Amelia Earhart (1897-1937). Pioneira na defesa dos direitos das mulheres e detentora de vários recordes de aviação, Amelia, durante o voo, acabou desaparecendo no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland.
- Além de Laurie (voz, viola, teclados e eletrônicos) participam do disco a orquestra checa Filharmonie Brno, os norte-americanos do Trimbach Trio, a cantora Anohni (dos Johnsons) e um grupo que inclui músicos como Marc Ribot (percussão) e Martha Mooke (viola).
- “Amelia estava fazendo uma coisa realmente perigosa. Ela era muito prática, diferente de Charles Lindbergh, que era um piloto de luvas brancas em muitos aspectos. Ela realmente estava trabalhando com os caras sob o capô”, contou Laurie (segundo a Billboard), lamentando que quase cem anos depois do desaparecimento de Amelia, “as meninas ainda não sejam realmente encorajadas a fazer engenharia”.
- No Grammy 2024, Laurie ganhou uma estatueta pelo conjunto da obra. “Fico feliz do Grammy ter visto o que faço como música, porque eles geralmente ignoram coisas experimentais”, afirmou.
Quem curte sonoridades experimentais e art pop vai se sentir tentado/tentada a dar uma olhadinha no disco novo de Laurie Anderson só de ver a lista de faixas. Amelia tem uma formatação bastante curiosa: são 22 faixas em 34 minutos de duração, divididas na maior parte do tempo em canções de pouco mais de um minuto – há micromúsicas de trinta segundos e algumas (poucas) com duração mais extensa. O recheio também é instigante: Laurie voltou a uma peça musical sua que já tinha sido levada ao palco há 25 anos, sobre a história de Amelia Earhart, uma mulher norte-americana que em 1937 ousou ser a primeira aviadora a dar uma volta solo ao redor do mundo, passando inclusive pelo Brasil – e morreu durante a jornada, após faltar combustível e o contato via rádio desaparecer.
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Amelia faz uma jornada conceitual pela história do voo solo, unindo sons orquestrados, efeitos de som e vocais falados/cantados, além das intervenções de Anohni em seis faixas. A partir de To circle the world, na abertura, fica claro que o foco está nas lembranças póstumas de Amelia (“é o som do motor/o que eu mais me lembro”, recita Laurie) e seu roteiro de viagem – chegando nas tentativas frustradas de comunicação em Radio, tema orquestral e climático que serve como um portal para a personagem, e é seguida pelo encerramento com os ruídos marítimos de Lucky dime. Os problemas enfrentados durante a viagem são musicados e transformados num diário da aviadora – a faixa Brazil, por exemplo, fala em estática no rádio e céu carregado, mas traz uma nota de otimismo: “o céu tem muitas avenidas e ruas/mas você tem que saber como encontrá-las”.
De modo geral, Amelia deve ser entendida como um espetáculo que pode ganhar uma contrapartida multimídia – em filme, peça, inteligência artificial, ou o que o valha – e que, em disco, instiga bastante a imaginação de quem ouve. O vocal de Laurie, sempre firme e relaxante, alivia a tristeza da história de Amelia. Laurie, impactada pelo pioneirismo da aviadora, incluiu também notas de feminismo na história, em The word for woman here e em This modern world, que inclui um pequeno trecho narrado pela própria Amelia (afirmando que “este mundo moderno de ciência e invenção é de interesse particular para as mulheres, pois as vidas das mulheres foram mais afetadas por seus novos horizontes”).
Nota: 8
Gravadora: Nonesuch
* Obrigado a Johann Heyss pela correção – tínhamos escrito que era o oitavo disco
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