Cultura Pop
Caso Verdade: televisão MUITO realista na Globo dos anos 1980
Em algum momento na primeira metade dos anos 1980, a televisão brasileira ganhou ares de mundo cão. O povo na TV, programa sensacionalista do recém-criado SBT de Silvio Santos, tinha conseguido, nas tardes dos dias de semana, audiência suficiente para incomodar a Rede Globo.
O canal dos Marinho prosseguia na antiga receita de jornal, reprise de novela, filme da Sessão da Tarde, novela e jornal de novo. Não parecia a maneira mais correta de mostrar ao público o que realmente estava acontecendo no dia a dia, mas ainda assim a Globo passava (muito) na frente qualquer outro canal em termos de audiência. De qualquer jeito, a estação decidiu contra atacar O povo na TV – que exibia curandeirismo, violência, ações policiais, gente sendo operada ao vivo e gente morrendo na frente das câmeras – com algo parecido mas que tivesse (hum) proposta. Era o Caso Verdade, supervisionado por Paulo José, com participações de vários diretores e autores e com séries semanais que contavam histórias reais (enviadas por cartas).
Quem tinha por volta de sete, oito anos em 26 de abril de 1982, quando o Caso Verdade estreou na Globo às 17h30, provavelmente foi muito marcado pelo programa, que estreou logo com a história de uma criança que estava ficando cega, O menino do olho azul. Não era exatamente o tipo do programa mundo cão: num papo com o Jornal do Brasil em 11 de abril de 1982, pouco antes da estreia, Paulo José dizia que a ideia era trabalhar com emoções mas sem sensacionalismo, e que depoimentos sequelados eram deixados de lado imediatamente. “Algumas mensagens são apelativas ou até malucas, como a de uma mulher que julga ser perseguida por Silvio Santos através da televisão”, afirmava. No último episódio de cada história – que durava uma semana – o personagem da vida real e o ator da ficção se encontravam.
A novidade (bom, novidade?) é que quem quer recordar alguns dos programas encontra um ou outro vídeo no YouTube.
O Caso Verdade foi dando uma mudança geral nos programas conforme os anos foram passado (durou até 1986!) justamente porque alguns espectadores ficavam meio assustados: o programa tratava de temas como suicídio, doenças, drogas, rebeldia familiar, gente presa sem motivo, calúnia e difamação, etc. A censura ficava igualmente de olho.
Num determinado momento, o programa passou a apresentar histórias de amor e novelinhas contando a história de gente famosa, por causa das reclamações de alguns espectadores. Até isso acontecer, rolaram até umas coisas na linha “incrível, fantástico e extraordinário”, como a história de um sujeito que fez contato com ETs, foi passear de disco voador e nunca mais foi visto (isso rolou no programa O homem do disco voador, exibido de 15 a 19 de novembro de 1982).
Várias histórias eram bem corajosas para o começo dos anos 1980: durante uma semana os telespectadores puderam acompanhar os preconceitos enfrentados por um casal interracial (Amor em preto e branco), ou por uma mulher gorda (Gorda sim, por que não?). Ou até mesmo a vida da escritora Carolina Maria de Jesus, em 1983 (Quarto de despejo – de catadora de papéis a escritora famosa). Histórias envolvendo religião e milagres eram exibidas num horário bem acessível e que todo mundo pudesse assistir. Tanto que até mesmo a história da vida de Chico Xavier passou por lá. E mais ou menos no horário da Malhação.
O programa durou só mais quatro anos e acabou sendo substituído por um rolé de outras atrações, que iam desde novelas, desenhos animados e filmes até a série americana Primo Cruzado. Deixou marcas não só pela união de jornalismo e teledramaturgia, como também por mexer com questões meio sérias durante um horário bem ameno.
Crítica
Ouvimos: Chico Chico, “Estopim”
- Estopim é o segundo álbum solo de Chico Chico, produzido por Pedro Fonseca e Rafael Ramos. É o segundo lançamento do cantor pela Deck – em 2023 saiu o EP Espelho. Nomes já conhecidos dos álbuns dele, como Julia Vargas, Tui Lana e João Mantuano, participam do álbum.
- Pedro, que vem trabalhando com o cantor desde 2023, “entendeu bem essa dualidade das composições, tanto das imagens rurais quanto das urbanas que permeiam meu trabalho e se fazem presente neste álbum”, diz Chico.
- Nomes como Marlon Sette (trombone), Walter Villaça (guitarra e violão de aço), Thiago da Serrinha (percussão) e Jorge Continentino (sax barítono, flauta e pife) estão na lista de músicos.
Segundo álbum individual de uma carreira bastante voltada a registros em dupla ou grupo, Estopim é o disco mais sistemático (vamos dizer assim) que Chico Chico conseguiu fazer até o momento. E ele conseguiu isso numa gravadora de porte – a Deck -, sem abdicar da identidade própria que havia em todos os lançamentos anteriores. No novo álbum, a voz dele, mais até do que lembrar a da mãe Cássia Eller, soa como vários anos de história da MPB pós-tropicalismo condensados numa pessoa só – numa onda musical que abarca Elis Regina, Luiz Melodia, Gilberto Gil e até Oswaldo Montenegro.
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Nem parece, mas a carreira discográfica de Chico Chico já está prestes a completar dez anos – sua estreia 2×0 Vargem Alta, que era na verdade a estreia epônima de uma banda (formada por ele e vários amigos), saiu em outubro de 2015. A sonoridade quase blues e predominantemente acústica do disco ainda dá as caras em Estopim mas foi sendo acrescida de outros elementos, cabendo o soul forte de Parado no vento (na qual o registro vocal do cantor lembra o de Cazuza), o rock nordestino à moda de Alceu Valença e Raul Seixas em Toada, um som mais pop e suingado em Terra à vista (que por sinal foi o primeiro single do álbum) e uma MPB bem próxima da sonoridade pop setentista em Vai. Além do frevo de Moda do chapéu e do pop com sonoridades arábicas de Acorda Zé.
Quem curtiu músicas folk e brasileiras de Chico como Ribanceira (cujo potencial levou-a à trilha do remake da novela Pantanal) vai ficar feliz com o forró folk ágil de Altiva, gravada com Juliana Linhares, e com a interiorana Urminino, com participação (infelizmente pouco audível) de Julia Vargas. De novidade, tem a experimental Abismo, uma canção cujo arranjo é composto de várias vozes sobrepostas.
Nota: 8,5
Gravadora: Deck.
Cultura Pop
No nosso podcast, Talking Heads e a época de “Stop making sense”
David Byrne, Jerry Harrison, Tina Weymouth e Chris Frantz, os quatro integrantes dos Talking Heads, pareciam “artísticos” e diferentões demais para serem uma banda do mainstream – e mesmo na turma que girava em torno do CBGB’s, boteco roqueiro de Nova York, tinha gente que olhava torto pra eles. No entanto, se bobear você conhece pelo menos uma dezena de músicas deles. E sua rádio rock favorita toca pelo menos Psycho killer, And she was e Wild wild life todos os dias. E a última festa rocker que você foi botou geral pra soltar a voz no quase-hit The road to nowhere, ou no batidão Burning down the house.
Naturalmente, um projeto tão aberto a influências e novidades tinha que chegar nas telonas, e lá foram os Talking Heads dar aquela revolucionada no universo dos filmes de shows de rock e lançar Stop making sense (1984), que está de volta aos cinemas, remasterizado. E o Pop Fantasma Documento, podcast do site Pop Fantasma, dá hoje aquele sobrevoo no antes, durante e depois do filme, focando no período que vai do excelente disco Speaking in tongues (1983) ao magistral Little creatures (1985). Ouça, e depois ouça tudo dos Talking Heads.
Século 21 no podcast: Master Peace e Exclusive Os Cabides.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Laurie Anderson, “Amelia”
- Amelia é o décimo-terceiro álbum* da musicista de vanguarda Laurie Anderson, cujo tema é o voo solo ao redor do mundo feito pela aviadora norte-americana Amelia Earhart (1897-1937). Pioneira na defesa dos direitos das mulheres e detentora de vários recordes de aviação, Amelia, durante o voo, acabou desaparecendo no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland.
- Além de Laurie (voz, viola, teclados e eletrônicos) participam do disco a orquestra checa Filharmonie Brno, os norte-americanos do Trimbach Trio, a cantora Anohni (dos Johnsons) e um grupo que inclui músicos como Marc Ribot (percussão) e Martha Mooke (viola).
- “Amelia estava fazendo uma coisa realmente perigosa. Ela era muito prática, diferente de Charles Lindbergh, que era um piloto de luvas brancas em muitos aspectos. Ela realmente estava trabalhando com os caras sob o capô”, contou Laurie (segundo a Billboard), lamentando que quase cem anos depois do desaparecimento de Amelia, “as meninas ainda não sejam realmente encorajadas a fazer engenharia”.
- No Grammy 2024, Laurie ganhou uma estatueta pelo conjunto da obra. “Fico feliz do Grammy ter visto o que faço como música, porque eles geralmente ignoram coisas experimentais”, afirmou.
Quem curte sonoridades experimentais e art pop vai se sentir tentado/tentada a dar uma olhadinha no disco novo de Laurie Anderson só de ver a lista de faixas. Amelia tem uma formatação bastante curiosa: são 22 faixas em 34 minutos de duração, divididas na maior parte do tempo em canções de pouco mais de um minuto – há micromúsicas de trinta segundos e algumas (poucas) com duração mais extensa. O recheio também é instigante: Laurie voltou a uma peça musical sua que já tinha sido levada ao palco há 25 anos, sobre a história de Amelia Earhart, uma mulher norte-americana que em 1937 ousou ser a primeira aviadora a dar uma volta solo ao redor do mundo, passando inclusive pelo Brasil – e morreu durante a jornada, após faltar combustível e o contato via rádio desaparecer.
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Amelia faz uma jornada conceitual pela história do voo solo, unindo sons orquestrados, efeitos de som e vocais falados/cantados, além das intervenções de Anohni em seis faixas. A partir de To circle the world, na abertura, fica claro que o foco está nas lembranças póstumas de Amelia (“é o som do motor/o que eu mais me lembro”, recita Laurie) e seu roteiro de viagem – chegando nas tentativas frustradas de comunicação em Radio, tema orquestral e climático que serve como um portal para a personagem, e é seguida pelo encerramento com os ruídos marítimos de Lucky dime. Os problemas enfrentados durante a viagem são musicados e transformados num diário da aviadora – a faixa Brazil, por exemplo, fala em estática no rádio e céu carregado, mas traz uma nota de otimismo: “o céu tem muitas avenidas e ruas/mas você tem que saber como encontrá-las”.
De modo geral, Amelia deve ser entendida como um espetáculo que pode ganhar uma contrapartida multimídia – em filme, peça, inteligência artificial, ou o que o valha – e que, em disco, instiga bastante a imaginação de quem ouve. O vocal de Laurie, sempre firme e relaxante, alivia a tristeza da história de Amelia. Laurie, impactada pelo pioneirismo da aviadora, incluiu também notas de feminismo na história, em The word for woman here e em This modern world, que inclui um pequeno trecho narrado pela própria Amelia (afirmando que “este mundo moderno de ciência e invenção é de interesse particular para as mulheres, pois as vidas das mulheres foram mais afetadas por seus novos horizontes”).
Nota: 8
Gravadora: Nonesuch
* Obrigado a Johann Heyss pela correção – tínhamos escrito que era o oitavo disco
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