Crítica
Ouvimos: Cast, “Love is the call”
- Love is the call é o sétimo disco de estúdio da banda britânica Cast. O disco é produzido por Youth (Killing Joke) e é o primeiro álbum feito como trio, com John Power (voz, guitarra e baixo), Liam “Skin” Tyson (guitarra solo) e Keith O’Neal (bateria).
- Power, que é autor de todas as faixas, foi baixista do The La’s – aqueles caras do hit There she goes, sucesso em 1990. Após quatro anos de trabalho no novo disco, o músico sentiu que Love is the call “volta ao espaço onde eu estive, entre o La’s e o Cast” e que “é como se fosse nosso primeiro disco”.
- Se você nunca escutou, pelo menos já deve ter ouvido falar do vitorioso All change, primeiro disco da banda, lançado em 1997. Foi o disco de estreia mais vendido da história do selo Polydor, e montou uma base bem fiel de fãs do Cast, até no Brasil.
O Cast é uma grande paixão do brit-pop, e uma banda de rock daquelas de dar orgulho a quem é fã. Se o Oasis chupava os Beatles, e o Blur sempre foi uma espécie de cavalo do lado storyteller do rock britânico, o Cast carregava em si toda a história do rock feito na Inglaterra. All change (1995), seu extremamente bem sucedido disco de estreia, abria com uma faixa, Alright, que tinha guitarradas herdadas do Who, corinho herdado dos Kinks, vocais lembrando o David Bowie de Ziggy Stardust (1972), solos de guitarra honrando o melhor do glam rock.
Não era só música, era pesquisa musical: referências de Rolling Stones, Hollies (especialmente na fase anos 1970), Beatles e até Joy Division e Echo & The Bunnymen surgiam em momentos muito bem escolhidos no som do Cast. O grupo permaneceu na Polydor até 2001, quando saiu o controverso álbum Beetroot, o quarto deles. Um álbum mais experimental, mais dançante, repleto de novas influências (tinha até um curioso reggae acústico, Curtains) e considerado mais pop que os anteriores. Uma decepção em tempos confusos do mercado musical, ainda mais porque o som não tinha muito a ver com o indie rock que dobrava a esquina naquele momento. Um disco bem legal a ser descoberto nos dias de hoje.
Em Love is the call, o Cast volta como trio, disposto a recordar o lado glam rock de seu som – tanto que abre com uma balada de violão, Bluebird, que soa como o David Bowie do segundo álbum (o de Space oddity, 1969), ainda mais por causa dos vocais de John Power. Prossegue, sempre com muita personalidade, caminhando entre referências de The Who, T. Rex (o boogie renovado de Love you like I do), Sweet (o hard glam rock Starry eyes) e até Suede, em músicas como The rain that falls, First smile ever e Love is the call.
O disco apresenta também uma balada radiofônica com cara de anos 1990, a bela e pop Faraway, une o som dos anos 1960 à energia punk em I have been waiting, e insere energia beatle em outra balada, Tomorrow call my name, que encerra o álbum. Emocionante.
Nota: 9
Gravadora: Cast
Foto: Reprodução da capa do álbum
Crítica
Ouvimos: Body Count, “Merciless”
- Merciless é o oitavo álbum do grupo de metal norte-americano Body Count. O material foi todo produzido por Ice-T, Vincent Price e Will Putney. Corpsegrinder (Cannibal Corpse), Howard Jones (Light The Torch), Joe Bad e Max Cavalera (Soulfly, Cavalera Conspiracy) fazem participações especiais, e David Gilmour toca guitarra na versão rap-metal de Comfortably numb, do Pink Floyd.
- A banda hoje tem na formação Ice-T (voz), Ernie C (guitarra solo), Vincent Price (baixo, teclados), Juan Of The Dead (guitarra), Will “Ill Will” Dorsey Jr (bateria), Sean E Sean (sampler, backing vocals) e o filho de Ice T, Tracy “Little Ice” Marrow Jr (backing vocals).
- Vincent Price contou ao site Devolution que Ice T desafiou o grupo a fazer músicas tão boas que pudessem dispensar seus vocais. “É fácil, porque faz as músicas se desenvolverem mais rápido, porque ele sabe o que quer. A coisa mais difícil quando você está lidando com um cantor é quando eles têm dificuldade em criar letras e escrever música, porque não é parte deles. Ice faz disso uma parte dele, para que possa escrever. É uma vibe”, disse.
Olha, se bobear, nem no primeiro disco (1992), quando o Body Count decidiu meter o pé na porta com Cop killer (depois arrancada fora do álbum), o grupo de heavy metal liderado pelo rapper Ice-T soou tão violento e feroz quanto nesse Merciless. Não são muitos álbuns de metal que começam com uma sessão de tortura (a vinheta Interrogation interlude) e que depois falam sobre tiro, porrada, bomba e quase todas as armas possíveis para cima do cidadão comum (a faixa-título Merciless, um redesenho funk-rap-metal no riff de War pigs, do Black Sabbath, com versos como “o jogo mudou, estou no topo/não há chance pra você chamar seus policiais racistas/tenho só uma vida pra viver/nenhuma porra mais pra dar”).
Merciless é horrorcore com todas as formas de violência possível, desde o ódio e preconceito do cidadão voltando-se contra ele (a faixa-título) até a neurose da guerra do dia a dia, dos guetos, do racismo, da brutalidade (a versão metal-rap de Comfortably numb, do Pink Floyd, com o próprio David Gilmour na guitarra, e versos acrescentados por Ice-T). Mais do que funcionar como a CNN negra – como o hip hop já foi definido – o disco serve como um banho assustador de realidade. The purge e Psychopath unem universos sonoros (do metal oitentista ao mundo crust de Ratos de Porão e Venom) para falar sobre ataque a racistas, ódio encapsulado e vítimas deixadas pelos cantos.
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Fuck what you heard é o momento “tudo vira bosta” do disco: Biden e Trump, democratas e republicanos, são vistos como todos sendo a mesma merda, como integrantes da mesma gangue, num rolo que envolve Fox News, CNN e gente chorando de barriga cheia (“eu vejo brancos chorando lágrimas do governo/nós negros choramos há anos/democrips, blood-blood publicans/tenho manos presos por causa de maconha, cara”). Lying muthafucka, por sua vez, é porrada desbocada na cara do presidente eleito norte-americano, mas serve para mais gente, inclusive um certo ex-presidente inominável: “eu sei que você está mentindo porque sua boca está se mexendo/toda a sua besteira é evidente/você mente para o mundo inteiro/e planeja concorrer novamente à presidência”.
Em meio a letras sobre guerra nuclear (a direta World war) e sobre como a corda da indústria da música sempre arrebenta do lado mais vulnerável (Mic contract), Merciless tem faixas cujos beats são dados por tiros (Do or die), sons que lembram a primeira fase do Metallica (Live forever) e participações especiais bacanas. A mais significativa é a de Max Cavalera, que faz vocais em português na abertura de Drug lords, metal cromado lembrando o som do Sepultura em Roots, com letra falando sobre a impunidade de quem realmente manda no jogo: “a contagem de corpos está aumentando/eles escaparam impunes de assassinato mais uma vez”. Ouça lendo as letras.
Nota: 9
Gravadora: Century Media.
Crítica
Ouvimos: Somesurprises, “Perseids”
- Perseids é o segundo álbum como “banda completa” do Somesurprises, uma banda de space rock de Seattle, Estados Unidos. O grupo nasceu em 2012 como projeto bedroom da cantora, compositora e guitarrista Natasha El-Sergany. Completam hoje a banda o guitarrista e tecladista Josh Medina, a baixista Laura Seniow e o baterista Benjamin Thomas-Kennedy.
- O material foi composto por Natasha durante o período mais bad vibes da pandemia, enquanto ela e todos da banda se viravam com empregos fora da música. O longo processo permitiu mudanças nas músicas, mas o entorno quase enlouqueceu todo mundo.
- O título do disco é o nome dado a uma chuva de meteoros que “atinge o pico em meados de agosto, o que a torna mais facilmente visualizada em noites quentes de verão. Os meteoros são radiantes e rápidos, normalmente deixando longos rastros de cor e luz enquanto riscam o céu” (diz o site Wash Magazine).
A foto do Somesurprises usada em algumas plataformas digitais mostra o quarteto em meio a um entardecer, sol batendo na câmera, vento, tom de relaxamento num lugar distante. A capa de Perseids, disco novo do grupo liderado pela compositora Natasha El-Sergany, exibe o entardecer (ou quem sabe amanhecer?) o amanhecer em meio ao verde e às montanhas, numa explosão arroxeada/azulada que dá um clima de isolamento e introspecção.
Um isolamento e uma introspecção colorizados e explosivos, que por sua vez explicam bastante o que aguarda todo mundo nesse Perseids, uma mescla de psicodelia e shoegaze, de Pink Floyd e My Bloody Valentine, com peso dosado, paredes de guitarras, vocal esfumaçado e sussurado, e músicas que se transformam discretamente em ondas sonoras. Como na abertura com Be reasonable, e no clima de sonho de Bodymind, com sua melodia circular, e cordas e teclados soando como drones.
Daí para a frente, o Somesurprises chama a atenção pela sonoridade ruidosa e mântrica, em faixas como Snakes and ladders – com início psicodélico e sombrio, guitarra em clima quase progressivo, ruídos como se viessem da mata, e bateria atacando de surpresa. Why I stay é um blues-rock sombrio, com tom contemplativo dado pelas guitarras e pelo paredão sonoro. Ship circles tem ritmo dado por cordas, baixo e guitarra – a bateria surge discreta e quase imperceptível, e some logo depois. Em quase todas essas faixas, além da onda sonora de Darn victory e do som nublado de Black field, as letras e os vocais surgem quase como um instrumento a mais, um som acrescentado na música do grupo.
No final, Untitled é um instrumental curto que lembra um Velvet Underground psicodélico – aliás lembra um desvio lisérgico da combinação de viola elétrica + bateria em pé do grupo norte-americano. E a faixa-título, com mais de oito minutos, lembra o rock alemão dos anos 1970: vai ganhando peso e crescendo, até se transformar num instrumental pesado e circular.
Nota: 8,5
Gravadora: Doom Trip
Crítica
Ouvimos: Pata Söla, “Migrante” (EP)
- Migrante é o EP de estreia do Pata Söla, trio carioca formado em 2023 por Iara Bertolaccini (guitarra e voz, ex-Blastfemme, e autora da arte da capa do disco), Marcelo Pineschi (baixo) e Jonas Cáffaro (bateria).
- A Pata Söla do nome da banda é uma espécie de vampira das lendas latino-americanas. “Eu procurava por um nome que tivesse a ver com a América do Sul. Nas minhas pesquisas pela mitologia, encontrei a história da Patasola, que, assim como Iara (meu nome), foi também descrita como uma figura feminina amazônica, protetora da natureza e dos animais, que volta para se vingar dos homens”, conta ela aqui.
Cantado em inglês e espanhol, o EP do Pata Söla é uma experiência quase sobrenatural. Os vocais de Iara surgem com uma ambiência diferenciada, como se viessem de um lugar distante – bem mais distante que o peso do trio tocando junto, que soa como algo terreno e pesado. As seis faixas são um heavy metal que passa por vários andamentos e sonoridades diferentes, mas com argamassa sonora ligada aos anos 1990. A faixa de abertura, La sangre, começa com pegada quase grunge, vai para um lado funkeado, e ganha uma levada de percussão nordestina em meio ao som pesado. Chaos, na sequência, é quase um misto punk + shoegaze + metal, com Iara responsabilizando-se por um paredão de guitarras.
A guerrilheira Ninãs del paraiso é um metal quase stoner, com herança clara do Sepultura, tom psicodélico garantido pela voz de Iara, e letra falando sobre bombas, guerras e crianças (“repetindo a história/perseguindo quem será/seu futuro inimigo/de um milagre nascerá”, diz a letra). O instrumental Fugitiva une metal a ritmos nordestinos, é sustentado pela linha de baixo e por guitarras de tom quase psicodélicos, assemelhando-se a códigos, ou a bombas e tiros em alguns momentos. No final, o tom contemplativo e triste de Echo, com letra em espanhol e inglês sobre a tristeza dos refugiados, e a declaração de princípios de La patasola (El grito), stoner-grunge-metal com letra declamada (“por todas aquelas que você quer encarcerar/do lado do povo que você veio dizimar”). Peso, feminismo e antifascismo em alto volume.
Nota: 8,5
Gravadora: Abraxas
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