Cultura Pop
Várias coisas que você já sabia sobre O Papa É Pop, dos Engenheiros do Hawaii

E aí, surpreso/surpresa por ver O papa é pop (1990), quinto disco dos Engenheiros do Hawaii, aqui? Vamos por partes: no entendimento da crítica musical dos anos 1980, os Engenheiros do Hawaii talvez não fizessem a menor falta para a música mundial. Já no que diz respeito aos caprichos do tempo nada lógico do mundo pop, o rock brasileiro não teria a mesma graça sem eles.
Humberto Gessinger (voz, baixo), Carlos Maltz (bateria) e Augusto Licks (guitarra) foram uma banda que prometeu lançar um disco a cada ano – e, pelo menos enquanto foi possível manter um certo contrato com os fãs, conseguiram. Influenciados pelo rock setentista inglês, pelo imaginário progressivo, pela MPB dos anos 1970 e pela música gaúcha, atravessaram a fronteira entre os anos 1980 e 1990 viajando pelo Brasil, arrebanhando fãs e apanhando da crítica musical.
MALHANDO TUDO
Aliás, justamente por isso, o grupo acabou ganhando da crítica a atenção que nem mesmo grupos queridos pelos jornalistas costumavam ter. Isso porque espaços generosos em revistas como a Bizz eram dados apenas para malhar o grupo, falar mal dos discos, das letras, dos vocais e até das fotos de divulgação. Quando saiu O papa é pop, já era dado como garantido que os álbuns do grupo eram lançamentos importantes para os fãs, para o caixa da gravadora e para que a imprensa musical brasileira tivesse assunto por alguns meses – já que os shows de lançamento também eram massacrados.
O papa é pop, no entendimento de uma turma enorme, mal poderia estar numa seção como a nossa Discos da Discórdia. Quem escreveu sobre o disco em 1990 já estava com tanto ranço da banda, que mal dava para ver características negativas no álbum: já era dado como certo que era mais um disco ruim de uma banda péssima e ponto final.
Como aconteceu com praticamente todos os discos do grupo, O papa é pop foi um álbum que não apontou caminhos para o rock brasileiro (ao contrário do que acontecia com Legião Urbana, o mainstream nunca viu imitadores dos Engenheiros do Hawaii). E gerou um fantasminha para a banda: a versão-da-versão Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones (sucesso italiano gravado pelos Incríveis), que virou hit levanta-plateias até o fim da história do grupo.
Nosso relatório sobre O papa é pop tá aí. Leia e ouça.
TRIO
UMA FORMAÇÃO de três músicos já estava nas paradas quando os Engenheiros do Hawaii surgiram. Os Paralamas do Sucesso já eram uma banda de três discos quando o trio gaúcho lançou o debute Longe demais das capitais (1986). Herbert Vianna, João Barone e Bi Ribeiro também já tinham partido do reggae newwavizado a la Police para a MPB influenciada pelo batuque nativo e pelos ritmos afro – em Selvagem?, lançado no mesmo ano.
COMO os gaúchos Humberto (voz, guitarra), Marcelo Pitz (baixo) e Carlos Maltz (bateria) tocavam uma mistura de rock com ska no primeiro álbum (Gessinger afirmava que era a única coisa que ele sabia tocar na guitarra naquele tempo), até mesmo a RCA (hoje Sony), gravadora da banda, lançava mão da frase “os Paralamas do Sul” para definir o trio. Esse nome indesejado rolou por muito tempo. No livro Infinita highway – uma carona com os Engenheiros do Hawaii, de Alexandre Lucchese, o músico conta que um repórter lhe perguntou se Humberto era nome artístico, “porque parecia com Herbert (Vianna)”.
DA GUITARRA PARA O BAIXO
OS ENGENHEIROS passaram mudanças básicas e rápidas entre 1986 e 1990. Pitz, o baixista de Longe demais, saiu/foi saído do grupo de uma maneira tão estranha que o músico prefere nem falar do assunto – testemunhas lembram de situações de bullying e desprestígio envolvendo o baixista. Gessinger já tinha músicas novas prontas, trocou de instrumento e ensaiou baixo e bateria, sem guitarra (!!), com Maltz, até encontrarem um novo guitarrista.
A ENTRADA DE Augusto Licks, um ex-guitarrista do cantor gaúcho Nei Lisboa, mais velho que os outros músicos, era uma surpresa para a gravadora (que apostava na banda com reservas). E nem mesmo o próprio tinha certeza se entraria. Num encontro com a banda, Augusto teria avisado aos futuros colegas: “Gosto de equipamento e não vou gastar um tostão com roupa”. Mas passou a ouvir discos emprestados por Maltz e Gessinger para se adequar à sonoridade da banda (na época, um tanto mais oitentista do que Licks estava acostumado). E ofereceu aos colegas sua preciosa coleção da revista Guitar player.
ALIÁS E A PROPÓSITO, a saída de Pitz do grupo foi tão rápida que até mesmo Reinaldo Barriga, produtor de A revolta dos dândis (1987), segundo disco dos Engenheiros, perguntou “cadê o Pitz?” quando viu a banda entrando em estúdio com Licks. Até o contrato com a gravadora precisou ser renegociado rapidamente.
CHEGOU MUDANDO TUDO
TIDO COMO calado e pouco participativo em seus primeiros anos como engenheiro do hawaii, Augusto Licks, ao contrário, começou a impor nova ambientação musical para a banda no novo disco. Avisou que não costumava gravar com overdubs na guitarra e que não usava pedais. O grupo, por sua vez, tinha ficado descontente com as guitarras sobrepostas do primeiro álbum, e queria fazer um som que se aproximasse do que eram capazes de tocar ao vivo. Licks fazia e refazia solos, incluía notas novas e redesenhava várias coisas que já pareciam definitivas para o produtor, além de trazer ideias malucas como molhar a gaita (!) antes de tocá-la em A revolta dos dândis I. O som do grupo passou a ficar mais setentista e progressivo.
BIOGRAFIAS TANTO dos Engenheiros quanto de Augusto Licks (Contrapontos, de Fabricio Mazocco e Silvia Remaso) dizem que o guitarrista encontrou um ambiente meio estranho e hostil na banda, com brigas em meio aos ensaios e pressões por todos os lados. Licks demorou para se sentir parte do trio, chegando a falar que eram quatro pessoas: Gessinger, Licks, Maltz e “os Engenheiros do Hawaii”. Já Humberto costumava dizer que ele e Maltz eram “dois loucos, que trabalhavam sem parar”, e que demoraram “anos doutrinando esse cara (Licks), fazendo dele um Engenheiro do Hawaii”.
ROCK DE ADULTO
A RCA, gravadora dos Engenheiros do Hawaii, sempre tinha sido uma gravadora mais tradicionalista, com direcionamento popular. Tinha sido a casa eterna de Luiz Gonzaga, foi o lugar onde alguns artistas pop sessentistas desenvolveram suas carreiras após a jovem guarda (Eduardo Araújo, Antonio Marcos, Vanusa, Incríveis, Made In Brazil) e, a partir dos anos 1970, se tornou “a casa do samba”, ancorada nos sucessos de Martinho da Vila, Antonio Carlos & Jocafi e Beth Carvalho. Também deu abrigo a um desacreditado Wilson Simonal por alguns anos, durante a década de 1970.
NOS ANOS 1980, o rock brasileiro virou mania. A RCA reagiu alçando o ex-dono da pequena e bem sucedida gravadora Tapecar, Manolo Camero, à sua presidência. O executivo transformou a empresa numa Philips oitentista: contratou Maria Bethânia, Gal Costa e Chico Buarque, e manteve o pagode em alta (por intermédio de Bezerra da Silva, Alcione e do discos de escola de samba do Rio). Havia espaço para o pop-rock “adulto” e herdado dos anos 1970 de Lobão (contratado antes de Camero entrar na gravadora e mantido lá), Lulu Santos e Hanoi Hanoi, mas eram exceções à regra. Nomes pop-populares como Fevers, Herva Doce e Roupa Nova também foram bem-vindos no cast.
O ROCK NACIONAL, juvenil e niilista como a época pedia, passou a fazer parte do cast da RCA após o lançamento da coletânea Rock grande do Sul, surgida quando, em 11 de setembro de 1985, o produtor musical Tadeu Valério foi ao ginásio Gigantinho, em Porto Alegre, assistir ao festival Rock Unificado. Ouviu bastante que os Engenheiros eram “um troço meio Paralamas, meio Police” e voltou de lá interessado na banda. Na mesma época, um núcleo de produtores e executivos da RCA de São Paulo já começava a tramar o selo Plug, que colocaria nas lojas os discos “de rock brasileiro” da gravadora lançados entre 1987 e 1988.
MÚSICA INFANTIL
DURANTE O SUCESSO dos Engenheiros do Hawaii, a máquina da RCA estava bastante preocupada com os rumos de outro tipo de artista: os pré-adolescentes do Trem da Alegria, hits de festa infantil, e que vendiam discos a rodo com músicas como Pular corda e Pra ver se cola. Patrícia (futura Patricia Marx) saíra da banda e estava se dando bem nas paradas com discos de perfil teen – os de músicas como Te cuida meu bem e Festa do amor.
OS ENGENHEIROS conseguiram vender cem mil cópias do primeiro disco e deram um susto na gravadora com a mudança de rota de A revolta dos dândis (que não ganhou disco de ouro e, perdido na passagem de vinil para CD, ficou pouco mais de três anos em catálogo). Mas alguma coisa indicava que aquilo poderia dar certo, especialmente após mudanças de empresários e a percepção de que havia um público fiel acompanhando aquilo. Uma temporada lotada no Dama Xoc, em São Paulo, na época do disco Ouça o que eu digo: não ouça ninguém (1988), sacramentou a imagem de “banda de primeiro time”, numa época em que o rock brasileiro já não apitava nas paradas.
ALIÁS E A PROPÓSITO, parentes de Humberto Gessinger recordam que o músico costumava gostar de sucessos bem populares desde a infância, incluídos aí os hits gauchescos que tocavam no rádio. O universo de Patricia, Trem da Alegria e dos sambistas não parecia tão distante assim.
TECNOLOGIA
O TERCEIRO DISCO, Ouça o que eu digo: não ouça ninguém (1988) levava Humberto Gessinger ao controle total da banda: o vocalista vinha já com demos prontas, inclusive com o som da bateria desenhado, quando já não vinha com ideias para a capa. Licks, sob a liderança do baixista, virou um guitarrista de trio, mais preciso em ocupação de espaços. Passou a tocar guitarra com e-bow (efeito de sustain) e piano. No Globo de Ouro, tocando hits como Somos quem podemos ser, Gessinger e Licks faziam fãs ficarem sem dormir por causa de seus instrumentos da marca Steinberger.
A STEINBERGER não patrocina o POP FANTASMA, mas se quiser pode, então vamos lá: fundada por Ned Steinberger no Brooklyn, Nova York, em 1979, a empresa de instrumentos surgiu no mercado com design, som e estilo próprios. Suas guitarras e baixos eram costumeiramente feitas de grafite e fibra de carbono, têm um formato que observadores mais irônicos costumam associar ao de uma vassoura, e não têm a “cabeça” na qual as cordas ficam enroscadas para afinação. Há discussões em fóruns de guitarristas sobre se o som desses instrumentos é bom ou não, mas seja como for, muita gente sonhou com um desses quando viu Gessinger e Licks no palco.
MAIS TECNOLOGIA E AO VIVO
PARA O DISCO Alívio imediato (1989), gravado ao vivo no Canecão, o estúdio da RCA em Copacabana (onde hoje é o Companhia dos Técnicos) foi desmontado, levado de caminhão pelo Túnel Novo e remontado na cervejaria, em Botafogo. A ideia era gravar o disco com a maior fidelidade possível. My Boy, que durante anos foi sonoplasta do Cassino do Chacrinha e do Xou da Xuxa, foi assistente de gravação. A edição final deixou passar até gritos dos fãs e a plateia cantando junto com Humberto, para mostrar que aquela banda tinha público.
AS DUAS ÚNICAS inéditas do disco, Alívio imediato e Nau à deriva, transformavam os Engenheiros do Hawaii num exemplo brasuca do rebote do rock progressivo ocorrido pós-MTV na Europa. Só que sob outra ótica: as canções de Gessinger estavam cobertas pelo glacê de teclados e samplers da Marajazz Produções Ltda, empresa dos músicos e produtores Marcelo Sussekind (que produziu Alívio), Paulo Henrique e Yuri Palmeira. A Marajazz também cuidou de discos como Você não precisa entender, do Capital Inicial (1988), o álbum epônimo do Uns & Outros que tem Carta aos missionários (mesmo ano) e da trilha da série Sex appeal, da Globo (1992).
MAS E A CRÍTICA?
BOM, existem algumas teorias correndo por aí sobre o ranço da crítica com os Engenheiros do Hawaii. A mais comum é a de que o grupo não surgiu sob as asas dos jornalistas paulistanos, honraria que contemporâneos bem sucedidos como Ira! e Legião Urbana tiveram. Havia quem lesse as letras de Humberto, contatasse a adoração do público à banda e visse naquilo algo parecido com o esquema teatral e bicho-grilo de Oswaldo Montenegro, execrado pelos críticos. Seja como for, os Engenheiros viraram sinônimo de tudo aquilo que as pessoas de bom gosto deveriam odiar – ao passo que Gessinger dava entrevistas a revistas de comportamento falando sobre música, timidez na adolescência e vida em família, o que atraía a identificação de um numeroso público jovem.
A REVISTA Bizz, editada em São Paulo, mudou nitidamente o tratamento dispensado à banda após o lançamento de Ouça o que eu digo. O jornalista Arthur G. Couto Duarte recomendou ao trio que pensasse em encerrar atividades após o álbum, lembrando que a banda já pensara no “harakiri” anteriormente (de fato, Gessinger e Maltz pretendiam acabar a banda após A revolta e voltar para a faculdade de arquitetura). Até então, discos como A revolta dos dândis e shows em espaços como o Teatro Ipanema recebiam resenhas positivas e o grupo era visto como uma boa promessa.
FORA DA ESFERA DA CRÍTICA, o grupo era tratado como um “fenômeno” por revistas como a Veja, que em março de 1989 reparou nas “letras irreverentes’ e no pouco apreço à tecnologia que marcava a banda (algo que já vinha mudando). Jornais como O Globo também entrevistavam Gessinger e, em 1989, até mesmo a revista Domingo, do Jornal do Brasil, entrevistou a banda numa matéria sobre novos hippies (!), com o trio garantindo que tentava fazer um som “com a bateria lá atrás”, como antigamente.
ALIÁS E A PROPÓSITO, a Playboy também foi ouvir o baixista para saber como ele cuidava de sua longa cabeleira loura. Gessinger, criado no rigoroso inverno gaúcho, disse que só tomava banho frio, “porque água quente faz cair o cabelo”. E aí, vai tentar?
A CULPA É DO BRIZOLA
A DIVULGAÇÃO de Ouça o que eu digo incluiu ainda uma estadia na União Soviética para alguns shows – esse assunto fica para o nosso Instagram. Já O papa é pop começou a ser pensado no comecinho de 1990, quando a banda subiu ao palco do festival Hollywood Rock, no Rio e em São Paulo. O grupo, além de tocar os jingles feitos para as campanhas presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola, tocou também Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, versão do hit do italiano Gianni Morandi, composto por Mauro Lusini e Franco Miggliacci. A versão havia sido feita por Brancato Junior e gravada pela banda paulistana Os Incríveis num disco de nome enorme: Para os jovens que amam os Beatles, Rolling Stones e… Os Incríveis (1967).
LALALALALA, BRIZOLA. Apoiador do candidato à presidência em 1989, o trio tocou em vários showmícios (“de graça”, ressaltava Gessinger), para públicos enormes que muitas vezes mal conheciam a banda, em palcos tremelicantes e com estrutura ruim. Num desses shows, os Engenheiros estavam no palco quando Brizola decidiu que imitaria as entradas triunfais do adversário Fernando Collor de Mello, seguindo pelo meio da multidão até ser jogado no palco.
NÃO DEU CERTO: Brizola era parado a todo momento e demorou horas até começar seu discurso, deixando o grupo à toa no palco. Gessinger, no desespero, apelou para Era um garoto, a única cover que sabia tocar. Teve uma surpresa: a plateia inteira cantou e nem ele sabia que a canção era tão popular. Daí para executar a canção no Hollywood Rock, foi um passo.
ALIÁS E A PROPÓSITO, a crítica deu uma trégua aos Engenheiros ao avaliar os shows do Hollywood Rock. Jornalistas como Jamari França, no Rio, avaliaram a apresentação positivamente, e mesmo em São Paulo, que geralmente torcia o nariz para o grupo, as apresentações foram consideradas boas. Jamari chegou a escrever no Jornal do Brasil que a banda deveria ter considerado Era um garoto para o disco ao vivo lançado em 1989.
OS INCRÍVEIS INCRÍVEIS
A ADORAÇÃO de Gessinger pelos Incríveis não era brincadeira: o cantor era fã da banda desde criança e lembrava de pedir aos pais que tocassem um disco deles quando era bem pirralho (os pais respondiam coisas como “se tu ficares quieto a gente toca”, em bom gauchês). Chegou a ter um bolo de aniversário, na infância, decorado com bonequinhos dos Beatles (era comum nos anos 1960), e pensou que fossem bonecos dos Incríveis. E ganhou um violão da família por causa dessa música, aos seis anos.
ENGENHEIROS DO HAWAII E INCRÍVEIS, por acaso, chegaram a se cruzar na estrada. Carlos Maltz lembrou à Bizz ter sido procurado por Netinho, baterista e líder da banda, no quarto de hotel no Recife, durante uma época em que as duas bandas tocavam por lá e por acaso, estavam hospedadas no mesmo local. “Eles são uma banda à margem do mercado, do mainstream. Não são chiques, são caras de estrada, até ingênuos. A gente se identifica com isso, com essa trajetória trágica e cômica… E a gente cansou dessa coisa de marketing, de estratégia. Até hoje sempre escolhemos a música errada. Então, deixamos o barco rolar, já que é o mercado que decide”, contou.
SIM, chegou a surgir a ideia de as duas bandas dividirem o palco. Acabou não acontecendo porque, segundo saiu publicado em jornais e revistas na época, a tecnologia que envolvia os shows dos Engenheiros do Hawaii se chocava com a sonoridade dos Incríveis (uma frase atribuída a Netinho diz que “eles são programados e a gente toca de verdade”).
ANDY WARHOL
O VELHO esteta pop era uma das maiores influências no quinto disco dos Engenheiros do Hawaii. Boa parte do conceito do disco nasceu de uma ideia de Gessinger e Maltz de fazer um The wall (Pink Floyd) à brasileira, pop, mas com discussões sérias. Numa época em que não existia mais o programa do Chacrinha (morto em 1988) e o rock brasileiro era apenas uma moda que passou (e que à exceção de poucos artistas, não vendeu tanto assim), a banda se mostrava orgulhosa dos limites que o mercado impunha a seu trabalho.
NA RAIZ desse papo, estava o famoso debate promovido pela Bizz em 1988, com artistas do rock brasileiro. A edição feita pela revista no bate-papo mostrava que a conversa descambou para Charles Gavin (Titãs), Renato Russo (Legião Urbana) e Herbert Vianna (Paralamas) tentando conversar a sério, Paulo Ricardo (RPM) fazendo palhaçada, João Gordo (Ratos de Porão) dizendo que “não iria tocar no rádio nunca” e uma boa parte dos artistas dizendo que jamais iria tocar no Cassino do Chacrinha, programa eternamente envolvido em acusações de jabá e troca de favores.
ENVIADO pelo trio ao debate, Maltz só fez uma participação, forçada, no final. Disse que não tinha nada a acrescentar, que eram só três garotos classe média que não tinham o que fazer e que “a Volkswagen acabou com o Fusca, que era mais histórico que todos nós aqui”. E disse que o certo talvez seja “ser virgem nas composições, mas na divulgação, ser uma p (*)”.
PAPA NA CAPA
A CAPA do disco trazia uma foto do Papa João Paulo II durante sua vinda ao Brasil em 1980. Gessinger viu a imagem na parede da casa de Brizola, quando leu uma reportagem sobre o candidato. Dario Zalis, o fotógrafo, clicou a banda num sofá vermelho – que, segundo o próprio no livro Infinita highway, posicionava o grupo como sendo “de esquerda”. A direção de arte da BMG (novo nome da RCA) repetiu o lay out da capa de Longe demais das capitais, com “Engenheiros” e “do Hawaii” separados entre capa e contra-capa, no alto, com o nome do disco vindo abaixo.
ALIÁS E A PROPÓSITO, o visual da capa de O papa é pop foi delicadamente inspirado no de outro disco lançado pela gravadora em 1971. Justamente o single dos Incríveis com o Hino Nacional e o Hino da Independência.
ESPETANDO COLEGUINHAS. O papa é pop não era só um disco. Os Engenheiros não tinham bala na agulha para fazer uma ópera-rock e um filme, daí o lado “multimídia” ficou por conta do “ouça o disco, leia as entrevistas, veja os caras na TV”. Na Bizz de outubro de 1990 (mês de lançamento do disco), Gessinger dizia à Lorena Calabria que era “imaturidade, adolescência tardia” o fato de artistas do rock nacional não se verem como pop e não quererem tocar no rádio ou no Chacrinha. “Assumir é tentar defender esse discurso. Tentar dizer que ele é válido para todo mundo, não só para os Engenheiros, mas para o Hermeto Pascoal também”, disse. “Alguém precisa ocupar outros espaços. Se não formos nós, ou o Hermeto, serão as Paquitas. Se alguém tem de fazer música para a Patrícia é melhor que sejam os Engenheiros do que outros caras”.
EM 1991, na mesma Bizz, era a vez de Gessinger revelar algumas das intenções obscuras de O papa é pop – segundo ele, um disco feito para irritar quem já ficava naturalmente irritado com a banda. “A gente sabia exatamente as reações que iríamos causar quando gravamos as músicas do jeito que gravamos, ao falar do pop, ao fazer uma cover dos Incríveis…”, contou.
‘O PAPA É DO CARALHO’
SIM, Gessinger também disse isso na entrevista, acrescentando que é “lindo” que o Papa seja pop – já que o Sumo Pontífice tomava chimarrão em Porto Alegre e tinha vestido a camisa do Flamengo em outra ocasião, ao vir ao Brasil. O baixista também avisou que “a Igreja Católica que se cuide, porque ela está deixando de ser pop”, já que vinha por aí a Igreja Universal do Reino de Deus.
NESSA ÉPOCA, a Igreja do “bispo” Edir Macedo já tinha virado tema tanto do Globo Repórter quanto do Documento Especial (da Manchete). Ainda era vista por muita gente, bem antes de boa parte do povo brasileiro descobrir o que é uma “bancada evangélica”, com um misto de horror e curiosidade mórbida. Em 1990, não apenas a Igreja Universal já estava presente em todos os estados do país, como também Edir já era figurinha conhecida da TV. O pastor, que apresentou durante anos o matutino O despertar da fé, havia começado comprando horários na Rede Tupi, em 1978, e estava envolvidíssimo na compra da TV Record, que terminaria de quitar em 1992.
A PAZ DE CRISTO. Cercado por um judeu (Maltz) e um ateu (Licks), Gessinger aproveitou para falar que não queria problemas com a igreja por causa de O papa é pop e que era católico. O pai do cantor, que morrera quando ele era adolescente, era praticante e chegava a participar de retiros. O baterista pegou o gancho e aproveitou para dar mais uma espetada em alguns colegas. “Não estamos agredindo. Isso é tão fácil, tão babaca. Fazer um filme profanando uma imagem sagrada, uma música dizendo ‘não igreja’, dá uma mídia imediata”, disse, possivelmente lembrando de Igreja, dos Titãs.
ALIÁS E A PROPÓSITO, Brancato Junior, autor da letra de Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones (cujo nome original em italiano era a mesma coisa: C’era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones) era especialista no Santo Sudário e costumava participar de programas de TV falando sobre o assunto. Foi profissional de televisão por vários anos, trabalhando na TV Paulista e depois na Excelsior e na Record. E também empresariou os Incríveis, daí ter feito a versão. Morreu em São Paulo, em 22 de outubro de 2016, aos 82 anos.
ESQUERDA?
O DEBATE esquerda-direita caía pra cima dos Engenheiros do Hawaii volta e meia, numa época em que ainda não havia o termo “cancelamento”. Ainda na época do disco Ouça o que eu digo, o jornalista Airton Seligman chegou a conversar com Maltz sobre a possibilidade de a iconografia da banda ser considerada fascista ou até próxima do nazismo, como as engrenagens que apareciam nas capas, ou as letras em estilo gótico do disco de 1988. “Era uma coisa parecida com The wall, a multidão seguindo um ídolo que se afasta cada vez mais da realidade”, chegou a dizer Airton.
OS ENGENHEIROS pareciam querer mais tecer comentários sobre o assunto do que fazer discursos contra ele – numa proximidade, vá lá, com as letras e os conceitos de Roger Waters, do Pink Floyd. “A gente se amarra em logotipos: usamos o hippie, agora o yin/yang. O suprasumo do pop é o logotipo. Ele é mais rápido que a palavra”, afirmou Gessinger. O papa é pop punha na engrenagem o símbolo do yin-yang, conceito do taoísmo que expressa dualidade, e que estava na moda no fim dos anos 1980 (era usado em camisetas, cordões e cadernos escolares).
ALIÁS E A PROPÓSITO, quem optou por comprar a fita K7 de O papa é pop, em vez do LP ou do CD, levou para casa o tal símbolo do yin-yang na capa, já que o grupo costumava fazer trabalhos gráficos diferentes para mídias diferentes.
E O DISCO ‘O PAPA É POP’, AFINAL?
O QUINTO disco dos Engenheiros trazia algumas novidades. Tanto Gessinger quanto Licks estavam operando pedaleiras MIDI, que disparavam sons digitais, e Maltz tocou o disco inteiro num kit eletrônico. A própria banda produziu o disco. Boa parte do material foi composto entre um show e outro, com roadies montando o equipamento para a banda no hotel e todos preparando material juntos – ainda que as composições fossem quase todas só do baixista.
A FAIXA-TÍTULO trazia uma novidade que, pensando bem, era mais uma provocação: os Golden Boys e o Trio Esperança cantavam o refrão da música. Alguns anos antes, os Paralamas do Sucesso precisaram engolir o grupo vocal jovemguardista repetindo o refrão de Vital e sua moto no fim da faixa, a pedido da gravadora. No encarte, os Engenheiros pediam desculpas a “Lulu ‘Heil Gessinger’ Santos” embaixo da letra de O papa é pop. Isso porque Gessinger dera uma entrevista comparando o autor de Como uma onda a entertainers como Silvio Santos e o mágico David Copperfield.
LULU não apenas se sentiu ofendido como, de acordo com o engenheiro-chefe, descobriu seu telefone e ligou chamado Gessinger de “fascista”. Anos depois, foi convidado por Gessinger para produzir o disco Gessinger, Licks & Maltz (1992), mas não aceitou, justamente por causa do controle excessivo exercido pelo baixista (que já chegou com músicas, títulos e até esboço da capa).
O DIFÍCIL EXERCÍCIO DE VIVER EM PAZ
A MÚSICA O exército de um homem só (em duas partes), você deve saber, é inspirada no livro de mesmo nome, escrito pelo gaúcho Moacyr Scliar. Lançado originalmente em 1973, o livro conta a história de Mayer Guinzburg, um judeu que chegou a Porto Alegre ainda menino, vindo da Rússia. Ele adota o codinome Capitão Birobidjan, e se torna uma espécie de Don Quixote do bairro do Bom Fim, em Porto Alegre. Em briga com o pai, que queria que o filho fossse rabino, tenta construir o país socialista Nova Birobidjan.
EM 2011, após a morte de Scliar, Gessinger chegou a participar de uma homenagem ao escritor no Prêmio Açorianos de Literatura.
UM MALUCO NOS ARES
HOMENAGEADO. O exército de um homem só, no disco, era uma homenagem ao aviador alemão Mathias Rust, um moleque de 18 anos que, em 1987, invadiu o espaço aéreo soviético, terminando com um pouso perto da Praça Vermelha, em Moscou. Mathias, que pilotava um monomotor Cessna, foi rastreado várias vezes pela poderosa defesa aérea soviética, mas acabou confundido com um avião local. Sua descida na União Soviética provocou caos no país, com o presidente Mikhail Gorbachev demitindo militares, reorganizando os cuidados nas fronteiras e tendo sua política de abertura (glasnost) severamente criticada.
ELE QUERIA ERA FALAR COM O PRESIDENTE. O maluco Mathias declarou que sua ideia era “reduzir as tensões entre os dois lados da Guerra Fria” e disse que apenas queria falar com Gorbachev, por estar frustrado com o resultado de uma reunião do comandante soviético com o presidente norte-americano Ronald Reagan. Gorbachev se encontrara com Reagan na Islândia em 1986, pedindo um acordo visando à redução do arsenal de mísseis nucleares de ambos os países, mas não houve negociação. Rust foi condenado a quatro anos de prisão pela invasão do espaço aéreo soviético e por vandalismo. Em 1988 foi expulso do país por Gorbachev. Em 2014, declarou que seu ato “foi uma irresponsabilidade” e que trabalhava em um banco.
O HOMEM SÓ. Por causa da música, a banda criou um personagem chamado O Homem Só, que respondia às cartas dos fãs. Nilson Batista, roadie de Maltz, era quem encarnava o personagem.
CLIPES
O CLIPE DE O papa é pop foi produzido para o Fantástico e mostrava a banda no mesmo cenário da capa do disco – incluídos aí o sofá vermelho e o moletom de engrenagem de Gessinger. A banda estava em lua de mel com a televisão – vivia sendo convidada para programas como o Matéria prima, com Serginho Groisman, e O papa é pop teve espaço até no vetusto Jornal da Globo.
JÁ O CLIPE DE O exército de um homem só foi lançado apenas em 1991, e já formatado para a MTV Brasil. Sem ideia de quem chamar para dirigir, a banda convidou ninguém menos que o diretor de cinema Cacá Diegues. A banda achou que o diretor de Bye bye Brasil detestaria a ideia, mas Cacá foi bastante receptivo. A estética do clipe acabou ficando meio próxima do que seria o cinema nacional pós-anos 1990, mostrando o dia a dia de crianças e adolescentes que habitavam um prédio abandonado.
CAPA TRIPLA
TODO fã de progressivo lembra das adoráveis capas duplas que adornavam discos do Yes, Pink Floyd e vários outros grupos. As cópias de O papa é pop distribuída à imprensa levavam o conceito à última consequência, trazendo uma capa tripla (!), com um texto de Arthur Dapieve, então repórter do Jornal do Brasil, apresentando o disco aos colegas.
NO EXCELENTE TEXTO, Dapieve lembrava que os Engenheiros “se formaram longe demais das capitais e do movimento punk, excursionaram não pelos isteites e sim pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, votaram em Brizola e não no Lula no primeiro turno, e foram os outsiders dos outsiders, mas nem por isso insiders”. Prosseguia mostrando que a banda havia largado a garagem e incluído vários elementos eletrônicos no novo disco e encerrava afirmando que “só os Engenheiros surfam ao contrário da onda”.
TREM DA ALEGRIA DO LIBERALISMO
PATRICIA, colega de gravadora da banda e ex-cantora do Trem da Alegria, participou do disco soltando a voz numa canção (digamos) um tanto imprópria para uma adolescente, A violência travestida faz seu trottoir. Gessinger, autor da música, dedicou ironicamente a canção a ninguém menos que Henry Maksoud, empresário, criador do hotel Maksoud Plaza e apresentador do lendário programa de entrevistas Henry Maksoud e você, na Bandeirantes.
CONSIDERADO um dos papas do neoliberalismo brasileiro, Henry chegou a dar uma de diretor e autor teatral (em Emoções que o tempo não apaga – Uma crônica musical, por acaso apresentada no teatro do hotel). Morreu em 2014. O hotel Maksoud Plaza chegou a ser leiloado pouco antes da sua morte.
E AÍ? ALGUÉM GOSTOU DO DISCO?
APARENTEMENTE, muita gente gostou de O papa é pop. O quinto disco do trio vendeu 350 mil cópias, deu à banda seu único disco de platina e conferiu a Era um garoto… o status de cover-que-fica-mais-famosa-que-o-original (que já era um cover…). Gessinger virou quase um guru da nova geração, para a alegria de muitos e a tristeza de outros tantos.
ALIÁS E A PROPÓSITO, a banda nunca chegou a achar que estava surfando uma onda maneira com as boas vendas de O papa é pop. A música brasileira quase como um todo parou de vender discos e só gêneros como lambada e sertanejo vendiam discos. O axé ainda não tinha virado música baiana “nacional”. Gessinger, Licks e Maltz consideraram que “a água baixou e a ilha dos Engenheiros apareceu”, numa época de crise. A banda desbravava um público novo e não estava no universo “roqueiro”. Quem estava ligado em rock no Brasil, voltava seus olhos para as vertentes mais alternativas do estilo, na Europa e (principalmente) EUA.
NA REVISTA Bizz, em janeiro de 1991, O papa é pop ganhou espaço bem maior do que um dos lançamentos pop mais importantes daquele período, Listen without prejudice, de George Michael. Celso Masson deu uma ironizada no disco, afirmando que se tratava do melhor álbum da banda, mas que como todos os outros, “era só para enganar otário”. A Folha de S. Paulo disse que o álbum era “choradeira contracultural” e reclamou da versão de Era um garoto. No Globo, em entrevista a Mauro Ferreira, Gessinger defendia a versão e afirmava que ela era “uma metáfora sobre a situação atual da juventude”.
ALIÁS E A PROPÓSITO, saiu também um clipe de Era um garoto, filmado com câmeras de televisão, igualmente para o Fantástico.
E DEPOIS?
OS ENGENHEIROS DO HAWAII quase furaram a promessa de lançar um disco por ano em 1991, quando Gessinger decidiu dar um tempo por causa da gravidez de sua mulher – a filha do casal nasceu em 1992. O sucesso repentino de uma versão ao vivo de Refrão de bolero, que invadiu rádios e a MTV, animou o grupo a voltar ao estúdio e registrar um disco formado, em parte, por sobras de O papa é pop, Várias variáveis (1991).
O GRUPO topou abrir para o Nirvana no Hollywood Rock de 1993. Fizeram uma enquete com os fãs durante um show no Imperator, no Rio, para definir repertório. Mas em São Paulo, rolou tensão e desespero: a frente do palco foi invadida por fãs da banda grunge e o grupo levou uma chuva de bolotas de papelão (graças aos brindes distribuídos para uma cervejaria). No Rio, para evitar problemas, mudaram o set list e abriram com Toda forma de poder – em vez de Herdeiro do Pampa pobre, de Gaúcho da Fronteira, que iniciou tudo em São Paulo.
A FORMAÇÃO COM LICKS durou até 1993 e acabou em meio a brigas e processos. Pouco antes do fim, a banda chegou a fazer shows no Japão e Estados Unidos. No livro Contrapontos, o músico recorda boicotes e grosserias no relacionamento interno. Gessinger prosseguiu com diversas formações da banda e hoje é artista solo e escritor. Maltz virou astrólogo (e também escritor). Licks voltou à sua profissão original, jornalismo, e cobriu a copa de 1994 para um jornal americano lido por brasileiros. Passou a se dedicar a shows instrumentais e workshops.
E JÁ QUE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI…
SER POP é tocar em todos os lugares: então pega aí os Engenheiros fazendo as senhoras da plateia da Hebe levantarem para dançar ao som de Era um garoto.
ALIÁS E A PROPÓSITO, dissemos que não existiram sucessores dos Engenheiros. Sim, teve pelo menos um, que não fez sucesso: o Utopia, banda que depois passaria a se chamar Mamonas Assassinas, e que imitou bastante Gessinger & cia durante alguns anos.
Cultura Pop
Urgente!: E agora sem o Ozzy?

Todo mundo que um dia se sentiu meio estranho e ouviu Ozzy Osbourne na hora certa, foi levado para um universo bem melhor, e para sempre. Tudo começou com uma banda, o Black Sabbath, que já era um verdadeiro errado que deu certo – um ET musical que fazia som pesado quando mal havia o termo “heavy metal” e que falava de terror na ressaca do sonho hippie. E prosseguiu com a lenda de um sujeito que gravou álbuns clássicos como Blizzard of Ozz (1980), Diary of a madman (1981) e No more tears (1991) – eram quase como filmes.
Ozzy pode ser definido como um cara de sorte – e também como um cara que abusou MUITO da sorte, mas pula essa parte. A depender daqueles progressivos anos 1970, não havia muito o que explicasse o futuro de Ozzy Osbourne na música. Em várias entrevistas, Ozzy já disse que não sabia tocar nenhum instrumento quando começou – na verdade nunca nem chegou a aprender a tocar nada. Tinha a seu favor uma baita voz (mesmo não ganhando reconhecimento algum da crítica por isso, Ozzy sempre foi um grande cantor), um baita carisma, ouvido musical e a disposição para encarnar o estranho e o inesperado no palco em todos os shows que fazia.
Imortalizada em livros como a autobiografia Eu sou Ozzy, a história de Ozzy Osbourne é um daqueles momentos em que a realidade pode ser mais desafiadora que a ficção. Afinal, quem poderia imaginar que um garoto da classe trabalhadora britânica se tornaria o que se tornou? Talvez tenha sido até por causa das dificuldades, que também moveram vários futuros rockstars ingleses da época – ou pelo fato de que o rock e a música pop do fim dos anos 1960 ainda eram quase mato, universos a serem desbravados, com poucos parâmetros. Seja como for, se hoje há artistas de rock que se dedicam a discos e a projetos que parecem ter saído da cabeça de algum roteirista bastante criativo, Ozzy teve muita culpa nisso.
Fora as vezes que o vi no palco, estive frente a frente com Ozzy apenas uma vez, numa coletiva de imprensa do Black Sabbath – da qual Tony Iommi não participou, por estar se recuperando de uma cirurgia (havia tido um câncer). Seja lá o que Ozzy pensasse da vida ou de si próprio, me chamou a atenção o clima de quase aconchego da sala de entrevistas (acho que era no hotel Fasano): um lugar pequeno, com ele e Geezer Butler (baixista) bem próximos dos repórteres. Que por sinal não eram inúmeros.
Já havia feito entrevistas internacionais antes mas nunca imaginei estar tão perto de uma lenda do rock que eu ouvia desde os doze anos. Fiz uma pergunta, ele respondeu, e eu, que sempre fiquei nervoso em entrevistas (imagina numa coletiva com o Black Sabbath!) voltei pra casa como se tivesse ido cobrir um buraco que apareceu numa rua no Centro. Não que não tenha me dedicado à pauta, mas era o Ozzy e eu estava… numa tranquilidade inimaginável.
Ozzy também já me deu uma entrevista por e-mail, em 2008, em que reafirmou sua adoração por Max Cavalera, disse que não tinha ideia se a série The Osbournes havia levado seu nome a um novo público, e reclamou da MTV, “que virou uma versão adulta da Nickelodeon”. Também disse que nunca diria nunca a seus então ex-companheiros do Black Sabbath (“nos falamos por telefone e quando as agendas permitem, nos encontramos”).
Nesse papo, Ozzy só se irritou quando fiz uma pergunta que envolvia o Iron Maiden, que tinha passado recentemente pelo Brasil, ou estaria vindo – não lembro mais. “Bom, não sei te responder, pergunta pro Iron Maiden!”, disse, em letras garrafais (todas as respostas foram em caixa alta). Lembro que ri sozinho e fui bater a matéria.
Até hoje só acredito que isso tudo aí aconteceu (e não é nada perto do que uns colegas viveram com Ozzy e o Black Sabbath) porque vi as matérias impressas. Mas acho que antes de tudo, consegui humanizar na minha mente um cara que eu ouvia desde criança. Ozzy era de carne e osso, respondia perguntas, tinha lá seus momentos de irritação e, enfim, mesmo tendo o fim que todo mundo vai ter, viveu bem mais do que muita gente. E mudou vidas.
Texto: Ricardo Schott – Foto: Divulgação
Crítica
Ouvimos: Justin Bieber – “Swag”

RESENHA: Swag, novo disco-surpresa de Justin Bieber, mistura lo-fi, trap e synth pop com vibe indie e desleixo calculado. Musicalmente rico, mas com letras rasas.
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Justin Bieber opera hoje num universo de, vamos dizer assim, venda fácil e compreensão difícil. Ser um cantor branco de r&b significa basicamente que você vai ter que fazer shows, gravar discos e existir no show business, de modo geral, no limite da polêmica. Afinal, tanto r&b quanto rap são áreas de artistas negros, ligadas a um histórico que se estende ao soul, e a vivências pessoais – e o mundo mudou o suficiente para que o mercado quase entenda o peso de certas coisas.
Por quase entenda, leia-se que, na maioria dos casos, tudo pode ser resolvido por uns posts nas redes sociais e uma tour pelos lugares certos, com as pessoas corretas. Mas pra piorar um pouco, nos últimos tempos, Justin andava brotando mais no noticiário de fofoca do que nos cadernos de cultura. As notícias eram sobre cancelamentos de shows, brigas com a mulher Hailey, relacionamentos supostamente mais do que íntimos com o rapper P. Diddy e supostos abusos de substâncias.
E, bom, o que faz um astro como Justin Bieber numa hora dessas? Para calar a boca de uma renca de gente durante um bom tempo, ele simplesmente lança um disco novo do mais absoluto nada – e este disco é Swag, uma epopéia de quase uma hora, com 21 faixas. E antes de mais nada, Swag consegue colocar de vez Justin numa espécie de “espírito do tempo” pop no qual artistas como Taylor Swift, Rihanna, Beyoncé e Miley Cyrus já se encontram há um bom tempo.
Esse tal (hum) zeitgeist significa que tais artistas – seguindo uma linhagem que inclui de Beatles a Marvin Gaye – decidiram se libertar de amarras para fazerem o que bem entendem. Ou seja: discos de protesto, álbuns com design musical troncho, feats que os fãs vão estranhar, projetos com produtores pino-solto, singles com referências que o fã-clube vai ter que buscar no Google, lançamentos com fotos de divulgação distorcidas – ou capas no estilo meu-sobrinho-fez.
De modo geral, são artistas que podem se dar ao luxo de perder alguns fãs, em nome de verem seus álbuns se tornarem (vá lá) pretensos barômetros do nosso tempo, ou pelo menos crônicas pessoais-autoficcionais. Alguns exemplos: Brat, de Charli XCX, trouxe a zoeira da noite de volta. Hit me hard and soft, de Billie Eilish, foi importante na onda de música sáfica. GNX, de Kendick Lamar, explora misérias existenciais e brigas no showbusiness. Vai por aí. Fazer disco com “desencucação” virou, mais do que nunca, coisa de roqueiro – aposto que você se divertiu muito com Cartoon darkness, de Amyl and The Sniffers, e ficou assustado/assustada com as teorias geradas por Brat.
Se a essa altura do meu texto você já está prestes a desistir de ler, por eu ainda não ter dito se Swag vale seu tempo precioso, aqui vai: vale, e muito. Justin já vinha de uma tradição de álbuns ligadíssimos na atualidade – o melhor deles é Purpose, de 2015. Swag tem um subtexto de “libertação”, já que Bieber acaba de dar adeus a seu empresário de vários anos, Scooter Braun (um adeus que vai lhe custar mais de 30 milhões de dólares, por sinal). E traz o cantor investindo em climas lo-fi, sons texturizados, vibes derretidas e muita coisa que virou moda de uma hora para a outra.
O G1 disse que Swag é um disco chato. Eu discordo bastante, mas o The Guardian chegou perto da realidade ao dizer que as letras prejudicam o novo álbum – de fato, a poética de Swag tem a profundidade de um pires. Já musicalmente, a diversão é garantida até para quem nunca ouviu nada do cantor. Bieber e sua turma de produtores e parceiros transformam trap e sons lo-fi em pop adulto, em faixas muito bem feitas e bem acabadas, como All I can take, a estilingada Daisies, o bedroom pop Yukon e a viajante Go baby.
O design musical de Swag é minimalista, e boa parte das músicas têm aquele clima de desleixo estudado do indie pop atual. Things you do tem guitarras decalcadas do The Police e silêncios entre vozes e sons, Butterflies é uma gravação quase caseira que vai crescendo, e faixas como First place, Way it is, Sweet spot e Walking away unem synth pop, modernidades, sons derretidos e tentativas de emular Michael Jackson.
Já Dadz love, com o rapper Lil B, evoca Prince, com tecladeira dos anos 1980 e texturas de 2025. A vibe dos Rolling Stones, e das voltas do grupo britânico em torno do soul e do r&b, dáo as caras em Devotion e na vinheta Glory voice memo. Uma curiosidade é o trap da faixa-título, com participações de Cash Cobain e Eddie Benjamin, e um verso proscrito sobre cocaína (“seu corpo não precisa / de nenhuma linha prateada”) que aparentemente só o Spotify transcreveu.
Vale dizer que, tentando tomar de volta o controle da própria narrativa, Justin derrapa feíssimo ao decidir colocar em Swag três diálogos com o comediante negro norte-americano Druski. Num deles, o humorista diz a ele que “sua pele é branca, mas sua alma é negra, Justin” (o cantor só responde um “obrigado” desajeitado) – em outro, o assunto inclui paparazzi e redes sociais. No final, quem ouve o disco inteiro é “premiado” com a estranhíssima presença do cantor gospel Mavin Winans ocupando sozinho a última música – o cântico religioso Forgiveness.
Enfim, é Bieber buscando legitimidade para o autoperdão e para a própria carreira de cantor branco de r&b – e mandando recados de maneira tão desajeitada que Swag, um excelente disco, quase rola escada abaixo. Swag não resolve todas as questões em torno de Justin Bieber – mas quando acerta, lembra que, às vezes, é melhor fazer do que explicar.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Def Jam
Lançamento: 11 de julho de 2025
Cultura Pop
Urgente!: Nova do Hot Chip, “DVD” do Oasis em Cardiff, The Rapture de volta com turnê

RESUMO: Hot Chip (foto) anuncia coletânea e lança single e clipe. Fã produz vídeo do primeiro show do Oasis em Cardiff só com imagens feitas por fãs. The Rapture anuncia turnê pelos Estados Unidos e Canadá.
Texto: Ricardo Schott – Foto Hot Chip: Louise Mason/Divulgação
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Vai sair pela primeira vez uma coletânea do Hot Chip, Joy in repetition, prevista para 5 de setembro. Vale até a pergunta que muita gente já se fez: qual a importância de coletâneas nessa época de playlists e aplicativos de música com poucas infos? Bom, a importância de uma boa coletânea de hits é enorme, vale por uma setlist bem montada e pode contar uma história. E elas eram as playlist de duas décadas atrás.
No caso de Joy, ela traça o caminho do Hot Chip do tempo dos cachês baixos até a época em que jornais como The Guardian já estavam classificando Alexis Taylor, Joe Goddard, Owen Clarke, Al Doyle e Felix Martin como o maior grupo pop de seu tempo. E entre hits como Ready for the floor, I feel better e Look at where we are, ainda tem uma música nova de altíssimas proporções de grude: Devotion, já lançada em single, que é uma mescla de pop adulto, eletrônica psicodélica e futuro hit de pista, com clipe gravado no Japão.
Taylor rasga seda: Devotion é “uma celebração da devoção a este projeto coletivo”. E ele ainda faz um baita elogio ao colega Joe Goddard: “Penso no Joe como alguém parecido com o Brian Wilson, com uma dedicação enorme em descobrir como criar a música pop mais incrível possível”. Errado não está.
***
Alguém com (felizmente, não estamos julgando) muito tempo livre pegou varias imagens diferentes do primeiro show do Oasis em Cardiff, feitas por fãs da banda, e compilou um (digamos) DVD do show.
O registro tá o mais fiel possivel, apesar das imagens à distância e do som nem sempre maravilhoso – vale como um belo bootleg das antigas. Tem ate o som da fitinha de Fuckin in the bushes na abertura, e a voz do apresentador do show. Detalhe: quem botou o video no ar tentou se livrar de problemas avisando que o video nao é monetizado. Pode ser que não ganhe strike do YouTube. “É de um fã apenas para fãs”, avisa.
***
E ainda Oasis: vale ler o texto de Liv Brandão, fera do jornalismo musical brasileiro recente, sobre como a setlist do show do Oasis não foi apenas uma setlist. Foi uma aula de storytelling daquelas – como numa (olha aí) coletânea daquelas que vinham com textos contextualizando tudo.
“Muito se falou da escolha das canções, que privilegia os dois primeiros álbuns, como se só eles importassem (…). Mas tão especial quanto a seleção das 24 músicas que compõem o set, idêntico nos dois dias, é a ordem em que elas aparecem, montada para contar a história de quando o Oasis foi a maior banda do mundo – justamente na época desses discos – e tudo o que aconteceu desde então”. Leia o restante na newsletter dela
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Banda importante do dance punk dos anos 2000, The Rapture voltou, mas não há ainda nenhuma novidade a respeito de disco novo – nem de shows no Brasil, já avisamos. Na real, esse grupo novaiorquino já está de volta desde 2019, com o cantor Luke Jenner como único membro fixo, mas não havia retornado de fato. Fizeram alguns shows, mas pararam as atividades por conta da pandemia, e foi só. Dessa vez, o grupo tem uma turnê de verdade pela frente, que começa dia 16 de setembro no mitológico First Avenue, em Minneapolis, e passa por várias cidades dos EUA e Canadá até novembro.
“Anos atrás, quando me afastei da banda, eu precisava de tempo e espaço para reconstruir minha vida”, conta Jenner sobre a volta, sem comentar diretamente sobre as brigas intermináveis que a banda tinha lá por 2014. “Eu precisava consertar meu casamento, estar presente para meu filho e, por fim, trabalhar em mim mesmo. Esta turnê marca um novo capítulo para mim, moldado por tudo o que vivi e aprendi ao longo do caminho. Conquistei tudo o que esperava alcançar através da música e agora posso usá-la para ajudar qualquer pessoa que talvez precise, como eu precisei naquela época”.
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