Cinema
Tanga: o único filme de Henfil

Em 1983, voltando ao Rio de Janeiro após temporadas em Natal (RN) e São Paulo (SP), o humorista Henfil (1944-1988) tinha um objetivo. Ele queria tirar do papel um roteiro de filme que já vinha pensando havia dez anos. “É sobre o poder de um jornal como o New York Times na vida das pessoas. Passa-se numa republiqueta do Caribe, onde quem manda é um ditador nazista”, confidenciou o humorista e desenhista de quadrinhos ao futuro produtor de Tanga (Deu no New York Times?), Joffre Rodrigues.
Tanga, único filme de Henfil, acabou sendo iniciado em 1984 e lançado só em 1987. Mas a sinopse já existia desde o comecinho dos anos 1980 e tinha sido lida por poucos e privilegiados amigos antes daquele encontro com Joffre. Tanga era uma pequena ilha no Caribe, governada há 37 anos pelo ditador Herr Walkyria Von Mariemblaum (Rubens Corrêa). O local tinha uma enorme mina de tangaína, um pó branco, aliás uma referência bizarra à cocaína e ao tráfico internacional.
O ditador era o único a ler o New York Times, que era comprado diariamente pelo sobrinho Kubanin (o próprio Henfil, cujo personagem era uma brincadeira com o anarquistas Bakunin). O exemplar chegava à ilha numa maleta 007 com três dias de atraso. Walkyria lia o jornal sentado numa privada que, quando aberta, tocava a Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner. Em seguida, incinerava o exemplar. Além disso, a vida pessoal ia mal: Walkyria era constantemente corneado pela esposa Frau Regine (Elke Maravilha).
Por acaso, em Tanga, rolava tanta corrupção que os moradores e a minguada classe política já não tinham nem ideia de onde ela começava e terminava. A ilha era marcada pela atuação de grupos guerrilheiros clandestinos, representados por pessoas. Eram o Pentelho Luminoso (Ricardo Blat), Liga da Mulher Ideal (Cristina Pereira), Comando da Vodka Sectária (Ernani Moraes, bem antes do sucesso na novela Torre de babel, de 1997), Partido Comunista Tanganês (o veterano Flavio Migliaccio, que passa boa parte do filme calado), Ação Paranoica Radical (Sergio Ropperto), Paralelo Zero (o próprio Joffre Rodrigues).
Ainda havia a controversa Ação Insurrecional Democrática Sexual (aids, a doença que levaria Henfil, que foi interpretado por Marcelo Escorel após Carlos Moreno, o garoto da propaganda do BomBril, recusar o papel). Aos sete grupos, cabia elaborar projetos para tomar o poder, reclamar de suas próprias condições e tentar “ler” o conteúdo do New York Times incinerado, decodificando a fumaça que saía do palácio do ditador.
Até mesmo amigos próximos estranharam que Henfil fizesse piadas com a turma da luta armada. Sobretudo num momento em que mesmo os esquerdistas da antiga preferiam não falar mais do tema. Mas o humorista, que já brigara publicamente com artistas que considerava “adesistas”, dizia que era seu dever notar que a esquerda já estava se transformando numa caricatura.
Por causa de uma obsessão do Herr Valkyria (ele queria porque queria obter armamentos dos EUA) começam a rolar atentados terroristas, para mostrar ao mundo que Tanga estava ameaçada pelo “comunismo internacional”. Um dos atentados, digno de desenho animado, rola na única livraria de Tanga – cujo único livro à venda é Mein luta, escrito por Herr Valkyria. Era a história do Brasil contada por uma ótica muito louca, e ao mesmo tempo bem realista. Henfil rodou cenas em Duque de Caxias, no cais do Porto do Rio, em Nova York e em Quissamã, município do Norte Fluminense que hoje tem pouco mais de 24 mil habitantes.
A ideia era um filme “de humor, mas não comédia convencional”. Só que mais influenciado por “Woody Allen, Jacques Tati, pelo grupo inglês Monty Phyton”. Isso o próprio Henfil confidenciou ao Pasquim em 1984, quando efetivamente começou o trabalho no roteiro do filme. Henfil fez o storyboard de todas as cenas do filme, como se fossem cartuns. E assustou os colaboradores com piadas que foram consideradas sutis demais para uma plateia de cinema. Na equipe, estavam o produtor e co-roteirista Joffre, o diretor de fotografia Edgar Moura e o assistente de direção Braz Chediak.
Henfil também levava a eles soluções que funcionavam bem em cartuns, e que ninguém sabia se dariam certo em filme. Outro problema grave era o funcionamento deficitário da Embrafilme (que cortou o financiamento em pouco tempo). Mas a produção foi avançando e Henfil chegou a receber parcelas mensais pelo filme.
Tanga saiu numa época em que Henfil sumira da mídia. Aliás, ele estava cada vez mais abatido por causa da aids, que ele e seus irmãos Chico Mario e Herbert de Souza pegaram fazendo transfusões de sangue, e que levaria o humorista em janeiro de 1988. O humor engajado de Henfil, ainda que se inspirasse nas mesmas fontes absurdas do TV Pirata (que começaria em 1988), parecia meio deslocado em época de Casseta Popular, Planeta Diário e Chiclete com Banana (revista fundada por um amigo das antigas, Angeli).
O único filme de Henfil não foi exatamente um sucesso de bilheteria. Passou em poucos cinemas e chegou a ganhar uma edição em pequena tiragem em VHS (em DVD, só pirata). Hoje, entre idas e vindas, está no YouTube. Veja antes que tirem do ar. O final diz muito sobre o destino de um certo país que você conhece.
Infos do livro A vida de Henfil, o rebelde do traço, de Denis de Moraes.
Veja também no POP FANTASMA:
– Por dentro do Fradim de libertação
– Sinal de Alerta: a abertura de novela mais punk da televisão brasileira
– Rindo À Toa: o humor no pós-abertura em documentário
– Jogaram no YouTube o Wandergleyson Show, pré-TV Pirata exibido pela Band em 1987
Cinema
Ouvimos: Raveonettes – “PE’AHI II”

RESENHA: Os Raveonettes mergulham de vez no lo-fi e shoegaze em PE’AHI II, disco que soa mais próximo de uma transição do que de uma realização.
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Raveonettes, aquela dupla que misturava distorções a la Jesus and Mary Chain, clima melodioso herdado dos anos 1950 e estética do filme Juventude transviada, lembra? Pois bem, eles guiaram o timão de vez para gêneros como shoegaze e lo-fi. Não é algo estranho ao som deles, vale falar. Climas “serra elétrica” sempre tiveram lugar nos discos de Sune Rose Wagner e Sharin Foo. PE’AHI II, novo disco, é a continuação de PE’AHI, disco de 2014 que já promovia suas invasões nessas áreas. Sem falar que 2016 atomized – disco anterior de inéditas da banda, 2017 – surfava essa onda.
Só que o Raveonettes de 2025 chega a soar experimental, mesmo quando abre o novo disco com uma balada nostálgica e melancólica, Strange. E na sequência, o ruído programado de Blackest soa como uma curiosa mescla de blackgaze e pop de câmara. Já Killer é uma nuvem de microfonias que lembra bandas como Drop Nineteens, só que com mais cuidado na melodia.
Entre as outras curiosidades do disco, estão o noise rock programado de Dissonant, a viagem sonora e distorcida de Sunday school e a onda sonora de microfonia (alternada com toques dream pop) de Ulrikke. O resultado final deixa um ar de EP, de mixtape, mais do que de um álbum completo e realizado dos Raveonettes. Ainda que PE’AHI II tenha momentos ótimos, soa mais como uma transição para o que vem por aí.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 7,5
Gravadora: Beat Dies Records
Lançamento: 25 de abril de 2025
- Ouvimos: The Raveonettes – Sing…
- Ouvimos: Drop Nineteens – 1991
- Ouvimos: Drop Nineteens – Hard light
Cinema
Urgente!: Cinema pop – “Onda nova” de volta, Milton na telona

Por muito tempo, Onda nova (1983), filme dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia – e censurado pelo governo militar –, foi jogado no balaio das pornochanchadas e produções de sacanagem.
Fácil entender o motivo: recheado de cenas de sexo e nudez, o longa funciona como uma espécie de Malhação Múltipla Escolha subversivo, acompanhando o dia a dia de uma turma jovem e nada comportada – o Gayvotas Futebol Clube, time de futebol formado só por garotas, e que promovia eventos bem avançadinhos, como o jogo entre mulheres e homens vestidos de mulher. Por acaso, Onda nova foi financiado por uma produtora da Boca do Lixo (meca da pornochanchada paulistana) e acabou atropelado pela nova onda (sem trocadilho) de filmes extremamente explícitos.
O elenco é um espetáculo à parte. Além de Carla Camuratti, Tânia Alves, Vera Zimmermann e Regina Casé, aparecem figuras como Osmar Santos, Casagrande e até Caetano Veloso – que protagoniza uma cena soft porn tão bizarra quanto hilária. Durante anos, o filme sobreviveu em sessões televisivas da madrugada, mas agora ressurge restaurado e remasterizado em 4K, estreando pela primeira vez no circuito comercial brasileiro nesta quinta-feira (27).
Meu conselho? Esqueça tudo o que você já ouviu sobre Onda nova (ou qualquer lembrança de sessões anteriores). Entre de cabeça nessa comédia pop carregada de referências roqueiras da época, um cruzamento entre provocação punk e ressaca hippie. O filme abre com Carla Camuratti e Vera Zimmermann empunhando sprays de tinta para pixar os créditos, mostra Tânia Alves cantando na noite com visual sadomasoquista, segue com momentos dignos de um musical glam – cortesia da cantora Cida Moreyra, que brilha em várias cenas – e trata com surpreendente modernidade temas como maconha, cultura queer, relacionamentos sáficos, mulheres no poder, amores fluidos e, claro, futebol feminino.
Se fosse um disco, Onda nova seria daqueles para ouvir no volume máximo, prestando atenção em cada detalhe e referência. A trilha sonora passeia entre o boogie oitentista e o synthpop, com faixas de Michael Jackson e Rita Lee brotando em alguns momentos. E o que já era provocação nos anos 1980 agora ressurge como registro de uma juventude que chutava o balde sem medo. Vá assistir correndo.
*****
Já Milton Bituca Nascimento, de Flavia Moraes, que estreou na última semana, segue outro caminho: o da reverência, mesmo que seja um filme documental. Durante dois anos, Flavia seguiu Milton de perto e produziu um retrato que, mais do que um relato biográfico, é uma celebração. E uma hagiografia, aquela coisa das produções que parecem falar de santos encarnados.
A narração de Fernanda Montenegro dá um tom solene – e, enfim, logo no começo, fica a impressão de um enorme comercial narrado por ela, como os daquele famoso banco que não patrocina o Pop Fantasma. Aos poucos, vemos cenas da última turnê, reações de fãs, amigos contando histórias. Marcio Borges lê matérias do New York Times sobre Milton, para ele. Wagner Tiso chora. Quincy Jones sorri ao falar dele. Mano Brown solta uma pérola: Milton o ensinou a escutar. E Chico Buarque assiste ao famigerado momento do programa Chico & Caetano em que se emociona ao vê-lo cantar O que será – um vídeo que virou meme recentemente.
Isso tudo é bastante emocionante, assim como as cenas em que a letra da canção Morro velho é recitada por Djavan, Criolo e Mano Brown – reforçando a carga revolucionária da música, que usava a imagem das antigas fazendas mineiras para falar de racismo e capitalismo. Mas, no fim, o que fica de Milton Bituca Nascimento é a certeza de que Milton precisava ser menos mitificado e mais contado em detalhes. Vale ver, e a música dele é mito por si só, mas a sensação é a de que faltou algo.
Por acaso, recentemente, Luiz Melodia – No coração do Brasil, de Alessandra Dorgan, investiu fundo em imagens raras do cantor, em que a história é contada através da música, sem nenhum detalhe do tipo “quem produziu o disco tal”. Mas o homem Luiz Melodia está ali, exposto em entrevistas, músicas, escolhas pessoais e atitudes no palco e fora dele. Quem não viu, veja correndo – caso ainda esteja em cartaz.
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Cinema
Urgente!: Filme “Máquina do tempo” leva a música de Bowie e Dylan para a Segunda Guerra

Descobertas de antigos rolos de filme, assim como cartas nunca enviadas e jamais lidas, costumam render bons filmes e livros — ou, pelo menos, são um ótimo ponto de partida. É essa premissa que guia Máquina do tempo (Lola, no título original), estreia do irlandês Andrew Legge na direção. A ficção científica, ambientada em 1941, acompanha as irmãs órfãs Martha (Stefanie Martini) e Thomasina (Emma Appleton), e chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (13), dois anos após sua realização.
As duas criam uma máquina do tempo — a Lola do título original, batizada em homenagem à mãe — capaz de interceptar imagens do futuro. O material que elas conseguem captar é todo registrado em 16mm por uma câmera Bolex, dando origem aos tais rolos de filme.
E, bom, rolo mesmo (no sentido mais problemático da palavra) começa quando o exército britânico, em plena Segunda Guerra Mundial, descobre a invenção e passa a usá-la contra as tropas alemãs. A princípio, a estratégia funciona, mas logo começa a sair do controle. As manipulações temporais geram consequências inesperadas, enquanto as personalidades das irmãs vão se revelando e causando conflitos.
Com apenas 80 minutos de duração e filmado em 16 mm (com lentes originais dos anos 1930!), Máquina do tempo pode soar confuso em algumas passagens. Não apenas pelas idas e vindas temporais, mas também pelo visual em preto e branco, valorizando sombras e vozes que quase se tornam personagens da história. Em alguns momentos, é um filme que exige atenção.
O longa também tem apelo para quem gosta de cruzar cultura pop com história. Martha e Thomasina ficam fascinadas ao ver David Bowie cantando Space oddity (o clipe brota na máquina delas), tornam-se fãs de Bob Dylan, adiantam a subcultura mod em alguns anos (visualmente, inclusive) e coadjuvam um arranjo de big band para o futuro hit You really got me, dos Kinks, que elas também conseguem “ouvir” na máquina. Um detalhe curioso: a própria Emma Appleton operou a câmera em cenas em que sua personagem Thomasina se filma (“para deixar as linhas dos olhos perfeitas”, segundo revelou o diretor ao site Hotpress).
Ainda que a cultura pop esteja presente, Máquina do tempo é, acima de tudo, um exercício de futurologia convincente, explorando uma futura escalada do fascismo na Inglaterra — que, no filme, chega até mesmo à música, com a criação de um popstar fascista.
A ideia faz sentido e nem é muito distante do que aconteceu de verdade: punks e pré-punks usavam suásticas para chocar os outros, Adolf Hitler quase figurou na capa de Sgt. Pepper’s, dos Beatles, Mick Jagger não se importou de ser fotografado pela “cineasta de Hitler” Leni Riefenstahl, artistas como Lou Reed e Iggy Pop registraram observações racistas em suas letras, e o próprio Bowie teve um flerte pra lá de mal explicado com a estética nazista. Mas o que rola em Máquina do tempo é bem na linha do “se vocês soubessem o que vai acontecer, ficariam enojados”. Pode se preparar.
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