Crítica
Ouvimos: Os Paralamas do Sucesso, “Cinema mudo (remasterizado)”
O primeiro álbum dos Paralamas do Sucesso foi alçado (ou atirado) a condição de patinho feio da obra do trio. Em vários momentos, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone eram vistos tratando Cinema mudo como um momento de ingenuidade da banda, em que quase foram transformados numa filial jovem dos Fevers, aturaram produtores e executivos metelões, e engoliram sugestões equivocadas da gravadora – faltou pouco para a EMI querer inserir um ronco de motocicleta em Vital e sua moto, por exemplo. Passou para a história uma declaração atribuída a Herbert dizendo que “o primeiro disco era uma merda” e que canções dele só eram tocadas nos shows por exigência popular.
Antes de ser remasterizado e de completar 40 anos, Cinema mudo já era um grande disco. Em se tratando de rock nacional, só perdia em termos de pureza e originalidade para o primeiro álbum do Barão Vermelho – e já revelava três excelentes músicos, um excelente compositor, letrista e guitarrista, e um repertório que ajudava a criar uma entidade chamada “rock brasileiro”, três décadas depois do estilo musical norte-americano começar a ser feito no Brasil.
Só que no caso, com ênfase no brasileiro, e não no rock: os Paralamas uniam sim coisas legais do rock lá de fora (além de Police, micropontos de Madness, Jimi Hendrix, Eric Clapton, Jeff Beck e até de Traffic e Peter Frampton apareciam aqui e ali). Mas já havia brasilidade desde o começo, no boogie herdado de Tim Maia e Robson & Lincoln de Volúpia, na letra-reportagem a la Jorge Ben de Encruzilhada (única música não-punk do mundo a falar abertamente sobre um ataque de caganeira), na disposição para unir romantismo e papos sobre o dia a dia urbano em faixas como Vital e sua moto, Foi o mordomo, Patrulha noturna.
O som da versão remixada e remasterizada é bem diferente do original. Os vocais (dobrados) de Herbert perdem o reverb típico das gravações da época e saltam lá na frente – fica claro em especial nas duas primeiras faixas. Baixo e guitarra ganham mais definição. A bateria ganha, finalmente, vida e peso – os anos 1980 foram o auge da bateria-caixa-de-fósforos, vale recordar. As camadas originais de gravação/mixagem soam mais claras. Faixas como Patrulha noturna e o instrumental Shopstake ganharam alguns segundos a mais (incluindo um “tum!” de bateria no final da primeira). Os violões e guitarras de uma das músicas mais bonitas da história dos Paralamas (o lado B O que eu não disse, uma parceria entre Herbert, Barone e… Renato Russo) soam renovados, e parecem estar sendo tocados na frente do ouvinte. Um presente de fim de ano.
- Aqui, em matéria da Folha, João Barone conta tudo sobre o relançamento de Cinema mudo.
Nota: 8 (faltam sobras e inéditas, aí eu daria 10 🙂 )
Gravadora: EMI/Universal Music Brasil
Foto: Reprodução da capa do álbum
Crítica
Ouvimos: Sly & The Family Drone, “Moon is doom backwards”
- Moon is doom backwards é o sétimo álbum da banda de jazz experimental londrina Sly & The Family Drone. O disco foi gravado em 2021 e só está sendo lançado agora.
- O Bandcamp da banda tem um texto que define o som como “um tipo de silêncio ‘tambores ouvidos através da parede’, ‘zumbido elétrico inquietante’. Um tipo de silêncio ‘inspetor particular bisbilhotando’, ‘sax solo no telhado'”.
- No álbum, tocam James Allsopp (metais, clarinete baixo), Kaz Buckland (bateria, metais, eletrônicos), Matt Cargill (eletrônicos, voz e percussão), Ed Dudley (voz, eletrônicos) e Will Glaser (bateria, eletrônicos).
- “Foi a primeira vez que gravamos em um estúdio de verdade. Foi num estúdio residencial na fazenda Larkin, em Essex. Ficamos no local por duas noites e três dias. Todos nós nos hospedamos, cozinhamos e saíamos juntos, e isso significava que podíamos ficar no local e fazer o que quiséssemos. Isso veio de uma pequena onda de atividade de tocar ao vivo novamente”, contou Matt Cargill aqui.
Ouvir o disco de Sly & The Family Drone (excelente nome de banda, por sinal) caminhando ou correndo na rua é garantia de sustos: os ruídos surgem sem muito aviso prévio e o que parecia um barulho à espreita, como se fosse feito no quarto ao lado, ou viesse de algum prédio meio distante, pode se tornar uma música inteira. Esse grupo do Reino Unido faz jazz experimental e meditativo com lembranças de Miles Davis, Charles Mingus e bandas de noise rock, deixa drones rolando enquanto percussões e efeitos de guitarra levam as músicas adiante, e trabalha num limiar em que você pode não reconhecer determinados instrumentos. É o que você já escuta em Glistening benevolence, cujos cinco minutos abrem o disco.
Going in, a segunda faixa, é jazz do outro mundo, lembrando Sun Ra e as viagens “jazzísticas” de pré-punks como MC5 e Stooges – sax ruidoso, percussão apocalíptica à frente, design musical selvagem e psicodélico, encerrando com um final de ruído de transmissão. Cuban funeral sandwich vem devagar, num silêncio cortado por notas de um clarinete baixo, que parece se movimentar como uma cobra no meio da mata – o som lembra algo que se parece até com Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz ou Naná Vasconcellos, ganhando um ritmo que soa como algo brasileiro lá pelo final. Joyess austere post-war biscuits abre com um chamado conduzido pelo saxofone, e vai se tornando pura psicodelia, com sons esparsos, percussões com eco, ruídos, distorções e metais que soam como guitarras.
O lado quase industrial do disco aparece nos ruídos eletrônicos da abertura de Guilty splinters, seguidos por percussão, saxofone, bateria e algo que soa como uma transmissão tentando começar. É a música mais “roqueira” do disco, ganhando um ritmo pesado e marcial, e um andamento quase pré-punk. Ankle length gloves soa como Mutantes e Pink Floyd, com ruídos de caixinha de música alterados, vozes distorcidas e clima psicodélico-aterrorizante, escapando um pouco do tom free-jazz total do disco, e dando outros ares ao som do grupo. Isso ao vivo deve ser bem legal.
Nota: 8,5
Gravadora: Human Worth
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Crítica
Ouvimos: Caco/Concha, “Caco/Concha”
- Caco/Concha é o primeiro álbum da dupla de mesmo nome, formada pelos primos André e Felipe Nunes, que moram em São Paulo e Ubatuba (litoral de SP), respectivamente. “Nossa estreia se propõe a acessar as sensações existentes entre o que acolhe e agrada com o que cutuca e tira do eixo”, contam os dois.
- Entre as influências confessas do trabalho estão David Bowie, Yellow Magic Orchestra, Chico Science & Nação Zumbi, Gilberto Gil, Kraftwerk, Prince e Talking Heads.
- A capa do disco é assinada pelo ilustrador Kenji Lambert e mostra (segundo o texto de lançamento) “a beleza das conchas e o perigo de seus cacos que ficam espalhados na areia decorando a praia”. “Construímos cada detalhe da ilustração juntos, pensando em todas as cores, ângulos dos vidros e relação da água com a areia da praia, o que foi fundamental para chegarmos em um resultado que traduz em traços cada nota do álbum”, explica Kenji.
Um dos e-mails enviados pela Cavaca Records, a gravadora do Caco/Concha, classificava o álbum epônimo dessa dupla bastante inventiva como “estranhamente pop”. O estranhamento e os contrastes são quase dois outros integrantes no projeto de André e Felipe Nunes, começando pela diferenças entre cidade grande e praia (“caco” e “concha”) e pela mescla de grooves de funk anos 70, boogies oitentistas, letras enigmáticas e gravações “de campo”, com vozes ao acaso e ruídos do dia a dia.
Cassis cornuta, um dos singles do álbum, é um funk que resume essa sonoridade trazendo metais, clavinet e uma letra que basicamente tem fundamento rítmico dentro da melodia. A sonoridade do álbum volta e meia remete a Tim Maia na segunda metade dos anos 1970, Gilberto Gil no começo dos 1980, ou a discos como o Sábado/domingo do Som Nosso de Cada Dia (1977), em faixas como Chit/Chat, um funk aberto com conversas sobre vida no litoral e na cidade grande, e repleto de efeitos e solos de guitarra. Ou Modo avião, que em meio a ruídos de viaturas, valoriza as linhas de baixo bem na frente.
O jogo de contrastes do disco permite experimentações até mesmo quando os modelos parecem ser Stevie Wonder e Rufus & Chaka Khan (o funk lento de Babel) e o Michael Jackson de Wanna be startin’ somethin’ (em I wonder). Diádromo soa mais próxima do boogie nacional dos anos 1980, São Sebastião leva o Caco/Concha mais perto do samba e do afrobeat e Divino amor, um eletro funk, é a faixa mais tranquila de ser definida como “dance music”, num disco que beira a psicodelia em vários momentos.
Nota: 8
Gravadora: Cavaca Records
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Crítica
Ouvimos: Kyd Barrett, “Latex”
Parece zoação, mas essa pessoa existe, e não tem nada de irônico nisso: Kyd Barrett é de Los Angeles, faz darkwave e promove misturas do estilo musical com rock, já tendo feito feats em várias canções. 2024 foi um ano especialmente produtivo para Kyd, com participações, singles, e dois EPs lançados – o segundo deles é este Latex.
Kyd tem, por sinal, um know how roqueiro: chegou a liderar várias bandas do estilo entre 2009 e 2014 (é ele mesmo quem conta em seu Bandcamp). Isso transparece em algumas músicas que ele andou lançando, como o single Sin ti, que saiu em julho e tem um oitentismo que chega a soar quase retrô – destaque para os vocais meio blasé e punk, soando como um Robert Smith extremamente chapado.
O EP novo abre com duas odes marciais e góticas ao sexo e à dança – a faixa-título e Sexclub – que aparentemente não poderiam ter sido feitas sem a audição de Stooges/Iggy Pop, Nine Inch Nails e rock dos anos 1990 em geral. No disco, volta e meia rola pagação de tributo a galera que gosta de emoções fortes na cama (os versos “me amarre/me humilhe/sou seu escravo/em dívida com você”, em Sexclub, por exemplo). Life’s dance soa quase alegrinha, um espelho retrovisor da house music, coberto por um filtro aterrorizante. Mas a letra tem versos como “tudo que eu odeio parece passar por mim”.
O disco fecha com o synthpop demoníaco de Purgatory – um clima meio Billy Idol-meio Marilyn Manson para uma canção que fala sobre mágoas e encostos pessoais do passado – e com o batidão robótico de Robot vampires.
Nota: 7,5
Gravadora: OM/N Records
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