Crítica
Ouvimos: Brian D’Addario, “Till the morning”

Não, a parceria dos irmãos Michael e Brian D’Addario (os Lemon Twigs) não chegou ao fim. Till the morning, primeiro disco solo de Brian, é quase um disco dos Lemon Twigs liderado por um dos dois. Michael D’Addario co-produziu o disco, fez algumas harmonias vocais, co-escreveu duas músicas e Till the morning sai pela Headstack Records, selo dos brothers – cujo logotipo é justamente uma caricatura deles.
Aliás, Brian não aproveitou o disco solo para fugir do som que faz com sua banda. Pelo contrário: o álbum é uma extensão da discografia dos Lemon Twigs, mas com outros colaboradores. Um deles é Stephen Kalinich, poeta norte-americano que escreveu músicas com Brian e Dennis Wilson (Beach Boys) e chegou a gravar em 1969 um disco, A world of peace must come, que deveria ter saído pelo selo dos BB, Brother Records (foi engavetado e saiu só em 2008). Daryl Johns colabora em This summer, produzindo e tocando bateria – por acaso essa música representa uma mudança de astral no disco, dando um clima pouca coisa mais pesado a um álbum que é pura introspecção setentista.
Quem acompanha os Lemon Twigs desde a arrojada estreia Do Hollywood (2016) sabe que coisas foram acontecendo ao grupo de lá para cá. Songs for the general public (2020), terceiro disco e último pela 4AD, foi fundamental para marcar os Twigs como uma banda de rádio AM dos anos 1970, com Michael e Brian soando como se fossem aqueles artistas que pegaram o bastão de Beatles e Crosby, Stills, Nash & Young para fazer um som entristecido, romântico, radiofônico ààààà beça e influenciado por soul e country.
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Essa galera aparecia muito nas trilhas sonoras internacionais de novelas da época, vendia compactos a rodo, fazia a trilha sonora de muitos chás-de-cadeira na hora da “lentinha”, e era fagocitada, aqui no Brasil, pela rapaziada verde-e-amarela que cantava em inglês (Christian, Fábio “Mark Davis” Jr, Light Reflections, etc). Não falta gente para chamar, carinhosamente, esse tipo de som de “mela-cueca” – o DJ Zé Pedro lançou recentemente um livro sobre o assunto, aliás. No caso dos Lemon Twigs, dá para sacar referências de Radiohead, Rolling Stones, James Taylor, Jim Croce, Beatles (muito), Todd Rundgren (mais ainda), Beach Boys (ô), mas em resumo, é isso aí.
Problema: de lá para cá, uma certa esquisitice bacana que havia no som dos Lemon Twigs foi sendo deixada delicadamente de lado – e olha que estamos falando de uma banda cujo segundo disco, Go to school (2018), era uma ópera-rock sobre um chimpanzé criado como um garoto. Till the morning é um disco excelente e muito bem composto e arranjado, uma espécie de mela-cueca bedroom de respeito, mas cumprimos o dever de avisar que o som é esse aí mesmo, na maior parte do tempo.
A faixa-título chega a parecer uma canção tradicional arranjada por Brian. Faixas como Song of everyone e What you are is beautiful (uma das parecias com Stephen) têm ar seresteiro e romântico. Um pouco do começo dos Lemon Twigs surge em Useless tears, chamber pop que parece uma composição de Bach, com violão soando como cravo, cordas criativas e intensas, e vocais lembrando Queen. Já faixas como Spirit without a home, Company, Nothing on my mind e Only to ease my mind devem muito a Paul McCartney e à primeira fase dos Bee Gees, enquanto Flash in the pan remete a Creedence Clearwater Revival e America. Dividindo vocais, Michael e Brian soam às vezes como Crosby & Nash, às vezes como Everly Brothers.
Nas letras, Brian combina conversas bastante profundas e sociais (Useless tears fala de abusos cometidos a pessoas inocentes) com papos que, justamente, poderiam rolar numa canção bem cabisbaixa dos 70’s. Company, por exemplo, fala tristemente sobre oportunidades de amor perdidas, enquanto This summer e Spirit without a home lidam com (respectivamente) angústias existenciais e entes queridos que partiram. No fim, em meio a algoritmos e carreiras de IA, é um dos novos românticos do rock expondo suas dores pessoais.
Nota: 8
Gravadora: Headstack Records
Lançamento: 20 de março de 2025.
Crítica
Ouvimos: Sault, “10”

O Sault continua misterioso como sempre. 10, novo disco, saiu de surpresa na internet, mas as informações são poucas. Observando os créditos das faixas no Spotify, dá para ver que o casal Cleo Sol (compositora e cantora) e In-Flo (produtor, compositor) fez tudo, juntando forças com colaboradores importantes como o baixista Pino Palladino, o rapper Chronixx, a compositora Lydia Kitto e o jazzista afrobeat Duane Atherley. Levando em conta que o Sault gosta de arremessar discos nas plataformas e depois sumir com eles, sabe-se lá o que vem por aí, se esse 10 vai chegar até 2026 disponível, ou não.
O que se sabia do Sault era que havia um núcleo duro formado por Cleo Sol, Kid Sister, Little Simz, Chronixx, Michael Kiwanuka e o produtor In-Flo. Provavelmente essa corrente foi quebrada para 10: Little Simz reclama que emprestou dois milhões de libras para In-Flo e nunca viu a cor do dinheiro, e a coisa vem rolando nos tribunais.
Já o som, seja lá o que tenha acontecido nas internas, volta mais ágil, mais ligado ao funk, mais ligado a energias de cura e a tons quase religiosos – e mandando bala na fusão jazz-soul, em faixas cujos títulos, vai entender o motivo, surgem abreviadas. The healing, uma música agitada sobre manter as emoções em dia, com sussurros, batuques e recordações do disco Off the wall, de Michael Jackson, vira T.H. Já Know that you will survive, que lembra as incursões de Lulu Santos pelas recordações da disco music durante os anos 1990, até nas linhas vocais, torna-se K.T.Y.W.S., e vai por aí.
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Prosseguindo, R.L. (Real love) é fusion leve com cara boogie, remetendo a Lincoln Olivetti e Earth, Wind and Fire. Outras facetas ligadas à música brasileira aparecem em H.T.T.R. (Higher than the rain), com batida afro latina no comelo, ruídos de chuva e um clima praieiro, de soul impregnado de Gilberto Gil e Caetano Veloso. S.O.T.H. (Sounds of the healing) é soul balançado e hipnótico, e parece coisa de quem escutou muito discos como Limite das águas (1977), de Edu Lobo, com sua fusão nordeste-jazz-soul. Tem ainda S.I.T.L. (Sorry it’s too late), com piano em cascata na abertura, e sequência com piano e synth, num clima de pop adulto que lembra Guilherme Arantes ou 14 Bis, pelo menos inicialmente – porque a bateria seca e o clima de soul progressivo guiam tudo para os anos 1970 e para hits de Stevie Wonder ou Terry Callier.
Esse clima viajante é o que dá a cara do som do Sault, e parece ter virado o verdadeiro objetivo do grupo em 10. Faixas como W.A.L. (We are living) e P (Power) soam como inícios de grandes suítes sonoras e dançantes, com frases insttrumentais e vocais que surgem como loops, e que parecem querer hipnotizar o/a ouvinte. L.U. (Look up) tem clima soul-indie-rocker e distorções na guitarra, parecendo uma música da fase psicodélica de algum grupo da Motown. No geral, algo para descobrir rápido: ouça 10 e aproveite antes que o Sault decida tirar o disco das plataformas.
Nota: 10
Gravadora: Forever Living Originals
Lançamento: 18 de abril de 2025.
Crítica
Ouvimos: Pai Guga, “O túmulo do mergulhador”

Guga Valiante está há quase duas décadas cantando na banda Amplexos, de Volta Redonda (RJ) – um grupo cuja sonoridade une rock, afrobeat, brasilidades e boa mão para a composição pop. Com o nome artístico de Pai Guga, ele estreia em carreira solo com o álbum O túmulo do mergulhador, e se dedica não apenas a um som pessoal, como também a um imaginário pessoal. As faixas do álbum falam sobre descobertas, psicanálise, ansiedade, conversas com o espelho (Mirror) e palavras não ditas de modo geral (Feitiço, soul com cara de Titãs que ganha aparência de música eletrônica anos 1990, é bem isso).
Musicalmente, Pai Guga faz de O túmulo um disco psicodélico e variado. Essa vibe já surge na primeira faixa, Preciso, um samba-marcha que evoca Caetano Veloso, com guitarra lembrando Lanny Gordin e a Gal Costa de 1971. Lua rosa é MPB bregadélica, focando em gatilhos, crises de pânico e necessidade de respirar. Vento é MPB dream pop lembrando simultaneamente Charlie Brown Jr e Marcos Valle. Relacionamentos entre pai e filho, e entre tipos diferentes de masculinidade, brotam no drum’n bass tenso de A chave.
Guga traz de volta pensamentos e histórias da infância na parte final do disco, na união de folk e Jorge Ben de Gira e no diálogo entre ele e sua criança do neo soul Voo. O túmulo do mergulhador ressoa como uma sessão de terapia que virou letra e música, e ponte entre artista e ouvinte.
Nota: 8,5
Gravadora: Independente/Tratore
Lançamento: 7 de fevereiro de 2025.
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Crítica
Ouvimos: Florist, “Jellywish”

O Florist é “um projeto de amizade, vindo das montanhas Catskill” – uma região montanhosa do sul de Nova York, onde se localiza a cidade de Bethel, que abrigou em 1969 o festival de Woodstock. É também um grupo que mexe com as seguranças e as dúvidas de quem o escuta. Jellywish, segundo disco do Florist, é sem dúvida um disco que estabelece uma relação de proximidade com o/a ouvinte, entre violões, teclados, percussões discretas e os vocais angelicais de Emily Sprague.
Mas aí você escuta Levitate, a primeira faixa, um folk tranquilo relacionado com Joan Baez, e depara com os versos: “todo dia eu acordo, espero pela tragédia / humanidade desequilibrada / alguma coisa deveria ser prazerosa quando o sofrimento está em toda parte”. Have heaven, folk percussivo na onda de Peter Gabriel e Cat Stevens, mas com certo design sombrio, prega que “logo logo não seremos nada mais do que um desenho animado / flutuando pelo universo”. Jellyfish, folk meio Bob Dylan meio Joan Baez, com guitarra coberta de efeitos e pandeirola, enxerga a luz no fim do túnel (“sua vida vale muito / destrua o sentimento de que você não é o suficiente”), mas faz pausa dramática depois do verso “nada é garantido, só a morte”.
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E é nesses extremos que vai patinando Jellywish, um disco de consolo, mas que fala de sofrimento e dureza como se os músicos da banda tivessem 60 anos, e não uns trinta e poucos. Started to glow é um folk irremediavelmente triste que prega “estou pensando em morrer de novo / é a única coisa que visita minha cabeça”. Em This was a gift, Emily despedaça a voz cantando que “você pode me descrever como se sente estando vivo? / só os mortos sobrevivem”.
O som de Jellywish vai ficando menos introspectivo e pouca coisa mais “pra cima” no clima Wilco-Nando Reis de All the same light, na infantil Sparkle song e na ligeiramente esperançosa Our hearts in a room. Mas a cara do disco é mesmo formada por músicas como Moon, sea, devil, balada folk com micropontos de Knockin on heaven’s door (Bob Dylan) e versos que descrevem a total falta de conexão: “eu olho para fora, há alguém aí? / posso ver através desse véu? / ou estou sozinho agora?”. Ouça quando nada puder te deixar mal.
Nota: 7,5
Gravadora: Double Double Whammy
Lançamento: 4 de abril de 2025.
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