Cultura Pop
Guilherme Lamounier: cult e de volta em vinil

A receptividade ao segundo LP do compositor carioca Guilherme Lamounier (1950-2018), quando saiu em agosto de 1973, foi discreta. O álbum foi um dos raros discos nacionais que a gravadora Continental lançou pelo selo Atco (ligado à gravadora americana Atlantic), aproveitando o contrato que a empresa tinha com a Warner, que lhe permitia lançar LPs de bandas como Led Zeppelin, Yes e Emerson, Lake & Palmer no Brasil. Ainda assim, o disco epônimo, que foi relançado recentemente em vinil pelo selo português Mad About Records, teve tempo de se tornar uma obra bastante cultuada nos últimos quinze anos.
As poucas cópias do vinil colocadas à disposição no dia 21 de junho já se esgotaram na gravadora, embora alguns revendedores ainda tenham para vender. Para quem não conseguir comprar, o Mad About oferece o álbum digital no Bandcamp, à venda por 9 euros. Todo o trabalho foi feito pelo selo junto à Warner de Portugal.
“Comprei esse disco do Lamounier na minha primeira visita a São Paulo, acho que em 2003. Um amigo com quem andava a fazer compras de vinil chamou-me a atenção e me sugeriu”, conta Joaquim Paulo, dono do selo, que nunca tinha escutado falar em Lamounier. E acabou levando o LP assim que muita gente ouvia falar do álbum, por intermédio de downloads.
NAS PLATAFORMAS
Além do disco no Bandcamp, a Warner, só que a brasileira, animou-se para colocar Guilherme Lamounier (ou Guilherme Lamounier 1973, como ele se tornou conhecido entre fãs) nas plataformas. Alguns admiradores do disco criticam o som do disco no Spotify, preferindo a versão publicada no Bandcamp. O álbum chegou a ser remasterizado para um lançamento em CD há alguns anos, mas não chegou às lojas porque, consultado na época, Guilherme não concordou com o contrato de relançamento.
Viúva de Guilherme, Marcia Weber diz que ainda não há planos para novos lançamentos, embora o cantor tenha deixado um mundo de singles e EPs em gravadoras como Continental, Som Livre e Philips. O terceiro LP de Guilherme, igualmente com o nome dele no título, saiu em CD há alguns anos pelo selo Discobertas. O primeiro, lançado em 1970 pela Odeon (um doce para quem adivinhar o título) está nas plataformas digitais sem a capa original.
PSICODÉLICO
Guilherme Lamounier é apontado como “psych rock” em sites de vendas, mas lisérgica de verdade só mesmo a última faixa do disco, Cabeça feita, um hard rock com participação de Lanny Gordin na guitarra. O disco é repleto de baladas, das mais delicadas (Patrícia, Telhados do mundo, Capitão de papel) às mais intensas (Passam anos, passam Anas, uma balada blues cujo clima sonoro lembra, duas décadas antes, os discos do Black Crowes).
O disco era a segunda tentativa de Guilherme de dar certo, após um início fracassado como protegido de Carlos Imperial. O cantor chegou a ser vaiadíssimo num festival em 1970, mas porque Imperial, por trás dele, apareceu vestido de índio, com uma fantasia do Cacique de Ramos. As vaias não eram para Guilherme, mas o cantor ficou extremamente traumatizado e desapareceu por alguns anos, até retornar com o novo disco.
O repertório do LP de 1973 foi todo composto por Guilherme e Tibério Gaspar, ex-letrista de Antonio Adolfo. Antonio saíra do Brasil e Tibério, que conhecia Guilherme desde que ele era um adolescente de Copacabana, ficara espantado com as novas melodias do amigo. O repertório dos dois saía influenciado pelos novos nomes do bittersweet: James Taylor, Carole King, Carly Simon, além do clima Woodstock de Crosby, Stills, Nash & Young. Uma tendência que não havia aqui.
DEMOROU
Tibério e Guilherme começaram a compor em 1971 e logo conseguiram chamar a atenção de André Midani, da Philips, que se interessou pelo disco. Houve problemas com a censura “Passam anos era para ser Entre anos, entre Anas, porque Ana era um nome recorrente na minha obra. A censura cortou porque achou que era uma referência ao coito anal”, contou Tibério, morto em 2017. Cabeça feita, mesmo com versos como “a cabeça feita não marca bobeira”, passou.
Guilherme acabou se afastando – um comportamento errático que marcaria sua carreira, e que muitos creditam a problemas psicológicos. E a Philips desistiu do disco. Só em 1973, quando Tibério e ele nem compunham mais juntos, a Continental se interessou e contratou o cantor. Tibério reapareceu para ser fotografado com o amigo para a capa interna, meio chateado com o fato do lançamento ter ocorrido numa gravadora bem mais modesta que a Philips. “Esse som ia estourar aqui”, lamentou. O álbum foi gravado em São Paulo, mas com time de músicos quase todo do Rio – incluindo Luiz Claudio Ramos (violão) e Oberdan Magalhães (sopro).
SUCESSO DE RÁDIO EM PORTO ALEGRE
Guilherme gravou até 1975 na Continental – chegou a sair um EP em 1975 com a mesma capa do LP de 1973, trazendo uma mistura de faixas de compactos (como Me deixa viver como bicho na terra) com músicas do álbum. Mas o artista que se tornou popular rolou a partir de 1977, quando Enrosca estourou na trilha da novela Locomotivas. O álbum de 1973 encontrou pouco espaço em rádios e TV.
“Lembro de ouvir Guilherme na rádio Mundial, mas minhas memórias dele são mais dançantes. Mas lembro dos nomes das músicas Será que eu pus um grilo na sua cabeça? e Cabeça feita“, conta a radialista carioca Selma Boiron. O jornalista gaúcho Emilio Pacheco, no entanto, conta ter ouvido bastante GB em alto relevo e Mini-Neila em Porto Alegre, executadas pela histórica Rádio Continental, que pertencia ao Sistema Globo de Rádio, transmitia na frequência 1120 AM e fazia sucesso entre os jovens do Rio Grande do Sul. E que, por acaso, tinha um estilo de programação parecido com o da Mundial.
ESCOLHAS PRÓPRIAS
“As músicas brasileiras que tocavam na Continental raramente eram as ‘de trabalho’ indicadas pelas gravadoras com aquele carimbo da setinha. O diretor de programação Marcus Aurélio Wesendonk fazia suas próprias escolhas. Então, do Sérgio Sampaio, tocava Viajei de trem. Do Jorge Ben, entre outras, Errare humanum est. A versão de Medo de avião, do Belchior, que a Continental tocava em 1979 era a mais lenta, com parceria de Gilberto Gil”, recorda Emílio, que ouviu Mini-Neila em dezembro de 1973, num rádio-relógio no quarto de seus pais.
“O locutor sempre tinha algo a dizer no começo de cada música e, nesse caso, lembro bem que ele disse: ‘Joia brasileira’. Então eu já sabia que viria uma música brasileira. Era Mini- Neila. A Continental sempre dizia os autores das músicas brasileiras, então o locutor falou no final: ‘Guilherme Lamounier, dele e do Tibério Gaspar, Mini Neila‘. Eu me apaixonei pela música”, recorda ele, que considera o álbum um dos melhores discos de música brasileira de todos os tempos, mas não se sentiu muito atraído pela continuidade da obra do cantor.
Emilio não comprou o disco na época, mas lembra-se do álbum exposto nas vitrines das lojas de Porto Alegre. “O que tocava na Continental geralmente virava sucesso entre os jovens, mas não lembro de ter visto o LP em nenhuma lista de mais vendidos dos jornais locais. Meu irmão tinha o LP e o trouxe para tocarmos nas nossas ‘reuniões dançantes'”, conta. “De certa forma, me lembrava a fórmula do Elton John, em que canções acessíveis traziam letras sofisticadas. E Guilherme tinha ótima voz”.
FÃS RECENTES
O preço do álbum de Lamounier, de lá para cá, já variou bastante. Exemplares de 1973 já foram vistos à venda por mais de R$ 1.000. Já o site Discogs traz vendas do relançamento da Mad About por preços entre R$ 150 e R$ 200. “Eu só tive três cópias desse LP do Guilherme em 25 anos. Por aqui ele quase não apareceu. O preço dele seria algo em torno de R$ 2 mil, né?”, diz Eduardo Lemos, dono da loja de discos Melômano, de Maringá (PR). O EP de Guilherme com a mesma capa do LP, aliás, pode ser achado nas mãos de alguns vendedores pelo mesmo preço de R$ 2 mil.
Em 2003, Guilherme Lamounier, o disco, fez 30 anos. Quem ouviu o álbum de lá para cá, aproveitou-se de uma onda típica do começo da web 2.0: os blogs de MP3, além das antigas comunidades do Orkut também dedicadas a divulgar arquivos de discos antigos – zipados e compartilhados em sites como Rapidshare e Sendspace. Impossível precisar quantos downloads do disco foram feitos dessa forma. Essa redescoberta animou até mesmo o Kid Abelha a gravar uma das faixas do disco, Será que eu pus um grilo na sua cabeça?, em 2005.
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O radialista e jornalista Bruno Capelas é um desses fãs que conheceram o disco já na era digital, tirado do vinil e transformado em MP3, e se assusta com o fato de uma obra dessas ter passado despercebida quando saiu.
“Desde as primeiras vezes que escutei esse disco, eu me surpreendi com duas coisas: a primeira é a capacidade do Guilherme Lamounier de escrever melodias pop-rock de uma sensibilidade rara. A segunda é porque raios esse disco passou despercebido”, afirma ele, que apresenta o Programa de indie, na Rádio Eldorado. “Não é só uma mera questão de refrães: é um disco com apuro estético – a flauta do Oberdan em GB e os coros de Neila, enquanto escrevo, não me deixam mentir. É sofisticado, mas ao mesmo tempo simples. E além de tudo, tem as letras do Tibério Gaspar, que é outro cara incrível e que precisa ser redescoberto, sempre”.
“É um disco que nem em sua época gerou muito barulho, então faz sentido que nem as gravadoras direito se lembrem dele. Mais legal é pensar que agora ele deixou de ser um artigo empoeirado em MP3 e YouTube, e que está disponível no streaming. É uma diferença pequena, mas que faz a diferença para a sobrevivência de uma obra nos dias de hoje. Doido pra colocar Mini Neila na minha playlist de powerpop. Agora só falta esperar chegar Enrosca, na versão original, pra inserir numa mixtape virtual pro crush”, brinca
TRABALHO
Um desses fãs da era digital foi bastante tocado pelo disco, a ponto de juntar forças com a viúva de Lamounier pelo resgate de sua obra. Alípio Argeu, músico baiano de 26 anos, montou a conta do Instagram Guilherme Lamounier Oficial, que dá imagem à vida e obra do cantor, com fotos raras, matérias de jornal e artes exclusivas. Recentemente resgatou um vídeo com uma vinheta instrumental feita pelo Guilherme em casa, em 2007, além de uma gravação dele cantando De frente pra realidade.
Alípio fez até mesmo o texto para o relançamento da Mad About, e vem procurando material de Guilherme em jornais e gravadoras. “O trabalho está andando. Conseguimos localizar amigos do Guilherme e fãs afim de contribuir de alguma forma com esse resgate”, afirma o pesquisador. “Os contatos estão acontecendo pelas redes sociais entre anônimos e famosos, como Fábio Stella, Rosa Marya Collin, entre outros”.

Guilherme e Marcia Weber, em 2007 (foto: divulgação)
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Cultura Pop
Urgente!: O silêncio que Bruce Springsteen não quebrou

Tá aí o que muita gente queria: Bruce Springsteen vai lançar uma caixa com sete álbuns “perdidos”, nunca lançados oficialmente. O box vai se chamar Tracks II: The lost albums (é a continuidade de Tracks, caixa de 4 CDs lançada em 1998) e nasceu de uma limpeza que Bruce fez nos seus arquivos durante a pandemia. Pelo que se sabe até agora, o material inclui sobras das sessões de Born in the USA (1984) e gravações da fase eletrônica dele, no comecinho dos anos 1990 – inclusive um disco inteiro desse período, que nunca viu a luz do dia.
Essa notícia caiu nos sites na semana passada e trouxe de volta um detalhe que os fãs de Bruce já conhecem bem: ele tem muito material inédito guardado – e material bom. Em uma entrevista à Variety em 2017, ele mesmo comentou que sabia ter feito mais discos do que os que lançou, mas que havia motivos sérios para manter alguns deles nas gavetas.
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“Por que não lançamos esses discos? Não achei que fossem essenciais. Posso ter achado que eram bons, posso ter me divertido fazendo, e lançamos muitas dessas músicas em coleções de arquivo ao longo dos anos. Mas, durante toda a minha vida profissional, senti que liberava o que era essencial naquele momento. E, em troca, recebi uma definição muito precisa de quem eu era, o que eu queria fazer, sobre o que estava cantando”, disse na época (o link do papo tá aqui – é uma entrevista longa e bem legal).
Com o tempo, vários desses registros acabaram saindo em boxes e coletâneas. Um deles foi The ties that bind, um disco de pegada punk-power pop que seria lançado no Natal de 1979 – e que acabou virando uma espécie de esboço inicial do disco duplo The river, de 1980. Pelo menos saiu uma caixa em 2015 chamada The ties that bind: The River collection, com todo o material dessa época, inclusive o tal disco descartado (além de um material que formava quase um suposto disco de punk + power pop que teria sido abandonado).
Um texto publicado na newsletter do músico Giancarlo Rufatto recorda que Bruce infelizmente deixou de fora do novo box alguns álbuns que realmente mereciam ver a luz do dia. Um deles é um álbum solo (sem a E Street Band, enfim), com uma sonoridade country ’n soul, que foi gravado em 1981. Esse disco teria sido abandonado durante um período de depressão, que resultou em isolamento e na elaboração do disco cru Nebraska (1982), feito em casa com um gravador de quatro canais, só voz e violão.
Bruce até parece fazer referência a esse álbum perdido na entrevista da Variety. “Esse disco é influenciado pela música pop da Califórnia dos anos 70”, contou. “Glen Campbell, Jimmy Webb, Burt Bacharach, esse tipo de som. Não sei se as pessoas vão ouvir essas influências, mas era isso que eu tinha em mente. Isso me deu uma base pra criar, uma inspiração pra escrever. E também é um disco de cantor e compositor. Ele se conecta aos meus discos solo em termos de composição, mais Tunnel of love e Devils and dust, mas não é como eles. São apenas personagens diferentes vivendo suas vidas.”
Outro material bastante esperado pelos fãs – e que também não está na caixa – é o Electric Nebraska, a tentativa de Bruce de gravar com a E Street Band as músicas que acabaram no Nebraska. Nem ele, nem o empresário Jon Landau, nem os co-produtores Steven Van Zandt e Chuck Plotkin gostaram do resultado, e as gravações foram trancadas a sete chaves. Nem em bootlegs esse material apareceu até hoje. Pra você ter ideia, Glory days, que só sairia no Born in the USA (1984), chegou a ser ensaiada e gravada junto.
Quase todo mundo próximo a Bruce acredita que ele nunca vai lançar oficialmente essas gravações elétricas do Nebraska. Max Weinberg, baterista da E Street Band desde 1974 (com algumas pausas), confirmou a existência desse material em 2010, numa entrevista à Rolling Stone, e disse que adoraria ver tudo lançado.
“A E Street Band realmente gravou todo o Nebraska, e foi matador. Era tudo muito pesado. Por melhor que fosse, não era o que Bruce queria lançar. Existe um álbum completo do Nebraska, todas essas músicas estão prontas em algum lugar”, revelou. Bruce pode até guardar discos inteiros na gaveta, mas esse é um daqueles casos em que o silêncio guarda várias histórias – que podem render surpresas bem legais.
E ese aí é o lyric video de Rain in the river, uma das faixas programadas para Tracks II (a faixa sai num disco montado durante a elaboração do box, Perfect world).
Cultura Pop
Urgente!: Supergrass, Spielberg e um atalho recusado

Coisas que você descobre por acaso: numa conversa de WhatsApp com o amigo DJ Renato Lima, fiquei sabendo que, nos anos 1990, Steven Spielberg teve uma ideia bem louca. Ele queria reviver o espírito dos Monkees – não com uma nova versão da banda, como uma turma havia tentado sem sucesso nos anos 1980, mas com uma nova série de TV inspirada neles. E os escolhidos para isso? O Supergrass.
O trio britânico, que fez sucesso a reboque do britpop, estava em alta em 1995, quando lançou seu primeiro álbum, I should coco. Hits como Alright grudavam na mente, os vídeos eram cheios de energia, e Gaz Coombes, o vocalista, tinha cara de quem poderia muito bem ser um monkee da sua geração. Spielberg ouviu a banda por intermédio dos filhos, gostou e fez o convite.
Os ingleses foram até a Universal Studios para uma reunião com o diretor – com direito a recepção no rancho dele e papo sobre fase bem antigas da série televisiva Além da imaginação. O papo sobre a série, diz Coombes, foi proposital, porque a banda sacou logo onde aquilo poderia dar. “Talvez eu estivesse tentando antecipar a abordagem cafona que seria sugerida, tipo a banda morando junta como os Monkees”, contou Coombes à Louder, que publicou um texto sobre o assunto.
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A proposta era tentadora. Mas eles disseram não. “Foi lisonjeiro e muito legal, mas ficou óbvio para nós que não queríamos pegar esse atalho”, explicou o vocalista, afirmando ter pensado que aquilo poderia significar o fim do grupo. “Você pode acabar morrendo em um quarto de hotel ou algo assim, ou então a produção quer apenas um de nós para a próxima temporada. Foi muito engraçado, respeitosamente muito engraçado”.
O tempo passou. E agora, em 2025, I should coco completa 30 anos (mas já?). O Supergrass, que se separou no fim dos anos 2000, voltou para tocar o disco na íntegra e alguns hits em festivais como Glastonbury e Ilha de Wight.
Aqui, o trio no Glastonbury de 2022.
Foro: Keira Vallejo/Wikipedia
Crítica
Ouvimos: Lady Gaga, “Mayhem”

Tudo que é mais difícil de explicar, é mais complicado de entender – mesmo que as intenções sejam as melhores possíveis e haja um verniz cultural-intelectual robusto por trás. Isso vale até para desfiles de escolas de samba, quando a agremiação mais armada de referências bacanas e pesquisas exaustivas não vence, e ninguém entende o que aconteceu.
Carnaval, injustiças e polêmicas à parte, o novo Mayhem foi prometido desde o início como um retorno à fase “grêmio recreativo” de Lady Gaga. E sim, ele entrega o que promete: Gaga revisita sua era inicial, piscando para os fãs das antigas, trazendo clima de sortilégio no refrão do single Abracadabra (que remete ao começo do icônico hit Bad romance), e mergulhando de cabeça em synthpop, house music, boogie, ítalo-disco, pós-disco, rock, punk (por que não?) e outros estilos. Todas essas coisas juntas formam a Lady Gaga de 2025.
Algo vinha se perdendo ou sendo deixado de lado na carreira de Lady Gaga há algum tempo, e algo que sempre foi essencial nela: a capacidade de usar sua música e sua persona para comentar o próprio pop. David Bowie fazia isso o tempo todo – e ele, que praticamente paira como um santo padroeiro sobre Mayhem, é uma influência evidente em Vanish into you, uma das faixas que melhor representam o disco. Aqui, Gaga entrega dance music com alma roqueira, um baixo irresistível e um batidão que evoca tanto a fase noventista de Bowie quanto o synthpop dos anos 1980.
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Mais coisas foram sendo deixadas de lado na carreira dela que… Bom, sao coisas quase tão difíceis de explicar quanto as razões que levaram Gaga a criar um álbum considerado “difícil” como Artpop (2013), enquanto simultaneamente mergulhava no jazz com Tony Bennett e preparava-se para abraçar o soft rock no formidável Joanne (2016), um disco autorreferente que talvez tenha deixado os fãs da primeira fase perdidos. Em outro tempo, Madonna parecia autorizada a mudar como quisesse, mas quando Gaga fazia o mesmo, deixava no ar notas de desencontro e confusionismo. O pop mudou, as décadas passaram, o público mudou – e todas as certezas evaporaram.
É nesse cenário que Mayhem equilibra as coisas, entregando um pop dançante, consciente e orgulhoso de sua essência, mas ao mesmo tempo sombrio e marginal. Há momentos de caos organizado, como em Disease e Perfect celebrity – esta última começa soando como Nine Inch Nails, mas, se você mexer daqui e dali, pode até enxergar um nu-metal na estrutura. Killah traz uma eletrônica suja, um refrão meio soul, meio rock que caberia num disco do Aerosmith, enquanto Zombieboy aposta no pós-disco punk, evocando terror e êxtase na pista (por acaso, Gaga chegou a dizer que o disco tem influências de Radiohead, e confirmou o NiN como referência).
Na reta final, o álbum se aventura por outros terrenos: How bad do U want me e Don’t call tonight flertam com o pop dinamarquês dos anos 90 (e são, por sinal, as únicas faixas pouco inspiradas do disco); The beast tem cara de trilha sonora de comercial de cerveja; e Lovedrug mergulha na indefectível tendência soft rock que surge hoje em dia em dez entre dez discos pop. Essa faixa soa como um híbrido entre Fleetwood Mac e Roxette – como se Gaga estivesse pensando também na programação das rádios adultas de 2035.
O desfecho de Mayhem chega como um presente para o ouvinte: Blade of grass é uma balada melancólica de violão e piano, que ecoa tanto a tristeza folk dos anos 70 quanto a melancolia do ABBA, crescendo em inquietação à medida que avança. E então, como quem perde um pouco o tom, o álbum termina com… Die with a smile, a já conhecida balada country-soul gravada em parceria com Bruno Mars, lançada há tempos como single. Dentro do contexto do disco, ela soa mais como um apêndice do que como um encerramento – uma nota de rodapé onde se esperava um ponto final. Nada que chegue a atrapalhar a certeza de que Lady Gaga conseguiu, mais do que retornar ao passado, unir quase todos os seus fãs em Mayhem.
Nota: 8,5
Gravadora: Interscope
Lançamento: 7 de março de 2025.
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