Cultura Pop
Sinal de Alerta: a abertura de novela mais punk da televisão brasileira
Exibida pela Globo entre 1978 e 1979, a novela Sinal de alerta mexeu em vespeiros um tanto complexos para a época.
Até aquele período, o tema “ecologia” aparecia em uma música ou outra do Roberto Carlos – isso para ficar nos produtos populares do Brasil. Não havia nem sequer um partido verde no país (o PV data de 1985). E temas como “poluição” e “meio ambiente” só apareciam mesmo em reportagens de telejornal, que davam ao grande público a sensação de que aquilo tudo era numa galáxia distante daqui.
Agora volte para o começo dos anos 1970 e analise o fato de que o cardápio do “milagre brasileiro” (e do governo militar) incluía arrocho geral em operários e fábricas trabalhando ininterruptamente. Nesse cenário, a Globo pôs no horário experimental das 22h uma trama (escrita por Dias Gomes) que falava da poluição das grandes cidades, da fumaça das chaminés das fábricas e da prepotência dos capitães de indústria. Por sinal, personificados em Tião Borges, o dono da poluidora fábrica de inseticidas Ferlitit e personagem de Paulo Gracindo.
Os fãs de aberturas de novelas e de trilhas sonoras também ganhavam uma surpresa com Sinal de alerta. Nas chamadas das novas tramas, era comum que a emissora apresentasse o elenco ao som da música da abertura – que era sempre um lançamento. Quem visse os comerciais da futura novela, com a demonstração do elenco, ouviria Salve o verde, balanço que Jorge Ben havia composto para o Quarteto Em Cy cantar. Uma outra inovação da novela já vinha nas chamadas: o nome Sinal de alerta não aparecia, apenas a máscara contra gases que simbolizava a trama.
No LP da trilha nacional, Salve o verde ocupava exatamente o local destinado às músicas de abertura nos antigos LPs (se você nunca tinha reparado, elas sempre encerravam o lado A). Mas na abertura, a Globo optou por não usar trilha e utilizar um som que mais parecia uma versão folhetinesca de Revolution 9, dos Beatles, com vários ruídos colados. E várias imagens que misturavam desenhos, fotos e uso de modelos.
Pode ter passado despercebido para muita gente, mas a abertura de Sinal de alerta levava para a TV brasileira algo parecido com o estilo gráfico das animações de Terry Gilliam para o Monty Phyton’s flying circus.
O velho slogan televisivo do “no ar, mais um campeão de audiência!” não funcionou para Sinal de alerta. A novela foi bastante criticada, não gerou muito Ibope e deixou o horário das 22h parado por alguns anos.
Com as greves do ABC paulista dobrando a esquina, a Globo insistiu em ambientar a história de Sinal de alerta no Rio. Isso pode ter servido para tranquilizar a censura, mas cortou parte do realismo da trama. Dias Gomes, não custa lembrar, havia se inspirado no dia a dia insalubre de um bairro de São Paulo para escrever o texto. Por sinal, a novela nem sequer revelava o nome do bairro carioca onde ficava a fábrica, “para não desvalorizá-lo” (dizia o autor a O Globo em 31 de julho de 1978).
A abertura de Sinal de alerta hoje, no entanto, é bastante lembrada – mais recentemente, por causa do YouTube, que a imortalizou. E marcou época por levar experimentação e uma arte quase punk à TV brasileira. O POP FANTASMA decidiu procurar os três criadores da abertura, Hans Donner, Rudi Böhm e Sergio Liuzzi, e reconstruir a história do trabalho.
Praticamente as mesmas perguntas foram feitas aos três. Böhm e Liuzzi responderam por escrito e Hans enviou um áudio por intermédio de seu assessor de imprensa. Optamos por contar tudo como uma história oral, com os temas envolvidos e tudo o que foi falado/escrito.
O COMEÇO
SERGIO LIUZZI. Entrei na Globo como assistente de cenografia. Havia trancado a Faculdade de Arquitetura na ilha do Fundão. Soube que dois alemães estavam preparando uma grande mudança na identidade visual da televisão. Conheci o Hans através do designer Nilton Nunes que já trabalhava na Globo há alguns anos. Fizemos a abertura de uma novela de época (das seis) que teve boa aceitação. A área que o Nilton trabalhava transferiu-se para o prédio recém-inaugurado numa sala ao lado do Hans. A partir daí, com o tempo nos aproximamos e tornei-me seu assistente.
RUDI BÖHM. Para encurtar a longa história, caso contrário, seria uma novela, eu trabalhava, neste época de 1972, como designer de televisão austríaca sob a direção de Erich Sokol. Ele era um excelente designer e fantástico chargista da Playboy e depois da Kronenzeitung em Viena.
Hans e eu nos conhecemos em Viena. Logo depois ele voltou do Brasil pela primeira vez. Como ele não sabia nada de animação e eu já trabalhava com desenhos animados e filmes de animação, ele me convidou para animar seus primeiros logotipos na Globo.
Ele voou de volta ao Rio com este primeiro filme de 35 mm, que foi em 1973. Pouco depois, em 1974, a Globo me convidou para uma consulta e logo depois mandou um contrato de trabalho como diretor de arte. Nossa área de trabalho foi dividida em duas divisões. O logotipo e o design corporativo era com o Hans e, mais tarde, com a ajuda de Sergio. E a minha parte estava o design em movimento. Nisso, Nilton Nunes, que era um editor de vídeo, foi um importante ajudante. Também naquela época, tínhamos ajuda de Cissa Guimarães. Era nossa estagiária.
Além de aberturas de novelas, que eram produzidas em cinema, minha área era a criação das chamadas, pré-censuras, vinhetas, inter-programas e aberturas para séries de TV. A primeira abertura da novela Bravo foi em 1975, depois veio Estúpido cupido (1976), Espelho mágico, Nina (1977), O pulo do gato, Dancin days, Sinal de alerta (1978). Depois Pecado rasgado, Marrom glacé, Malu mulher, Plantão de polícia, Carga pesada (tudo em 1979), e todas as vinhetas da programação.
Nessa época, no Fantástico, fui produzido por Guga, irmão do Boni, na Blimp Filmes, de São Paulo. E ainda todos os jornais, como Jornal Nacional, Jornal Hoje, Jornal da Globo, Globo Repórter, Carnaval, etc.
No começo, não havia nenhuma câmera de animação tipo Oxberry no Brasil. Então eu voei de outubro a janeiro para Nova York e Los Angeles, onde criei e produzi o jogo das vinhetas anuais, em estúdios de cinema. E o resto do ano o meu tempo foi preenchido com produção de aberturas. O restante foi feito em vídeo com Nilton, Hans e Sergio.
HANS DONNER. Olha, difícil de imaginar que alguém me pergunte de um trabalho feito há 400 anos… Porque é assim que eu me sinto. Nas primeiras décadas, daquele ano de 1978, cada ano contava como dez. Depois cada ano virou 20, 30 em termos de contagem de tempo. Mas óbvio que eu me lembro de todos esses projetos, porque foram o início, literalmente, de mexer com a sensação e a emoção de todos os brasileiros.
Foi uma das aberturas que ficaram na memória, muitas pessoas devem se lembrar de Sinal de alerta. E naquele mesmo ano de 1978, eu preparei uma mulher saindo da banana (na abertura do humorístico O planeta dos homens). Hoje, nas minhas palestras, eu resumo e destaco os trabalhos mais impactantes, e com certeza a Wilma Dias (modelo da abertura) saindo da banana faz parte dessa seleção de dez ou doze aberturas que fazem as pessoas viajarem no tempo.
TECNOLOGIA NA TV, ANOS 1970
HANS DONNER. Era nítido para onde o mundo estava caminhando quando usamos aquelas imagens na abertura. O Rudi era um gênio, dominava uma máquina que custava 500 mil dólares e que a Globo comprou imediatamente quando eu pedi. E ainda tínhamos um assistente como o Sergio.
SERGIO LIUZZI. Até meados dos anos 1980, a computação gráfica dava seus primeiros passos. As abertura das novelas, telejornais e programas eram feitas em vídeo, de forma bastante rudimentar, ou em animação – Sinal de alerta – numa truca operada pelo Rudi, que a Globo alugava. A truca fazia as animações quadro a quadro em película, um processo demorado e extremamente complexo, porém com infinitos recursos.
RUDI BÖHM. A abertura de Sinal de alerta foi o primeiro trabalho e, de alguma forma, o único (na época não havia computador) onde eu combinava muitas técnicas. O material básico era fotografia de stop-motion e filmagens de time-lapse em fotografia.
O personagem principal era Claudinho, meu assistente de São Paulo na época. Aliás, um personagem maravilhoso.
O trabalho fotográfico e o material básico de filme ao vivo foram produzidos pela Lynxfilm. Lá tinha a única câmera de time-lapse do América do Sul. O material fotográfico foi inflado em Cibacrome (transparências), e depois composto com máscaras de Kodalith (papel fotográfico).
Só tinha uma câmera de animação (Oxberry) no Brasil. Era de Josef Reindl, um checo. A empresa chamava se Truca, na Rua Abolição, Bela Vista, que possuía a primeira câmera de animação inglesa, uma Nilson-Hardell. A imagem ao vivo foi combinada com o material stop motion na imagem aérea. No final, combinamos o material pré-trucado com as máscaras no banco óptico. E essa máquina chamava-se truca.
Hoje em dia tudo soa um pouco chinês, mas era um trabalho emocionante de quebra-cabeça que exigia muita paciência e perseverança.
Depois que meu storyboard foi aceito por Boni e pelo diretor Walter Avancini, o que aconteceu imediatamente, mudei-me para o Hotel Jaraguá, São Paulo, na Rua Martins Fontes. E comecei a produção. Carlito Maia, que trabalhava para a Globo na época, foi uma grande ajuda. Além de fazer uma maravilhosa introdução à culinária italiana em São Paulo!
Lembro-me de uma visita do Boni, dois, três dias antes do término do trabalho para ver a abertura na moviola. Ninguém havia visto esse trabalho antes.
Em um domingo chuvoso, a ponte aérea foi fechada. Eu voei para o Rio com um jato particular e o material entrou segunda-feira no ar.
HANS DONNER. Eu me lembro daquela cena em que quis mostrar a poluição da Lagoa Rodrigo de Freitas. Puxei aquele “pano de lama” na frente da câmera para inserir naquela cena porque na época planejava-se concretar a Lagoa e construir prédios, o que graças a Deus não aconteceu. A poluição virou de fato o que estávamos mostrando naquela época.
NADA DE MÚSICA-TEMA, SÓ RUÍDOS
RUDI BÖHM. Desde o início do meu trabalho como animador, sempre fiz meu próprio som para meus filmes. Para mim, não havia outra opção e Boni tinha 100% de confiança no meu trabalho. E imediatamente concordou com essa versão.
HANS DONNER. Foi incrível descobrir que um cara como o Boni permitiria que usássemos apenas uma máscara sem colocar escrito “sinal de alerta”. O Boni foi impressionante: aceitou que não colocássemos música, como em todas as novelas. Só ruídos. Isso já era uma loucura.
SERGIO LIUZZI. De todas as aberturas que participei, com o Hans (a maior parte) e com o Rudi, Sinal de alerta foi a mais ousada, uma vez que o conteúdo tratava de um tema até então inédito nas telenovelas – problemas do cada vez mais acentuado desordenamento urbano que afetavam os moradores dos grandes centros.
O Rio de Janeiro desde o início dos anos 80, vinha num processo acelerado de desconstrução. Estávamos no final dos anos 80, e as questões ligadas ao meio ambiente não tinham a relevância e exposição diária nos meios de comunicação que têm hoje. Não existia internet. A questão ambiental não era tema de primeira página. A Eco 92 (que participei de uma exposição coletiva no MAM) só aconteceria 12 anos depois. Lembro-me que uma ou duas cenas do roteiro da abertura foram retiradas a pedido da direção. A trilha sonora ficou perfeita, em total sintonia com as imagens.
INFLUÊNCIA DE TERRY GILLIAM E MONTY PHYTON. TEVE?
SERGIO LIUZZI. Tomei conhecimento do Monty Python muitos anos depois. Honestamente não é definitivamente a minha praia. Devo ter visto umas duas vezes.
RUDI BÖHM. Sempre fui um fã de Terry Gilliam, desde o início. Eu amei e amo seu senso de humor e sátira. Hans e Sergio tinham um visão mais acadêmica e laqueada de design, um pouco como uma camada de pomada brilhante para os cabelos.
HANS DONNER. As trucagens na Oxberry foram um pouco inspiradas neles sim, e nessa linha se fez vários trabalhos.
INFLUÊNCIA DE “REVOLUTION 9”, DOS BEATLES. TEVE?
SERGIO LIUZZI. Agradeço pela analogia com Revolution 9, dos Beatles, mas honestamente, nunca passou por minha cabeça tal referência e acho que tampouco pelo Hans ou pelo Rudi. É possível que tenha havido, mas de forma totalmente inconsciente. Afinal somos da geração Beatles e Rolling Stones.
RUDI BÖHM (perguntado sobre se concordava com a comparação com a música dos Beatles) Concordo sim. Para mim, a arte em movimento só funciona com o conceito. Esta é a única maneira de explicar algo para o público e, às vezes (?!), permitir uma mudança na sociedade. Por esse motivo, mais tarde, trabalhei em várias TVs públicas no Brasil, o que me trouxe uma grande satisfação.
REPERCUSSÃO NA GLOBO
SERGIO LIUZZI. As propostas sempre eram levadas pelo Hans para que o Boni aprovasse. Não me lembro de nenhum comentário desfavorável. Creio que a abertura, quando apresentada para aprovação, teve uma ou duas passagens retiradas, mas não fizeram uma grande diferença. O tema da novela, por si só, já levantava algumas questões polêmicas.
RUDI BÖHM. Como eu disse, exceto o Boni, ninguém viu o trabalho até um dia antes de ir ao ar. Tanto quanto me lembro, não houve queixa. Naquela época, a poluição era um (quase) problema para o futuro. Dias Gomes, um homem sábio, era um dos poucos a tocar nesse tendão de Aquiles.
Foi também a primeira novela cujo logotipo era um desenho e não uma rotulação.
GRAVANDO O SOM.
RUDI BÖHM. Gravamos os trechos de ruídos no estúdio da Rita Lee, no Leblon. Guto Graça Mello foi responsável pelo gerenciamento técnico. Depois trouxe o material para São Paulo via fita magnética de 17 1/2 e montei na Moviola as bandas sonoras. Depois misturamos e mixamos no Estúdio Álamo na Vila Madalena. Uma cópia em som óptico foi desenvolvida e uma redução para 16mm foi feita com o internegativo de 35mm. Naquela época, a Globo ainda não possuía um telecine de 35 mm que transferia o filme para o vídeo.
SERGIO LIUZZI. As músicas das aberturas já chegavam definidas. As trilhas sonoras eram comercializadas pela gravadora Som Livre, uma empresa do grupo Globo. Não sei se a trilha de Sinal de alerta, distribuída pela Som Livre, incluía os ruídos usados na abertura – creio que não (não, os ruídos ficaram apenas na abertura).
TRABALHO EM CONJUNTO
RUDI BÖHM. Hans e Sergio fizeram o logotipo. Nada mais.
SERGIO LIUZZI. O primeiro contato que tínhamos com as novelas era feito através de uma sinopse com uma ou duas páginas. Os textos chegavam em português, sem tradução. Em Sinal de alerta, fizemos um storyboard a partir de anotações das idéias e propostas de cada um. A partir da narrativa que criamos, o Rudi construiu as imagens na Oxberry (truca).
O PÚBLICO FICOU IMPACTADO?
SERGIO LIUZZI. Não dava tempo para ter esse tipo de avaliação, nem tampouco interesse. Nosso ritmo de trabalho era intenso.
RUDI BÖHM. Foi realmente a única e provavelmente a última abertura que teve uma mensagem para o público. Não era um papel de embrulho para um produto, como os outros.
É claro que a plateia ficou chocada, mas eles entenderam o conteúdo.
Naquela época, não havia um Bolsonaro, dizendo coisas estúpidas.
DEPOIS DE “SINAL DE ALERTA”.
HANS DONNER. Nem me pergunte onde estão o Rudi e o Sergio, são 40 anos. De vez em quando escuto que um deles virou fazendeiro, cuida de escolas no interior de São Paulo… Foram pessoas que fizeram parte dos primeiros trabalhos, usando o desespero dos sinais que estavam por vir, e que hoje estão vendo o quanto valeu alertar as pessoas. Alertá-las que elas iriam ser transportadas dentro de latas de sardinha, ou sendo empurradas, como no Japão é praxe. Ou tendo memória dos prédios sendo arrancados com guindaste.
SERGIO LIUZZI. No segundo ano de faculdade, desisti definitivamente da Arquitetura, e dei muita sorte de ter trabalhado com o Hans. Com ele aprendi que design é persistência e dedicação. Os três anos e meio que trabalhamos lado a lado me deram a base para que eu partisse para outras aventuras (no design gráfico). Tive um escritório de design por vinte anos. Pude, então, “passear” por diversos segmentos, atendendo clientes das mais diferentes áreas e conhecer outros ótimos designers. Foi um desafio, mas valeu a pena.
RUDI BOHM. Hoje, minha vida cotidiana tem muitas facetas.
Dirigir vídeos documentais, escrever livros, fazer fotos e pintar exposições, cozinhar, trabalhar na minha carpintaria e cuida da manutenção da Escola e da biblioteca de Associação Apecatu.
Manutenção significa telefone, hidráulica, eletricidade, cadeiras, mesas… Dá para se divertir! Dá para se divertir! Entre no site www.rudibohm.com.br e/ou www.apecatu.org.br para ver mais.
HANS DONNER. Se vocês me levaram de volta para 1978 e acharam que o Sinal de alerta foi uma premonição, respondo que o verdadeiro Sinal de alerta eu fiz em 1992.
Foi a abertura da novela Deus nos acuda, quando veio na minha cabeça mostrar como nosso país ia ser roubado. E representei tudo com uma lama invadindo uma festa de roubalheira milionária em Brasília, em que a lama estava vindo até a boca e ninguém estava nem aí. Infelizmente ela entrou na nossa boca e o Brasil foi roubado.
Coloquei nessa abertura um sinal de alerta, de um presidente que foi impichado por comprar Ferraris e Porsches. A CNN botou um jornalista na minha sala na Globo para falar dessa abertura. Era um sinal de que só deus pode ajudar a gente. Essa abertura deveria ter tido o subtítulo “sinal de alerta”, mas ninguém se tocou. Estamos no fundo do poço e nosso país foi roubado do mapa múndi. Foram imagens que entraram além da retina, mas não entraram no estômago, para que cuidassem mais do nosso país.
Mais sobre Sinal de alerta aqui e aqui.
Aqui, o contexto político da novela.
Veja também no POP FANTASMA:
– O grito: aquela novela perturbadora da Globo ganhou tese de doutorado
Cultura Pop
Bateria, histórias e legado dos Paralamas: um papo com João Barone
O principal compositor dos Paralamas do Sucesso é o guitarrista e vocalista Herbert Vianna. Mas como qualquer fã do grupo sabe, Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) são o motor do grupo, a condução que dá base e peso às músicas. E o baterista, em especial, foi o catalisador de duas canções históricas do grupo. Elas são Melô do marinheiro, que surgiu de uma brincadeira no estúdio caseiro do trio, e O que eu não disse – esta última, uma canção lado-Z dos Paralamas, mas importantíssima por ser a única parceria gravada de Herbert e Renato Russo, além de ter a co-autoria de Barone.
Com experiência em outros dois livros sobre histórias da Segunda Guerra Mundial (assunto que já o levou também a escrever colunas e dirigir documentários), João Barone lança agora seu primeiro livro ligado à música: 1,2,3,4! Contando o tempo com os Paralamas do Sucesso (Ed. Máquina de Livros) não é uma biografia da banda, mas “a historia do cara que nunca perdeu um show da banda, e vista por um lugar privilegiado, atrás da bateria”. Quem curte bastidores, vai encontrar lá desde zoações de bastidores (algumas de rolar de rir) até tudo, ou quase tudo, que rolou durante a gravação de álbuns importantes do grupo. O livro já teve alguns eventos de lançamento e ganha mais um no dia 5 de dezembro (quinta) na Livraria da Travessa do Barra Shopping, no Rio – vai rolar uma noite de autógrafos e um bate-papo mediado por Luiz Felipe Carneiro, do canal Alta fidelidade.
Batemos um papo com Barone sobre o livro, sobre o legado dos Paralamas e sobre questões que a banda vem enfrentando nas últimas duas décadas – período que não está neste livro, mas estará num próximo, assim que ele se animar a escrever.
(Foto: Marcio Farias/Divulgação)
Como tem sido o retorno das pessoas ao livro?
Tá sendo muito supreendente. Já tive um feedback de pessoas muito queridas, que leram, que gostaram, se emocionaram, riram, choraram, sentiram raiva, todas as nuances de sentimentos humanos (risos)… Eu tentei de alguma maneira fazer uma narrativa fluida, que não ficasse um negócio muito cacete, e algumas pessoas me deram a percepção de que o livro tá com um flow legal. Vou contando as coisas de uma forma bem sutil e com uma carga emocional que eu acho que é o que orientou a feitura do livro.
A ideia nem era fazer um negócio jornalístico, nem de pesquisa de fatos, lugares… Existe uma lembrança de momentos, pessoas, que passa muito por esse lado emocional, mais até do que pelo lado factual. Toda hora eu falo que não é uma biografia oficial da banda. Ela pode ajudar a contar um pouco da banda, mas não tem o objetivo de virar um documento. Pode até virar uma referência pra entender os Paralamas, já que é a historia do cara que nunca perdeu um show da banda, como eu brinco no livro (risos). E daquele lugar privilegiado, ao menos do meu ponto de vista, que é o lugar da bateria… É uma tentativa de contar essa história de uma forma pessoal, particular.
Você cita o Paul Auster e o Bob Dylan como inspirações para escrever, mas teve algum mentor, algum mestre que esteve mais por perto?
Eu citei o Paul porque o Dado Villa-Lobos e a Fernanda (esposa dele) me deram um livro dele de presente, Da mão para a boca. É um livro muito recente dele, dos anos 1990… E teve aquela biografia enorme do Dylan. Eu gosto dessas biografias – a primeira do Paul McCartney também é legal – em que você vê pessoas que você acha que não são normais falando sobre coisas triviais.
Verdade…
Não é? Parece que você faz uma religação com elas, ao saber que no fundo são pessoas de carne e osso também, mesmo tendo composto músicas espetaculares e alterado a vida de um monte de gente no planeta. Quando eu fiz meus livro sobre a segunda guerra eu me inspirei no Eduardo Bueno, no Laurentino Gomes, essa coisa do jornalismo histórico, quase investigativo. Uma boa leitura não tem muita regra, tem muita coisa boa pra ser feita, muita música boa pra ser ouvida…
Você cita no livro várias vezes as aventuras de vocês nos anos 1980 em meio a turnês, quartos de hotel etc. Tem coisas que eram engraçadas na época, mas hoje as pessoas pensam “opa”, porque mudou muita coisa no mundo, certas coisas eram encaradas de um jeito em 1983, 1984 e hoje são encaradas de outro jeito. Teve algum momento em que você pensou “ih, será que eu falo disso, será que eu não falo?”. Como foi pra você rever sua história por esse viés de hoje?
Pois é, naquele época o mundo não tinha rédeas. Ao mesmo tempo, com essa mudança de paradigmas, essa tentativa de reconstruir realmente uma sociedade… Não é a coisa da censura ou da caretice, é você saber que determinados comportamentos de antigamente eram horríveis. Só de pensar que você entrava num avião e tinha gente fumando, já mostra como a gente vivia. Eu procurei falar do que a gente fazia para dar uma noção do zeitgeist daquela época – enfim, usando essa expressão meio metida…
Tive o cuidado, por exemplo, de explicar que a plateia do programa do Chacrinha era chamada de “macacas de auditório” e contextualizei, expliquei o que estava por trás disso. Era algo que só refletia como a gente tava ali sendo vítima de uma série de situações histórico-sociais, e ninguém percebia isso. Lembra a maneira como as chacretes (dançarinas do Chacrinha) se apresentavam? Hoje em dia não tem mais como mostrar aquilo na TV num sábado à tarde. Não é uma questão de ser careta, mas de saber que hoje em dia não pode mais fazer isso. E nada justifica esse recrudescimento dos dias de hoje. Temos que lutar conta os preconceitos de qualquer tipo: políticos, sociais, raciais… Imagina, naquela época um programa dos Trapalhões tinha uma piada racista e todo mundo ria.
O livro termina com a recuperação do Herbert Vianna após o acidente e o retorno do grupo aos palcos. Você está pensando numa segunda parte?
Pois é, foi uma segunda vida que a gente teve, né? Eu fui obrigado a condicionar o tamanho do livro, porque eu queria que ele saísse nesse momento, que é a data cheia dos 40 anos dos Paralamas. Se teve alguma coisa programada da minha parte foi sair com o livro a tempo de pegar os 40 anos de estrada. No início, o prefácio do José Emilio Rondeau (jornalista e hoje criador da newsletter Farol) apresenta um pouco o momento atual, essa nossa tentativa de olhar um pouco para esse tempo decorrido, onde estamos agora.
Mas a minha narrativa sobre a música, sobre como ela mudou minha vida, antes dos Paralamas e principalmente depois que conheci o Bi e o Herbert… Eu tentei dar a dinâmica da nossa vivência e todas as experiências que tivemos do primeiro até o último álbum que a gente gravou antes do acidente, que foi o Hey nana (1998), e terminei o livro no momento em que o Herbert estava voltando, porque foi quando tivemos a percepção de que podíamos seguir com a banda. Fiz esse falso epílogo para poder justamente juntar motivação para escrever sobre esses outros 20 e poucos anos já vividos desde então. Tô me motivando pra sentar e começar a escrever porque tem muita história, coisas vivenciadas, muitas outras aventuras que a gente viveu. Tem muita coisa ainda que pode ser um prato cheio pra uma narrativa.
Como você acha que está hoje em dia a situação para uma banda que tem um integrante cadeirante? Tinha muito problema quando vocês retornaram com o Herbert nessa condição? Vocês viam muito amadorismo das pessoas?
Isso é digno de menção, porque tivemos que impor uma certa nova realidade para fazer os shows. Acessibilidade ainda é um tabu muito grande, para poder fazer com que as pessoas que têm limitações possam viver sua cidadania, sua plenitude. A gente sabe que o Herbert é um cara muito privilegiado, porque tem toda uma estrutura que vai na frente dele, e individualmente é mais difícil para cada uma das pessoas que precisa ter condições para acessar os lugares, ir a um show ou supermercado. É uma realidade que é muito dura para muita gente.
Do ponto de vista prático, para viabilizar os shows, as viagens, era preciso uma dinâmica melhor das companhias aéreas, dos desembarques de pessoas cadeirantes. Fomos vendo isso ganhar até um pouco mais de consciência, de estrutura. Na hora dos shows, está mais fácil para o Herbert acessar o palco. Fomos tendo ao longo dos anos uma certa melhoria, conseguimos impor as condições para que ele tenha essa acessibilidade. E o Herbert virou referência nisso, porque todo mundo vê ele na hora do show, dono do que ele faz. Ele virou uma referência para muita gente correr atrás dos seus direitos, mostra que nas condições dele dá para realizar muita coisa ainda, ir além. O Herbert tem uma presença muito forte no sentido de ajudar as pessoas a irem além de suas dificuldades. Ele é uma espécie de super herói!
Aquele verso que ele incluiu em Óculos, “em cima dessas rodas também bate um coração”, é emocionante.
Sim, é incrível! Em todo show a plateia vibra nessa hora.
Nos anos 1990 você lançou uma videoaula, João Barone dá o toque. O seu livro é bem didático nessa coisa de você falar sobre como se apaixonou pela bateria, de você já pensar na sua bateria no palco da mesma forma que o Stewart Copeland (The Police) colocava a dele. Como você vê o lado didático do seu trabalho?
Fico lisonjeado com o efeito que meu trabalho causa nas pessoas. Essa videoaula foi um tentativa minha, naquela época, porque eu já tinha um retorno muito grande das pessoas. Nem existia mídia social, eu recebia cartas dos fãs nas gravadoras, as pessoas me abordavam no pós-show, tinha gente que me abordava nas ruas… Sempre senti que meu trabalho na bateria dentro dos Paralamas tinha um reconhecimento muito legal por parte do público. E havia um nicho de pessoas que gostavam de bateria, se bem que naquela época nem se falava em nicho. Mas era algo bem palpável pra mim. Eu convenci o pessoal da EMI a experimentar produzir uma vídeoaula. Juntei condições ideais de custo-benefício: arrumamos uma produtora em Porto Alegre, meu irmão dirigiu, criamos situações para facilitar o custo. Muita gente me aborda até hoje dizendo que começou a tocar bateria vendo minha aula!
Há uns três anos fui convidado pelo baterista Aquiles Priester para fazer uma clínica. Foi em São Paulo, e o mundo tava ainda um pouco com os efeitos da pandemia, daí não podia ter aula coletiva, só individual. Fiz uma série de 20 escolas de música no interior de SP com essas aulas, e consegui reeditar minha videoaula em formato de DVD. E ofereci isso pra galera que não conhecia na época. É um negócio bacana, porque costumo explicar que nunca fui um músico convencional.
Eu não tive muito estudo, eu tinha mais essa coisa autodidata. Minha única experiência em ter aula de bateria foi com o baterista da banda de baile do meu bairro. A gente tirava a música direto do disco! E a aula era essa: uma pick-up e a gente tocando as músicas do Led Zeppelin por cima. Meu aprendizado era uma coisa muito lúdica, muito solta, de tocar em casa com baqueta de bambu nos travesseiros. Foi assim até eu entrar para os Paralamas, porque só comecei a tocar bateria mesmo quando entrei pra banda. Aí foi uma coisa meio…. “cuidado com seus sonhos, que eles podem se realizar” (risos).
Verdade…
E eu me tornei um baterista mesmo quando comecei a tocar com o Bi e o Herbert. A gente largou a faculdade e… “agora eu vou ter que ser um baterista mesmo”. Eu ia mais para um lado intuitivo, chegava mais cedo no estúdio antes da gravação para ficar tocando em cima do metrônomo, para aprender a tocar num andamento legal. Fui me doutrinando de alguma forma e tentando corresponder ao que esperavam de mim enquanto baterista. Meu norte inicial foi me tornar um cara confiável. Porque os Paralamas têm isso: o Herbert é um músico mais completo, ele já sabia até tocar bossa nova, tocava violão, exímio guitarrista. E como ele é um cara muito perspicaz, foi desenvolvendo essa capacidade incrível de compor. O começo da banda mostra isso. A gente não tinha um repertório lá muito grande. O Herbert começou a escrever aquelas músicas meio na chapa quente.
Já o Bi, me identifico muito com ele porque somos músicos intuitivos. A gente não foi pra escola aprender a tocar, se tivesse ido seria até melhor. Bom, seria diferente, talvez, não sei se melhor (risos). Fomos correndo atrás do sonho de nos tornarmos músicos e o Herbert sempre confiou muito na gente, sempre teve uma generosidade muito grande comigo e com o Bi, até porque ele sabia que se não fosse a gente, seria Herbert e a banda dele. Ele sempre quis essa caráter de banda. Mesmo com ele compondo e cantando, nossa música é uma resultante de nós três. Essa ligação muito forte entre nós é que gerou os Paralamas. Fomos galgando nossa própria identidade. E isso foi sendo conseguido através da confiança mútua.
No livro, você recordou a história da música O que eu não disse, uma parceria sua com Herbert Vianna e Renato Russo, que está no primeiro disco da banda, Cinema mudo (1983). Eu sempre achei essa música linda e ficava irritado porque não tocava no rádio. Você ficou chateado dela se tornar apenas um lado B do grupo?
Ah, o que será, será, né? Ela chegou a tocar um pouco nessas FMs adultas, é uma balada bem açucarada, talvez uma tentativa de refletir o que aquelas bandas inglesas meio românticas estavam fazendo, Duran Duran, Smiths. E essa música é uma efeméride, uma sequência harmônica que eu fiz no violão, que o João Fera tinha me ensinado. O Herbert achou isso legal, pôs numa música e o Renato fez a letra com ele. Assim como é uma efeméride também a Melô do marinheiro, que foi acidental! Fui brincar com um gravador que o Herbert usava para gravar alguns ensaios. Comecei a brincar com a bateria eletrônica. Quando fui mostrar a fita pro Bi e pro Herbert, eles caíram no chão de tanto rir. E todo mundo morria de rir com ela, a música se provou ao que veio. Ela é um espécie de O pato dos Paralamas, uma brincadeira que a gente acabou gravando e que virou uma das músicas nossas mais conhecidas. A criançada adorou, a gente jamais imaginaria que iria fazer uma música pro público infantil… Nem tinha nada a ver com a gente.
Vovó Ondina é gente fina, do primeiro disco, tem essa onda infantil também.
Sim, ela tem esse lado hilário do Herbert e é um roquinho a la Jovem Guarda, ou Stray Cats, que a gente adorava.
Falando nisso, como você vê hoje o Cinema mudo? Havia um certo incômodo com ele, expressado por vocês em entrevistas… Ele foi inclusive remixado há pouco tempo. Como você vê o disco depois disso?
Bom, eu tive um rompante e falei: “vamos remixar nosso primeiro álbum!”, porque aí quem sabe a gente ao menos tenta tirar um pouco aquela nossa primeira experiência meio atravessada com ele. Ele foi um álbum muito incipiente, foi feito muito rápido. Naquela época a gente ainda estava tendo aquela noção de que se você entra num estúdio, tempo é dinheiro, e tudo ali foi gravado com certa urgência, uma certa pressa. Quando a gente recebeu o OK para fazer a remixagem e relançaram o Cinema mudo remixado, a gente teve uma surpresa ouvindo as gravações originais, porque vimos ali que nós éramos moleques com muito ímpeto. Foi bem interessante ver como a gente poderia melhorar tecnicamente o som sem descartar nada (a propósito, resenhamos a nova edição de Cinema mudo aqui).
Foi uma viagem no tempo, era o primeiro álbum de uma banda que prometia. Inclusive acho que as pessoas estavam tendo essa percepção na época, de que a gente ainda podia fazer coisas a partir daquela nossa primeira experiência, e foi o que aconteceu. Até porque quando a gente entrou na Odeon… a gente não ia botar o pé em cima da mesa. Fomos entendendo como funcionava aquela estrutura. Eu costumo falar que naquela época, era mais fácil você ir à lua do que gravar um disco (risos). As gravadoras tinham estúdios, controlavam tudo, tinha tudo que ser dentro dos parâmetros de qualidade que eles queriam, ou dos parâmetros de direcionamento de público. Ainda funcionava assim a maneira como as gravadoras fatiavam o mercado: iam atrás de hegemonia financeira, econômica, quem vendia mais, quem lucrava mais, Roberto Carlos, as cantoras ganhando Mercedes conversível (risos)… A gente se sentia distante desse mundo, desse romantismo, dessa coisa meio inacreditável do estrelismo musical.
Quando as gravadoras viram que podiam ganhar muito dinheiro gravando aquelas bandas com discos que eram gravados em duas semanas, mixados em uma semana… Foi uma mudança de paradigma muito grande. Fomos tentando aprender com essa primeira experiência, e quando a gente foi gravar O passo do Lui (segundo disco, 1985), falamos: “olha, a gente vai gravar e queria uma autonomia maior no estúdio, para conseguir um som mais condizente com o de uma banda de rock”. Essa experiência meio atravessada do primeiro disco levou a um segundo álbum sensacional. O Herbert teve a inspiração daquelas músicas todas, mas a gente apostou tudo ali. Quisemos fazer um super som de bateria, guitarra, e fazer um negócio mais perto dos parâmetros que a gente tinha de banda estrangeiras. E foi um sucesso estrondoso, a gente até tava depois no Rock In Rio. Mas o primeiro álbum foi o patamar pra gente ir atrás dos nossos anseios musicais.
E eu fiquei impressionado de ler no livro que vocês conheceram o Zoltan Merky (diretor técnico dos tempos da Odeon, que aparece creditado em discos como o Clube da esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, como Z.J. Merky). Nem sabia que ele ainda estava na empresa naquela época…
Sim, o Zoltan (1920-2002) era um cara que tava administrando aquela bagunça ali. E ele impôs parâmetros muito rigorosos. A impressão que a gente tinha dos estúdios da EMI-Odeon é que aquilo parecia uma repartição pública da Alemanha Oriental! O ponteiro do VU (que mede o volume) não podia esbarrar no vermelho, e o Marcelo Sussekind (produtor dos Paralamas nos dois primeiros álbuns) falava: “cara, rock n roll tem que gravar é no vermelho!”. Fomos tentando contornar essas limitações. Mas o Zoltan acabou reconhecendo isso, por conta dos resultados que fomos tendo ali, justamente com O passo do Lui.
E a fama dele era de brabo!
Pois é, ele era o inspetor-geral da gravadora. E o estúdio 1 da Odeon era um lugar mitológico. Lá tinha mesa Neve, som espetacular, os microfones disponiveis eram Neuman, Telefunken. Foram gastos milhares de dólares ali, era tudo de altíssimo nível. Tinha que ter um zelo com aquilo. Só faltava mesmo era um pouco mais de ousadia, de usar o estúdio como uma ferramenta artística, pegar mais ambiência na bateria. Aquela coisa que a gente lia na Musician, no New Musical Express, nas entrevistas com grandes produtores, como Bob Clearmountain, Steve Lillywhite, ou o Hugh Padgham, que produziu vários álbuns do The Police, e inventou o som de bateria do Phil Collins. A gente queria botar a mão na massa. Porque os equipamentos, a gente tinha. Faltava só vontade política.
(a propósito, para saber mais sobre Zoltan Merky, recomendamos o livro Terra Trio, escrito pelo autor desta entrevista, e lançado pela editora Sonora – desculpem o merchan)
Você falou agora há pouco do João Fera e está para sair um livro sobre ele. Como você está vendo o fato da história dos Paralamas do Sucesso estar ganhando tantos contornos diferentes, produtos, visões diferentes? Tem o musical da banda também…
O musical tá sendo um sucesso. Recentemente, logo depois da pandemia, saíram dois documentários que quiseram fazer sobre a gente, e que foram bem referenciais sobre as origens dos Paralamas, muito emocionantes e muito bem feitos. Teve o Herbert de perto, filme sobre o Herbert, o documentário Os quatro Paralamas (ambos de Roberto Berliner). E tem o musical. Quando vieram procurar a gente para falar sobre isso, não demos impeditivo nenhum, só não pudemos ter nenhum envolvimento. As pessoas que fizeram o roteiro são muito talentosas. Demos carta branca e foram muito respeitosos. O Zé (Fortes, empresário do grupo) foi assistir a um ensaio um dia antes da estreia e achou sensacional. Os músicos são muito talentosos, tem música ao vivo. Esse tipo de trabalho abre uma porteira muito legal nessa espiral virtuosa de trabalho, nas artes, no teatro. Porque precisa de técnico de luz, de cenografia, de técnico de som, atores, cantores, músicos. Isso é maravilhoso. Vi a avant-premiere do musical do Tom Jobim e achei fantástico, é de tirar o chapéu (até o dia da entrevista, João ainda não havia assistido ao dos Paralamas por questões de agenda).
Do livro do João Fera você participou de alguma forma?
Não, eu até faço um agradecimento a ele no livro, porque ele me ajudou a terminar meu livro me emprestando o data book dele. Ele tem o bom hábito, o nobre hábito, de anotar todos os shows que ele fez desde que começou a tocar. Isso desde a época dos bailes, ou os shows que ele fez com Wando. Ele anotou todos os shows, os lugares e quanto ele ganhou em cada um dos shows! Então quando ele entrou pros Paralamas em 1986 – em outubro, final de outubro, aliás – passou a registrar tudo, e temos o registro de todos os shows desde essa época, por causa disso. O João nos emprestou esse arquivo para a gente ter uma ideia de quantos shows a gente já tinha feito, para poder colocar nessas estatísticas, nesses documentários. E teve um papel importantíssimo no meu livro para eu saber datas e lugares.
Quem tá escrevendo o livro é o filho dele, o Fera deve estar sendo entrevistado. E ele tem mais história que o Papai Noel, vive contando histórias dos tempos bicudos, de baile, de quando ele tocava com o Wando e ia para a Amazônia de ônibus, aí de lá pegava um vião para ir tocar no Xingu… Ele foi desenvolvendo com o tempo essa tarimba que ele tem com reggae. Ele nem conhecia reggae antes de tocar com a gente, conhecia no máximo Bob Marley e Não chores mais, do Gilberto Gil. Fomos aplicando reggae nele e o João virou um exímio músico de reggae. Tem toda uma ciência que ele foi pegando, de como tocar aquele órgão percussivo do reggae.
E como você tá vendo o universo dos shows no pós-pandemia? Teve agora essa onda dos shows de “retorno”, de “despedida”, ou coisas como Titãs encontro…
Nossa percepção é que aquela tal “demanda não atendida” era uma espécie de represa que foi aberta. Romperam a represa e depois que acabou a pandemia… esse negócio até agora não acabou. O público parece que ainda está com aquela mesma demanda para assistir a shows de todos os gêneros. A gente percebeu isso na nossa agenda, que está muito movimentada. Na estrada, a gente encontra com muita gente do rock fazendo shows: Biquini, Pitty, os Titãs que estão ainda em ação – não os do Encontro, o trio que está aí.
É impressionante porque parece uma nova realidade mesmo, que estamos vivenciando: as pessoas ainda têm muito ímpeto para ir a shows, estamos vendo como os eventos de rock levam cada vez mais público, o Coala, o Lolla, o Rock In Rio, o The Town… É um exemplo de pujança, de como o segmento do rock ainda está aí levando gente, de como as pessoas estão dispostas a ter essa diversidade. Muita gente gosta de Paralamas e também de sertanejo, não é água e óleo. Tem aquela discussão sobre se as pessoas vão ao Rock In Rio par comer cachorro quente ou pra ver um artista, mas no fundo, tá todo mundo indo para lá por causa da música, para ver quem vai estar no palco. Se vão lá só para tirar foto, selfie, é outra história. Mas a pandemia acabou há dois anos e estamos vendo esse ímpeto todo do público, que está presente em grandes eventos e nos shows mais convencionais que temos feito em grandes espaços.
É muito legal ver que a gente ainda tem essa demanda fomentada por shows, a galera que curtia a gente nos anos 1980, a galera nova… E as pessoas estão deixando de fazer essas comparações esdrúxulas sobre se o rock tá aí ainda, se tem representatividade. Acho legal a gente tentar abrir espaço para coisas novas na medida do possível, festivais são bons para isso. Essa discussão sobre quem está subindo na ribalta pode ser saudável, mas se ficar comparando alhos com bugalhos…
O jornalista André Barcinski comentou no Twitter que hoje em dia tem tanto festival que as pessoas estão esquecendo do cenário de casas pequenas…
O Barcisnki comentou isso, né? Eu acho que ao mesmo tempo que deveria existia um pouco mais de gente tocando, bandas e artistas que não sejam tão mainstream, se precisa fomentar a existência desses lugares… No Rio tem um ou outro lugar que é legal. Talvez não ter tantos lugares assim aconteça por um reflexo na nossa realidade social, de violência nas ruas. Ou por causa dos encargos econômicos que dificultam na hora de abrir um bar, e aí é economicamente complicado ter um lugar desses.
E daí a necessidade de trazer gente nova pro lineup dos festivais, porque para isso, festival serve: botar gente que tá começando, não só consagrados. Ainda mais com essa dificuldade de botar headliners, de botar grandes atrações em festivais, algo que está sendo discutido a nível global. Os headliners fazem seus próprios shows em estádios cheios, sem precisar de festivais: Paul McCartney, Red Hot Chili Peppers… Eles enchem estádios sozinhos!
Encerrando, achamos há algum tempo uma foto da Madonna no banheiro do Danceteria, em Nova York, no começo dos anos 1980, em que aparece uma assinatura sua na parede do banheiro, bem perto dela. Você até comentou sobre a foto nas redes sociais. Como foi descobrir essa foto?
Caramba! O (jornalista) Pedro Só comentou com minha mulher sobre essa foto e foi uma história inusitada, muito divertido me deparar com isso. Foi uma coisa totalmente surreal e teve um efeito incrível. Postei no meu Instagram e foi muito divertido, muita gente viu e curtiu. Eu estava tocando com o Lobão lá, porque o baterista dele não conseguiu visto e a gente já conhecia o repertório dele todo. E o pessoal todo escreveu na parede. Só não falei disso no livro porque ele já estava pronto!
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Cultura Pop
No nosso podcast, o comecinho do Franz Ferdinand
Muitas bandas nascem da mais pura despretensão. Mas quando um grupo nasce da iniciativa de um integrante, que decidiu ensinar seu amigo de 21 anos (que nunca havia tocado um instrumento na vida) a tocar baixo… Bom, enfim, só de onda, nasceram aí uma banda e um músico. A banda escocesa Franz Ferdinand começou a surgir assim, quando Alex Kapranos (voz, guitarra) convidou Bob Hardy (baixo) para tomar um goró e, pela primeira vez, deixar de ser só um fã de música para aprender a tocar. Nick McCarthy (guitarra) e Paul Thomson (bateria) se juntaram à turma, e em breve, uma das bandas mais significativas do rock dos anos 2000 estava pronta para gravar.
Hoje no Pop Fantasma Documento, nosso assunto é o comecinho do Franz Ferdinand e a época em que, se você decidisse sair à noite, ia encarar músicas como Take me out e Darts of pleasure aonde quer que você fosse. Uma época em que muitas perspectivas mudaram, em que até o mercado da música mudou e em que até o lado “dependente” dos selos independentes parecia quase resolvido. Termine de ouvir e ouça com detalhes Franz Ferdinand (2004) e You could have it so much better (2005), os dois primeiros.
Século 21 no podcast: Billy Nomates e Supervão.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: George Harrison, “Living in the material world – 50th anniversary edition”
Ouvido hoje em dia, Living in the material world, quarto álbum de George Harrison (1973), eternamente considerado “álbum mais espiritualizado” do cantor, soa mais do que pé-no-chão. Se não fossem os problemas jurídicos e a onda de processos que rolaram entre os quatro Beatles, além da desestabilização pessoal e amorosa vivida por Harrison, talvez o autor de Something estaria envolvido em outros tipos de busca, talvez tivesse feito outro álbum, quem sabe sua inspiração apontasse para outros lados.
Principalmente, talvez ele não tivesse feito um disco (hoje remasterizado em edição comemorativa, supervisionada pelo filho e pela viúva do artista) que responde a todos os problemas que ele vivia na época. E que, de quebra, serve como resposta aos ex colegas de banda. A bela Give me love (Give me peace on Earth) soa como espelho dos protestos “pacifistas” de John Lennon e Yoko Ono. Mas a letra, com versos como “me mantenha livre deste fardo/me dê esperança/me ajude a lidar com essa carga pesada”, entrega que algo não ia bem com o cara que, em meio às batalhas judiciais dos Beatles – um contra o outro e todos conta o ex-empresário Allen Klein – cunhou a frase “se algum dia conseguirmos sair daqui”, que Paul McCartney ouviu e chupou para o hit Band on the run.
No dia a dia, George lidava com um casamento que ia terminando, com as tentações do capeta (cocaína, álcool e escapadinhas matrimoniais) e com as contradições entre a vida espiritualizada e o dia a dia de um rockstar poderosão. Também lidava do seu jeito com um fato básico: os anos 1960 já tinham acabado, ele já andava pelos trinta anos (parece pouco hoje, era a proximidade da velhice para roqueiros em 1973), e não adiantava fazer um disco que não vendesse e não tocasse no rádio. Depois da explosão roqueira e do vômito criativo de All things must pass (1970), George entregou-se à união de country, rock e blues, e a uma visão particular e messiânica do que seria o rock adulto-contemporâneo nos anos 1970.
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- Beatles: qual é a das coletâneas “vermelha” e “azul” afinal?
- Tudo (ou quase tudo) sobre All things must pass, de George Harrison
Em Living, músicas como Give me love e Don’t let me wait too long estabeleceram um paradigma de rock violeiro, pop, belo e melancólico que ressoa até hoje. Sue me, sue you blues, zoação-de-sorriso-amarelo com a onda de processos envolvendo John, Paul, George e Ringo, não é exatamente um blues – lembra a onda folk que rolou na Inglaterra lá pelo começo dos anos 1970. The light that has lighted the world tem lá seus laços com a fase 1971/1972 dos Rolling Stones (a face mais acústica, de Wild horses) e com a mesma época na carreira de Neil Young – destaque para o piano de Nicky Hopkins e para a slide guitar do próprio Harrison, que aliás brilha em todo o álbum.
Uma curiosidade em Living é Who can see it, que não faria feio na voz de Paul McCartney – abre como uma balada de piano e ganha cordas que têm lá seus cruzamentos com The long and winding road. A faixa-título, por sua vez, é um rock com cara country e certo ar feroz, apesar da parte contemplativa lá da metade. A letra cita nominalmente dois de seus ex-colegas de banda (“John e Paul aqui no mundo real/embora nós tenhamos começado muito pobres/ficamos ricos numa turnê/e fomos pegos pelo mundo real”) e aparentemente só deixa Ringo de fora porque ele estava na banda de apoio do disco, tocando bateria ao lado de Jim Keltner.
O clima deprê-religioso de Living é reforçado pela melancolia de Be here now, pela esperançosa The day the world gets round (na qual a voz de Harrison parece que vai se despedaçar) e pela confusa Try some, buy some – é a mesma base da versão feita por Ronnie Spector em 1970, com a voz dela tendo sido apagada e substituída pela de George. Um quase momento de respiro é The lord loves the one (That loves the lord), um louvor dos mais esquisitos (“o senhor ajuda aqueles que ajudam a si próprios/e a lei diz que o que quer que você faça/retornará a você”), com uma melodia country-soul-rock marcada por piano Rhodes, metais, violão e bateria marcial.
O CD extra com takes de arquivo varia entre surpresas e coisas não lá tão legais, mas vale muito ouvir Sunshine life for me (Sail away Raymond), com George Harrison acompanhado por Ringo Starr e pela The Band que acompanhava Bob Dylan. O take 18 de Give me love traz só George acompanhando-se ao violão, e revela o quanto essa música reverberou nas tentativas de fazer pop-rock acústico, aqui no Brasil (de Raul Seixas e Rita Lee a Nando Reis, passando por Lulu Santos e Dalto, todo mundo se inspirou lá).
Nota: 9
Gravadora: Dark Horse Records/BMG
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