Cultura Pop
Relembrando: Mick Ronson, “Play don’t worry”
Guitarrista de David Bowie na fase Spiders From Mars, Mick Ronson foi uma promessa injustamente não cumprida como artista solo. Inicialmente teve cobertura da Mainman (mesma empresa que cuidava de Bowie nessa fase), contrato com a RCA, interesse da mesma imprensa que cobria o dia a dia dos popstars do glam rock, certa migração de fãs do cantor de Starman.
Até porque Ronson estreou com treze shows no Reino Unido em março de 1974, quando Bowie estava fora dos palcos. E o guitarrista volta e meia era chamado de “substituto” de seu patrão. Ironicamente o próprio Bowie ficaria com ciúmes de sua “cria”, começando a armar sua volta aos palcos a partir daí. Esbarraria no fato de que a turnê solo do guitarrista havia comido uma boa parte da grana que seria investida em sua própria carreira, mas isso é outra história.
No começo, Ronson era um músico desprotegido a ponto de, mesmo sendo mais velho que Bowie e sua mulher Angie, ser cuidado pelo casal como se fosse um irmão mais novo. Com Bowie, chamou a atenção das plateias e foi um quase parceiro. Merecia ter ganhado crédito de co-autor em faixas de discos como The man who sold the world, de 1970, cuja gravação havia sido marcada pelo desapego do maior interessado, que era o próprio Bowie. Como compensação, fica o fato de que é impossível lembrar de músicas como Life on Mars? e Starman sem lembrar das guitarras de Ronson.
Surgiu a chance de tornar-se artista solo, quando Bowie havia resolvido ficar longe dos palcos. O repertório da estreia de Ronson, Slaughter on 10h avenue (1974), unia as duas faces do músico, um cara que tocava guitarra como se o instrumento viesse do espaço sideral, e também regia orquestras, além de tocar piano.
Era o disco da hard roqueira Only after dark, do blues glam I’m the one (de Annette Peacock, musicista pioneira dos sons eletrônicos que também gravava pela RCA naquele período). E da grandiloquência da faixa título (uma canção dos anos 1930 revisitada), do romantismo de Love me tender (aquela mesma, imortalizada por Elvis Presley). Mick, por sua vez, era o guitarrista experiente que tinha talento dramático a ponto de fazer um anúncio-curta metragem para divulgar Slaughter – a foto da capa, que trazia o guitarrista chorando, era um trecho do tal filme.
Muita coisa contribuiria para afastar a Mainman de Ronson e entre elas, estava o fato da relação entre Bowie e o empresário Tony Defries estar saindo do controle e ter chegado a um ponto bem complicado em 1974.Por acaso, foi em janeiro de 1975 que saiu Play don’t worry, o segundo disco do guitarrista.
Era mais um disco realizado sob as barbas de Pin-ups, disco de covers de Bowie (1973). O primeiro de Ronson havia sido gravado com a mesma banda do cantor na época, assim que o serviço no disco do patrão terminara. Já em Play, Mick reaproveitava uma backing track realizada para Pin ups, e nunca lançada: a da versão de White light/white heat, do Velvet Underground, mais viva e pesada que a original, e uma das melhores faixas do disco de um compositor e guitarrista que, ao se tornar um intérprete e fazedor de covers, quase sempre acertava.
Play don’t worry tinha a mesma aparência ora melancólica, ora feliz do disco anterior. Era o disco da balada glam Angel nº9, releitura do grupo country-rock Pure Prairie League (de cuja gravação original Mick havia participado fazendo arranjos), e do agito de Girl can’t help it, clássico do repertório de Little Richard, relido em clima protopunk. Outro rock countryficado do Pure Prairie League, Woman, encerrava o álbum. Por outro lado, Empty bed, versão de Io me ne andrei, do pop-roqueiro italiano Claudio Baglioni, era um baladão romântico, pronto para entrar em trilha de novela no Brasil (infelizmente não entrou).
Ronson aparecia como autor apenas em duas faixas, talvez escolhidas a dedo para mostrar que nem tudo ali eram flores. Play don’t worry, feita ao lado do amigo produtor e compositor Bob Sargeant, falava sobre os altos e baixos da vida, e era a provável admissão de que a vida de potencial rockstar havia trazido mais problemas do que soluções. Hazy days, faixa-solo, trazia aquelas discussões sobre a obsolescência programada do pop, típicas da própria música de Bowie (“o que você vai fazer agora, quando você achar que estou no passado?”, diz a letra).
Parecia recado para alguém. Talvez para o próprio Ronson, que não se sentia nem um pouco confortável ou feliz como artista solo. “Sabia que as pessoas perceberiam meu desconforto na plateia e eu não queria isso”, chegou a afirmar o músico, que também considerava a vida de popstar solo algo parecido como ter dúvidas e ter que responder suas próprias dúvidas, sem contar com a parceria de ninguém.
Mick respondeu suas próprias dúvidas quando resolveu, ainda com Play don’t worry em curso, juntar-se ao Mott The Hoople, banda do amigo Ian Hunter. O Mott estava com os dias contados e restou a Mick voltar à vida de músico contratado. Gravou com muita gente, mas ficou conhecido pelas colaborações com Ian, com quem chegou a gravar um disco em dupla – Yui orta, de 1990. Infelizmente tornou-se menos reconhecido do que deveria, e a decepção com as expectativas do pop tornou-se um vazio nunca devidamente preenchido.
Mick morreu em 29 de abril de 1993, já resgatado para as novas gerações. Pouco antes, havia produzido Your arsenal, de Morrissey, e tinha se juntado a David Bowie, a Ian Hunter e aos remanescentes do Queen no concerto de tributo a Freddie Mercury. A notícia de sua partida ressoa até hoje como os últimos ruídos de guitarra de Play don’t worry, a canção. São sons que desaparecem aos poucos, como numa transmissão de TV cheia de interferências que vai sumindo. Nossa sorte é que o recado estava dado: “Não pense muito neles/comece a sonhar novamente com o amanhã”.
Cultura Pop
No nosso podcast, Primal Scream do começo à fase de “Screamadelica”
Dizem por aí que ninguém pode inventar um novo começo, mas sempre dá para inventar um novo fim. No caso de Bobby Gillespie, lá pelo começo dos anos 1980 o que ele mais queria era inventar um novo fim para a vida dele – um fim que o levasse para mais distante possível do subúrbio inóspito da Escócia onde ele havia sido criado. Movimentos como o punk, o glam e, posteriormente, a acid house, foram mudando a vida do vocalista de Bobby, que em 1982 montou o Primal Scream, uma das bandas mais instigantes da história do rock.
E hoje no Pop Fantasma Documento o assunto é a história do Primal Scream, lá do comecinho, até o sucesso com o psicodélico, hedonista e dançante Screamadelica (1992). Uma história de música, de excessos, de festas, shows vazios e lotados, e de luta no meio indie britânico. Ouça em alto volume.
Século 21 no podcast: The Big Day e Caco/Concha.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Joan Armatrading, “How did this happen and what does it now mean”
- How did this happen and what does it now mean é o vigésimo-primeiro disco de estúdio da cantora e compositora britânica Joan Armatrading. A única coisa que ela não fez no disco foi a engenharia de gravação: ela compôs, tocou, cantou, produziu e programou tudo.
- Ao The Guardian, ela explicou o título do disco (“como isso foi acontecer e o que significa agora?”): “Acho que nos tornamos polarizados porque quando você está cara a cara com alguém, coisas como linguagem corporal e contato visual nos impedem de fazer certas coisas. Isso não acontece nas mídias sociais, então se espalha para o mundo real. Não vamos nos livrar de todas as guerras e desentendimentos, mas o título do álbum está perguntando como diabos podemos sair dessa situação em que estamos e como voltamos para um lugar melhor”.
Descobrir, sem estar esperando, que Joan Armatrading lançou um novo álbum, é uma surpresa enorme. Ver que o disco é um projeto quase inteiramente solo (ela compôs, produziu, tocou e programou tudo sozinha) não chega a ser uma surpresa para quem conhece um pouco da história dela e pelo menos alguns hits e discos clássicos.
No caso de How did this happen and what does it now mean, o estilo conhecido de pop-rock confessional dela, já a partir do título, vem com um subtexto de sobrevivência e superação. Ainda que algumas histórias contadas nas letras apontem para ressacas amorosas e falsidades do amor em geral, como no pop-rock Someone else e no r&b I gave you my keys (“eu te dei minhas chaves para tudo que eu tinha/você era minha divindade, você governou meu mundo/governou minha terra, governou meu céu/como você pôde me machucar tanto?”).
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Já o blues-rock-soul percussivo I’m not moving põe violência urbana no disco, com Joan recordando as cenas que viu durante um assalto, e levando a história para uma situação em que a minoria tem as maiores cartas na mão (“posso ser pequeno/mas sou poderoso/você pode ser muito mais velho/mas ainda assim eu governo você”). O pop com argamassa soul e musicalidade herdada do folk, especialidade dela, volta em faixas como 25 kisses, Here’s what I know e a faixa-título, que conta outra história de amor que acaba com problemas e dúvidas (“onde está aquela versão de nós mesmos/que nós amávamos, que era tão preciosa/em nosso mundo, em nossos corações?”).
Para quem tem saudades do lado baladão de AM de Joan, registre-se a presença de Irresistible e Say it tomorrow e do gospel Redemption love. No disco novo, ela fez questão de que todos os seus lados musicais convivessem sem problemas, cabendo até dois instrumentais, Now what e Back to forth, nos quais ela se mostra uma excelente guitarrista de blues e rock. Aos 74 anos e sabendo fazer de tudo num estúdio, Joan é o poder, mesmo que falte um certo empoderamento nas histórias amorosas das letras.
Nota: 7,5
Gravadora: BMG
Crítica
Ouvimos: Os Paralamas do Sucesso, “10 remixes”
- 10 remixes traz (como diz o próprio título) dez canções dos Paralamas do Sucesso remixadas. O trabalho foi orquestrado pelo DJ Marcelinho da Lua, que escolheu DJs de diferentes gerações. O trio e o empresário José Fortes também já tinham uma lista com alguns nomes.
- “Tudo começou quando eu estava num show do Paul McCartney em 2013, quando prestei atenção nas inúmeras releituras de músicas dos Beatles feitas por DJs que tocavam antes do Paul subir ao palco. Fiquei pensando como seria legal se fizessem o mesmo com o repertório dos Paralamas”, contou João Barone, baterista da banda, em seu Instagram.
Lançar um álbum de remixes dos Paralamas do Sucesso é uma ideia tão boa que não dá pra entender como ninguém pensou nisso antes. Discos de remixes de um mesmo artista, aliás, costumam sair bem irregulares, além de cometerem verdadeiras atrocidades. Felizmente, 10 remixes saiu legal, e quase tudo pode ser dançado na pista e ouvido em casa sem (muitos) atropelos.
Em Lanterna dos afogados, Mahmundi deu um ar dançante e viajante à música, e inseriu sua voz como parte das novidades da canção – soou tão bem que ela deveria pensar em fazer outras visitas à obra da banda. Ska, com DJ Marky, virou um cruzamento de ska, reggae e drum’n bass. O beco ganhou remix conceitualmente correto (e bom) do Tropkillaz, em clima funk-reggae, com os vocais de Herbert Vianna filtrados e à frente. Selvagem, nas mãos de Daniel Ganjaman, virou reggae-dub.
No 10 remixes, vale também citar o samba-funk-reggae que surge de O amor não sabe esperar (com Paralamas e Marisa Monte), capitaneado por Pretinho da Serrinha e Bossacucanova. Além do synthpop simultaneamente experimental e cheio de balanço de Mulú em Aonde quer que eu vá, e do redesenho drum’n bossa de Marcelinho da Lua em Mensagem de amor.
Por outro lado, Lourinha bombril rendeu menos do que poderia ter rendido nas mãos do Àttooxxá. Ela disse adeus, com Papatinho, virou um batidão funk pequenininho (com pelo menos um minuto a menos que o original) e sem muitos atrativos. E não sei até que ponto a balada stoniana Saber amar tinha que ganhar um remix techno de botar fogo na pista, que foi para as mãos de Ké Fernandes (Groove Delight).
Nota: 8
Gravadora: Universal
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