Crítica
Ouvimos: Luisão Pereira, “Fogo no mar”

- Fogo no mar é o primeiro disco solo de Luisão Pereira, baiano de Juazeiro, que esteve em bandas como Penélope e Dois Em Um. Luisão é também produtor – cuidou de Do meu coração nu, de Zé Manoel, disco indicado ao Grammy Latino.
- Em 2017, Luisão foi diagnosticado com câncer de mieloma múltiplo. “Tudo começou com uma simples dor nas costas”, disse à Carta Capital. O tratamento oncológico inspirou a composição e a produção do álbum, que tem uma lista grande de convidados (Mãeana, Zé Renato, Zé Manoel, Kassin, Lívia Nery). O poeta, letrista e escritor Mauro Sta Cecília, também paciente oncológico e amigo de Luisão (e letrista de músicas como Por você, do Barão Vermelho) contribui na letra de Forte. A faixa de abertura, Se todo santo, traz mais de 30 amigos de Luisão fazendo vozes.
- Luisão já havia produzido o disco de Zé Manoel durante o tratamento no hospital. Para fazer seu disco, durante uma internação (quando fez até transplante de medula), levou computador, fones, microfone e placa de áudio para lá. “Inclusive captei barulhos do hospital”, diz.
É algo parecido com o que Marcelo Yuka chamou de “o muro fino entre a ciência e deus” (verso criado sob o contexto do nascimento de seu irmão mais novo, na música Uma ajuda, do O Rappa). Fogo no mar, disco solo de Luisão Pereira, está na mesma sintonia: um álbum que, pelo contexto em que foi realizado, fala de vida e todos os mistérios associados a ela, dos contrastes e pequenos milagres do dia a dia, como a combustão em alto-mar do título.
Em alguns momentos, o álbum é bastante direto em relação ao que Luisão viveu durante a elaboração das músicas e as gravações – como na oração Forte (“seja forte, mais que ontem/ seja forte mais uma vez”) e na abertura repleta de vozes e climas, com Se todo santo. O principal é que Fogo no mar lança excelentes vibrações a respeito de assuntos que estão fora do nosso controle, como no convite à retirada Se saia e no enfrentamento diário de Vai que de repente. Ruídos captados em aparelhos usados durante a recuperação e o tratamento de Luisão dão o tom, num esquema quase chiptune, em alguns momentos.
Fora do universo estabelecido pelas letras, musicalmente Fogo no mar pertence a um corredor iniciado por Dorival Caymmi e Tom Jobim, e continuado por seguidores como Marcos Valle e João Donato, como no samba Deixa, na marítima e percussiva Licença (um agradecimento às forças que mantiveram Luisão firme desde 2017) e na quase infantil Mar grande, aberta pelos vocais de Mãeana. O lado mutante, roqueiro e diversificado do disco, surge no quase samba-reggae Saturno e na funkeada Florália (com Kassin). Se na sua lista houver um espaço para o quesito “disco mais bonito do ano”, Fogo no mar é um forte candidato.
Gravadora: Festim Music
Nota: 9
Foto: Reprodução da capa do disco
Crítica
Ouvimos: Nyron Higor, “Nyron Higor”

Nyron Higor é um cantor e compositor de Maceió que já havia estreado com Fio de lâmina (2022), álbum de jazz-MPB de quarto, feito em casa, e sem nenhum planejamento além do “oba, tenho um disco!”. Nyron Higor, segundo álbum, é praticamente sua estreia, já que tem aparecido em sites de resenhas, ganhou um esquema de turnês, como se não bastasse, tem lançamento internacional – sai pelo selo inglês Far Out Recordings.
Ainda que a sonoridade pareça música brasileira bedroom em alguns momentos, não se trata de um registro caseiro – Bruno Berle e Batata Boy produziram o trabalho e ajudaram a fazer de Nyron Higor um disco que, em sua maior parte, poderia ter saído do estúdio da Odeon nos anos 1970. Uma MPB ligada no jazz, em climas baileiros e em percussões contemplativas. Tudo isso aí junto forma o cerne de faixas como Ciranda, Louro cantador (com violão, baixo e órgão na frente, ruídos de mata que remetem a Naná Vasconcellos e uma vibe Ed Lincoln) e Estou pensando em você.
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Esta última, por acaso, é trilhada numa espécie de futurismo passadista, ou passadismo futurista – soa como se Johnny Alf, João Donato e Marcos Valle, lá por 1973, já tivessem acesso a uma tecnologia que ninguém tinha ainda. Essa linha do tempo esticada na frente do ouvinte é a cara de faixas como Demo love, que insinua algo moderno e setentista, simultaneamente). Ou São só palavras – mais MPB estilo Odeon, mas com micropontos de funk e trap, vocal com autotune, e participação de Berle e da cantora Alici. E Maravilhamento, repleta de magia nos teclados, e com uma musicalidade que poderia ter sido tramada pelo Som Imaginário.
Curiosamente, o/a ouvinte de Nyron Higor é devolvido para a contemporaneidade conforme o álbum vai seguindo, graças ao boogie sombrio de Som 24, a vinheta de baixo e teclados Pizzicato e a balada de violão Eu te amo – que lembra o conterrâneo músico mais ilustre de Nyron (Djavan) e poderia até entrar numa trilha de novela. No fim, a beleza de Me vestir de você, uma balada pop-MPB oitentista, com piano Rhodes e tom contemplativo e calmo. Ouça tudo várias vezes, porque há muito para descobrir neste disco.
Nota: 10
Gravadora: Far Out Recordings.
Lançamento: 31 de janeiro de 2025
Crítica
Ouvimos: Olly Alexander, “Polari”

O polari, uma linguagem usada por gays ingleses desde o século 19, surgiu como uma forma de proteção, permitindo que conversas permanecessem incompreensíveis para não-gays – especialmente policiais, em época de repressão extrema na Inglaterra. Volta e meia explorado na cultura pop, o polari ajudou a batizar, por exemplo, Bona drag (1990), uma coletânea de singles de Morrissey, além do single Piccadilly palare. O nome da gravadora britânica Rough Trade também remete ao polari—”trabalho duro” era uma gíria gay para sexo com conotação violenta, seja física ou psicológica.
Polari é também o nome da estreia solo do britânico Olly Alexander, ex-integrante da banda de synth pop Years & Years. Um disco que já estava sendo esperado há tempos, já que Olly destacou-se como ator na série It’s a sin, fez uma aparição no Brit Awards de 2021, e o Years & Years vinha se desintegrando aos poucos, a ponto do irregular Night call (2022), último álbum da banda, já ser um disco solo de Alexander usando o nome da banda.
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E aí sai Polari, um disco que basicamente vai da house music mais comercial ao orgulho indie em poucos minutos – passando por synth pop, pós-disco, sons que lembram o Human League trevoso do começo, e coisas dançantes que poderiam estar no “só as melhores da Jovem Pan”. Uma variedade que descamba para a mesma irregularidade de Night call em alguns momentos – especialmente quando você espera que venha algo diferente musicalmente e surge uma dance music que poderia ter sido lançada em 1999, como em When we kiss ou Archangel. Ou até Dizzy, a “primeira música solo” de Olly, que soa tão próxima ao universo dos Pet Shop Boys que poderia facilmente ser uma demo rejeitada da dupla.
Polari, no entanto, não segue essa linha o tempo todo, reservando surpresas ao longo do caminho. A faixa-título traz rajadas vibrantes de synth, enquanto Cupid’s bow aposta em uma house music robusta. Heal you se destaca como um hino de identificação e apoio mútuo, com versos como “todo mundo deve ser ouvido / não, não negue o que você sente / apenas deixe-se curar”. Já I know e Make me a man mergulham em um clima oitentista, sendo que esta última combina a energia de Michael Jackson com a sonoridade do Erasure. Não por acaso, Vince Clarke, do lendário duo synthpop, participa da faixa coescrevendo, tocando violão e assinando a programação de bateria.
Com uma voz que remete fortemente a Michael Jackson, Olly também explora um lado mais sério do pop adulto. Isso transparece em faixas ótimas como Shadow of love, Miss you so much – que evoca o som de bandas como Kajagoogoo – e Whisper in the waves, uma faixa etérea e ambient, com synths que voam nos ouvidos, e clima lembrando Sade Adu. O final traz o indie pop com argamassa oitentista de Language. Somando tudo, Polari ganha (muitos) pontos quando passa longe do trivial, e merece destaque pelo resgate de um tema socialmente (e humanitariamente) importante.
Nota: 8
Gravadora: Polydor
Lançamento: 7 de fevereiro de 2025.
Crítica
Ouvimos: The Main Squeeze, “Panorama”

Não adianta: seja lá em que época a gente viver, sempre vai surgir uma banda com “squeeze” no nome, seja com intenções sacanas – já que a palavra tem conotações masturbatórias – ou não. O quinteto de Los Angeles The Main Squeeze parece ter adotado a expressão idiomática no sentido de “par ideal”, “abraço apertado” ou algo assim.
Faz sentido, porque a música do Main Squeeze, especialmente no novo álbum, Panorama, envolve o ouvinte como um abraço, misturando rock, psicodelia, soul, jazz, funk, hip-hop e toques latinos. Tudo isso com um clima “antigo” de gravação e composição, como se fosse uma joia esquecida do passado esperando para ser redescoberta. Muita gente, ao ouvir o som da banda, vai lembrar da pegada meio lounge, meio trilheira do Khruangbin – o que faz ainda mais sentido, já que são duas bandas olhando para o futuro sem esquecer do passado.
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Panorama tem r&b setentista feito por quem viveu intensamente os anos 1990 e 2000 (It’s no wonder, com vocais que lembram solos de orquestra), soul com um toque sutil de reggae (Endorphins, onde as guitarras roqueiras e o uso criativo do eco dão peso à faixa) e um equilíbrio interessante entre rock setentista e o soul da mesma época, no estilo de Diana Ross e Marvin Gaye, como na excelente Wild cheetah e na pinkfloydiana Wildest dreams.
No meio do álbum, aparecem ainda Don’t wanna wait, um blues lento guiado pelos teclados e com ecos de Soundgarden nos solos de guitarra, e Get in where you fit in, um funk-reggae-soul à la Rufus & Chaka Khan que, de repente, ganha um refrão heroico de hard rock. Acid blues é pura psicodelia blues-rock, daquelas músicas que parecem seguir tranquilas, mas podem explodir a qualquer momento. Já Laurelwood, um soul viajante, faz lembrar o hit instrumental Voo sobre o horizonte, do Azymuth, só que com um leve toque de synth pop.
O disco fecha com uma carta na manga: Take me out, hit do Franz Ferdinand, reaparece transformado em um soul envolvente e atmosférico, onde o riff original de guitarra é recriado e os vocais, e os vocais ganham uma vibe “malemolente” que inexistia no original, e a música inteira pulsa com um balanço redondo e impossível de ignorar. Um desfecho que resume bem Panorama: um passeio por diferentes estilos, sempre com identidade própria.
Nota: 9
Gravadora: Independente
Lançamento: 9 de janeiro de 2025
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