Cinema
Dom Salvador & Abolição em filme

Dom Salvador mudou o rumo da música brasileira. Mas sua história permanecia obscura. O pianista, que nasceu em Rio Claro (SP) em 1938 (seu nome completo é Salvador da Silva Filho), mora desde a década de 1970 em Nova York, onde toca piano no restaurante River Cafe e alterna seu trabalho com shows e gravações ocasionais. Fez parte da movimentação musical do Beco das Garrafas e da união entre samba e jazz. Foi o músico escolhido para dar cara soul à música de Roberto Carlos, nos anos 1970, por conseguir fazer o que nenhum dos pianistas conseguia fazer- unir beleza, ritmo e sonoridades análogas às dos músicos negros americanos. Seu instrumento pode ser ouvido com destaque no clássico gospel de Roberto, Jesus Cristo.
Salvador marcou época em meados dos anos 1960 com o Rio 65 Trio (com Sergio Barrozo no contrabaixo e Edison Machado, na bateria) e com sua entrada na mesma gravadora de Roberto, a CBS (hoje Sony). Aparecia cerrando os punhos na capa do disco Dom Salvador, de 1969. E cercado de músicos negros em Som, sangue e raça (1971), disco da banda Dom Salvador & Abolição, no qual trabalhava com nomes como Rubão Sabino (baixo), Zé Carlos (guitarra) e Oberdan Magalhães (sax, flauta) e a mulher de Salvador, Mariá (voz).
Não era das melhores épocas para se falar de empoderamento negro e o mercado musical no Brasil passava por várias mudanças, o que apressou a ida de Salvador para Nova York. O músico deixou para trás uma carreira no Brasil, criou seus filhos lá e embarcou em outras aventuras. Gravou um disco solo nunca lançado em 1977, passou a se dividir em vários trabalhos e a cuidar da família. Mais recentemente vinha se dedicando a cuidar da mulher, Mariá, que teve demência no começo da década passada.
A história de Dom Salvador interessou a uma dupla de documentaristas brasileiros que mora em Nova York, Artur Ratton e Lilka Hara, que inicialmente fez um curta-metragem com a história dele, Endless soul. O curta se transformou no filme Dom Salvador & Abolition, que já percorre o circuito de festivais e ganhou o prêmio de melhor filme no festival de documentários In-Edit. Os caminhos escolhidos por Salvador são contados por ele, e por vários outros nomes, com Ed Motta, Allan Thayer (jornalista da Wax Poetics), o DJ Greg Caz, Marcos Valle e Elza Soares. Batemos um papo com os diretores. Leia e corra para ver o filme.
POP FANTASMA: Como vocês conheceram Dom Salvador? Antes houve um curta sobre ele, não?
ARTUR RATTON: A primeira vez que vimos o Salvador foi na loja de discos Tropicalia In Furs, que havia no East Village. Ouvimos lá o disco do Abolição e o disco do Dom Um Romão com ele. E depois o primeiro disco solo dele de 1969. Na época, o jornalista Allan Thayer, que faz uma participação no filme, escreveu um perfil do Dom Salvador na revista Wax Poetics. A gente gostou bastante, tinha várias capas de discos que ele tinha gravado, fotos bem legais. O artigo serviu de base para a gente criar um roteiro para o curta.
Conseguimos o telefone dele com um amigo e fomos conversando até quebrar o gelo. Fomos na casa dele e fizemos a primeira entrevista para o curta, que entrou no In-Edit e no (festival) Mimo. E antes mesmo de terminar já era claro que a gente estava indo além do planejado e começando um projeto de longa. Encontramos no Dom Salvador potencial para isso. Quando dirigimos, vemos se os personagens dos filmes querem colaborar com o filme. Essa parceria vai desde encontrar material de arquivo até começar a criar situações que influenciam na vida do Salvador. Criamos situações legais para gravar em estúdio, como quando colocamos o Salvador andando pela cidade, ou na visita à loja de discos. Aí vinham histórias que não aconteciam quando o entrevistávamos de maneira mais formal. A gente cria um teatro real entre a gente e o personagem.
Como foi se aproximar dele e propor o filme? Como perceberam que o curta não daria conta de mostrar todo o personagem?
ARTUR: Apesar da primeira entrevista ter sido um pouco formal, era óbvio para a gente que ele era um navio mercante cheio de histórias. E existia também a vontade de mostrar o Salvador tocando piano. Eu queria mostrar os ambientes sonoros em que ele transita, os gêneros, estilos, instrumentos. Isso leva tempo, no caso dele. Ele intercala a carreira dele com o trabalho como pianista no café, e ainda tem a vida em família. E ele mora afastado de Nova York, tem que pegar um trem de Long Island para Manhattan diariamente, ele tem o tempo próprio dele. Ele é prolífico, produz bastante, mesmo em tempos mais caóticos da vida dele, ele estava ocupado. Essa época até virava uma calmaria para a gente, porque editávamos, experimentávamos.
Interessante falar que quando o encontramos ele não estava trabalhando no café. O local estava fechado por causa do furacão Sandy, que acontece em 2012. O dono do restaurante deixou o Salvador dois anos na folha de pagamento sem que ele trabalhasse. O que mostra o quanto a música dele é importante para o local. O local, um dos mais clássicos de Nova York, se monta em torno do clima da música dele. Isso virou uma camada da nossa história
Em quanto tempo o filme ficou pronto e como foi a captação? Deve ter dado trabalho (e consumido grana) ter filmagens em Nova York, Rio, São Paulo…
LILKA HARA: Esse foi um processo que começou com o curta em 2013 e foi nossa primeira aventura produzindo conteído de longa duração. Continua sendo ainda uma descoberta, todo dia. Tem muito material que ficou de fora, no processo de edição, e foi difícil porque a gente fez o filme independente mesmo. Foi um custo emocional e financeiro. Mas tem uma coisa que aprendemos no processo e é talvez a razão pela qual fizemos desse jeito, sem nenhum patrocínio ou financiamento externo. O filme, assim como o Salvador, tem compromisso com o autoral e com nossas próprias necessidades criativas. Isso de certa maneira é libertador, porque a gente pode contar a história do jeito que a vemos acontecer.
ARTUR: Usamos chapéus diferentes, eu sou o diretor de fotografia, a Lilka é montadora. A gente tem uma escola que vem do “do it yourself”, do indie. Sempre trabalhei com música independente. E no período final encontramos colaboradores bem legais. Sou de Curitiba, há muito tempo que eu moro aqui (em Nova York) e fiquei de cara como tem talentos no meio do cinema. Achamos o Edson Borth, que fez uma mixagem bem legal, o Rodrigo Stradiotto, que é um compositor que ajudou a criar a camada de soundtrack, os sons que entram no filme. Tudo foi criado por eles com sintetizadores análogos, sampleando às vezes o próprio Salvador. A correção de cor foi feita por uma empresa chamada Believe. Também tivemos produtor no Rio, uma pessoa de câmera no Rio.
Como foi o contato com a família dele? Como é para eles terem um parente que mora nos Estados Unidos?
LILKA: Essa é uma das questões centrais do filme, que é a condição do emigrante, do brasileiro que vem para os Estados Unidos. No caso do Salvador, é uma história um pouco mais pontuda, porque ele já tinha sucesso profissional no Brasil, já era reconhecido no meio dele. Por que ele iria abandonar tudo para embarcar numa aventura num país novo e começar do zero? E tentar a sorte numa cena competitiva como é a de Nova York? A família dele sempre o protegeu muito, ele foi escolhido desde criança para entrar na escola de música. A família inteira sempre fez esforço conjunto para colocar o Salvador para a frente, pensar além, querer conquistar mais. Isso é a causa do imigrante, da pessoa que se retira para tentar ver o que tem além do outro lado da montanha para explorar, para ver o que tem do outro lado do planeta.
E o Dom Salvador se refere, em diversos momentos, ao racismo que ele sofreu no Brasil…
ARTUR: Uma das coisas que ajudaram no projeto é que tivemos a oportunidade de passar por um questionamento da nossa própria ideia de racismo no Brasil. Fomos amadurecendo nesse tempo. A demora no projeto e a relação que a gente criou com Dom Salvador fizeram a gente aprender algumas coisas, repensar algumas coisas. Nosso desafio foi fazer um filme internacional, para uma plateia global e precisávamos marcar alguns pontos na história política dele. Tivemos a ajuda de um escritor e acadêmico afro-americano, que nos ajudou a dar uma perspectiva fora do nosso casulo. Pensamos no significado da palavra “abolição” e a falta que fez para o Brasil não ter experimentado uma revolução como houve nos Estados Unidos, e que está acontecendo agora nas redes sociais. Enquanto fomos fazendo isso, o Dom Salvador foi se sentindo à vontade para dividir essas experiências com a gente. Não é natural dele ser aberto e político, já até o definiram como um cara que milita sem militar. Muito disso vai parar no mundo musical dele, na escolha de notas, acordes. Como compositor ele é pura emoção, um tanto romântico e às vezes psicodélico. A composição dele é profunda, é da pesada.
Acreditam que ele se sente um vencedor por ter tido uma carreira nos EUA e por ser uma lenda da música brasileira?
ARTUR: Bom, o filme questiona o mito do vencedor. Ele teve períodos de vacas magras financeiramente, nos EUA. Mas sempre houve riqueza de experiências. E a influência que ele tem em tantos DJs, músicos e produtores. Ele parece um homem satisfeito, que enxerga sua trajetória do alto de um cume. Apesar da humildade que é tão característica dele.
LILKA: A imagem do vencedor é uma extensão do que a gente idealiza nos outros. O Dick Oatts (saxofonista que tocou com Salvador) fala disso no filme, que queria vê-lo com aquele sucesso que geralmente é associado com fama e dinheiro. Ele deseja isso para o Salvador, diz que o Salvador é o heroi dele. O Salvador sabe que é um talento especial desde jovem, que esculpiu a carreira dele do jeito que ele quis. Mas ele vai estar sempre buscando mais. Essa inquietude é que faz com que ele vença todos os dias no fazer. Abordamos a questão do vencedor das ruas, o trabalhador que encontra grandeza no fazer.
Uma das cenas mais emocionantes do filme, na minha opinião, é quando o Zé Carlos, da banda Abolição, toca O rio, uma das mais bonitas músicas do disco Som, sangue e raça, no violão. Como foi para vocês flagrarem esse momento meio “por trás do disco”?
ARTUR: Encontrar os integrantes da Abolição foi fundamental. A gente estava conhecendo as pessoas por trás da foto da capa do disco, que era como conhecemos todo mundo por vários anos. Conhecemos primeiro o Rubão Sabino (baixista), depois o Zé Carlos (guitarra), que são duas personalidades cujas vidas poderiam dar filmes. O Rubão saiu da banda para tocar com Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Tim Maia. Concluímos que o disco da Abolição é uma bíblia da música brasileira, uma bíblia do que é possível criar de música no Brasil fazendo a combustão da música nativa com o sons da diáspora africana. É um manual, que tem folclore também. E as emoções foram criadas no laboratório do Salvador, quando ele se juntou com aquele grupo de jovens vindos da periferia. Pensamos em incluir essa bagagem na hora, com o Rubão tocando baixo no Centro do Rio, o Zé Carlos no apê dele. O Serginho não rolou, levou o trombone e não quis tocar.
Como foi encontrar o material de arquivo? Ele tem muito material, certo? Isso está organizado?
LILKA: Não está, a gente vem lidando com o material dele desde o começo do curta. Escanneamos mais de 40 fotos e fizemos entrevistas. A gente estava embasbacado com o material. Ele tem um porão que aparece no filme, com caixas e mais caixas empilhadas, e cada dia que ele vai mexendo lá aparece uma coisa mais extraordinária do que a outra. É tudo bagunçado, pedindo para ser lembrado. Mas não há tempo, a vida vai atropelando. O filme fala sobre isso, sobre tentar organizar a memória, tentar contar uma vida em 90 minutos e o esquecimento, através desses artefatos que estão por trás da construção da história.
Falem um pouco do disco dele de 1977 que nunca foi acabado ou lançado. Vocês chegaram a ouvir essa fita? Incentivaram Dom Salvador a fazer algo com ela?
ARTUR: Não ter incluído mais dessa fita no filme foi uma decisão difícil, mas se tivéssemos resolvido colocar, isso poderia nos por no limbo dos filmes não acabados. É uma história cheia de nuances e a fita é um desses tesouros perdidos em águas muito profundas. E se você for buscar, pode acabar numa escuridão. É um tesouro gravado em 1977, o ano da música disco, do punk, muita energia naquele ano. Ele foi procurado por um produtor de primeira viagem, que fez um disco disco, com orçamento alto, mais de 70 mil dólares. O cara até comprou um Fender Rhodes. A ideia era criar um álbum instrumental de disco music, mas também com funk, música nordestina, com cordas, coral feminino. Talvez fosse uma continuação solo do disco da Abolição. Só que ele e o produtor se desentenderam, o cara queria botar a namorada dele para cantar. Foi cada um pro seu lado, o cara foi com as masters, foi buscar de volta o Fender Rhodes na casa de Dom Salvador. E o Salvador ficou com a fita K7. A gente teria que contratar um detetive e um advogado para achar esse cara. Tem gente querendo lançar a fita do jeito que está. Ele pensa em recriar as faixas do disco, mantendo as composições como estão. Até avisamos a ele que seria a segunda parte do filme. Ele tem paranoia de que a fita possa causar problemas.
Mais sobre o filme aqui
Cinema
Urgente!: Cinema pop – “Onda nova” de volta, Milton na telona

Por muito tempo, Onda nova (1983), filme dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia – e censurado pelo governo militar –, foi jogado no balaio das pornochanchadas e produções de sacanagem.
Fácil entender o motivo: recheado de cenas de sexo e nudez, o longa funciona como uma espécie de Malhação Múltipla Escolha subversivo, acompanhando o dia a dia de uma turma jovem e nada comportada – o Gayvotas Futebol Clube, time de futebol formado só por garotas, e que promovia eventos bem avançadinhos, como o jogo entre mulheres e homens vestidos de mulher. Por acaso, Onda nova foi financiado por uma produtora da Boca do Lixo (meca da pornochanchada paulistana) e acabou atropelado pela nova onda (sem trocadilho) de filmes extremamente explícitos.
O elenco é um espetáculo à parte. Além de Carla Camuratti, Tânia Alves, Vera Zimmermann e Regina Casé, aparecem figuras como Osmar Santos, Casagrande e até Caetano Veloso – que protagoniza uma cena soft porn tão bizarra quanto hilária. Durante anos, o filme sobreviveu em sessões televisivas da madrugada, mas agora ressurge restaurado e remasterizado em 4K, estreando pela primeira vez no circuito comercial brasileiro nesta quinta-feira (27).
Meu conselho? Esqueça tudo o que você já ouviu sobre Onda nova (ou qualquer lembrança de sessões anteriores). Entre de cabeça nessa comédia pop carregada de referências roqueiras da época, um cruzamento entre provocação punk e ressaca hippie. O filme abre com Carla Camuratti e Vera Zimmermann empunhando sprays de tinta para pixar os créditos, mostra Tânia Alves cantando na noite com visual sadomasoquista, segue com momentos dignos de um musical glam – cortesia da cantora Cida Moreyra, que brilha em várias cenas – e trata com surpreendente modernidade temas como maconha, cultura queer, relacionamentos sáficos, mulheres no poder, amores fluidos e, claro, futebol feminino.
Se fosse um disco, Onda nova seria daqueles para ouvir no volume máximo, prestando atenção em cada detalhe e referência. A trilha sonora passeia entre o boogie oitentista e o synthpop, com faixas de Michael Jackson e Rita Lee brotando em alguns momentos. E o que já era provocação nos anos 1980 agora ressurge como registro de uma juventude que chutava o balde sem medo. Vá assistir correndo.
*****
Já Milton Bituca Nascimento, de Flavia Moraes, que estreou na última semana, segue outro caminho: o da reverência, mesmo que seja um filme documental. Durante dois anos, Flavia seguiu Milton de perto e produziu um retrato que, mais do que um relato biográfico, é uma celebração. E uma hagiografia, aquela coisa das produções que parecem falar de santos encarnados.
A narração de Fernanda Montenegro dá um tom solene – e, enfim, logo no começo, fica a impressão de um enorme comercial narrado por ela, como os daquele famoso banco que não patrocina o Pop Fantasma. Aos poucos, vemos cenas da última turnê, reações de fãs, amigos contando histórias. Marcio Borges lê matérias do New York Times sobre Milton, para ele. Wagner Tiso chora. Quincy Jones sorri ao falar dele. Mano Brown solta uma pérola: Milton o ensinou a escutar. E Chico Buarque assiste ao famigerado momento do programa Chico & Caetano em que se emociona ao vê-lo cantar O que será – um vídeo que virou meme recentemente.
Isso tudo é bastante emocionante, assim como as cenas em que a letra da canção Morro velho é recitada por Djavan, Criolo e Mano Brown – reforçando a carga revolucionária da música, que usava a imagem das antigas fazendas mineiras para falar de racismo e capitalismo. Mas, no fim, o que fica de Milton Bituca Nascimento é a certeza de que Milton precisava ser menos mitificado e mais contado em detalhes. Vale ver, e a música dele é mito por si só, mas a sensação é a de que faltou algo.
Por acaso, recentemente, Luiz Melodia – No coração do Brasil, de Alessandra Dorgan, investiu fundo em imagens raras do cantor, em que a história é contada através da música, sem nenhum detalhe do tipo “quem produziu o disco tal”. Mas o homem Luiz Melodia está ali, exposto em entrevistas, músicas, escolhas pessoais e atitudes no palco e fora dele. Quem não viu, veja correndo – caso ainda esteja em cartaz.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
Cinema
Urgente!: Filme “Máquina do tempo” leva a música de Bowie e Dylan para a Segunda Guerra

Descobertas de antigos rolos de filme, assim como cartas nunca enviadas e jamais lidas, costumam render bons filmes e livros — ou, pelo menos, são um ótimo ponto de partida. É essa premissa que guia Máquina do tempo (Lola, no título original), estreia do irlandês Andrew Legge na direção. A ficção científica, ambientada em 1941, acompanha as irmãs órfãs Martha (Stefanie Martini) e Thomasina (Emma Appleton), e chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (13), dois anos após sua realização.
As duas criam uma máquina do tempo — a Lola do título original, batizada em homenagem à mãe — capaz de interceptar imagens do futuro. O material que elas conseguem captar é todo registrado em 16mm por uma câmera Bolex, dando origem aos tais rolos de filme.
E, bom, rolo mesmo (no sentido mais problemático da palavra) começa quando o exército britânico, em plena Segunda Guerra Mundial, descobre a invenção e passa a usá-la contra as tropas alemãs. A princípio, a estratégia funciona, mas logo começa a sair do controle. As manipulações temporais geram consequências inesperadas, enquanto as personalidades das irmãs vão se revelando e causando conflitos.
Com apenas 80 minutos de duração e filmado em 16 mm (com lentes originais dos anos 1930!), Máquina do tempo pode soar confuso em algumas passagens. Não apenas pelas idas e vindas temporais, mas também pelo visual em preto e branco, valorizando sombras e vozes que quase se tornam personagens da história. Em alguns momentos, é um filme que exige atenção.
O longa também tem apelo para quem gosta de cruzar cultura pop com história. Martha e Thomasina ficam fascinadas ao ver David Bowie cantando Space oddity (o clipe brota na máquina delas), tornam-se fãs de Bob Dylan, adiantam a subcultura mod em alguns anos (visualmente, inclusive) e coadjuvam um arranjo de big band para o futuro hit You really got me, dos Kinks, que elas também conseguem “ouvir” na máquina. Um detalhe curioso: a própria Emma Appleton operou a câmera em cenas em que sua personagem Thomasina se filma (“para deixar as linhas dos olhos perfeitas”, segundo revelou o diretor ao site Hotpress).
Ainda que a cultura pop esteja presente, Máquina do tempo é, acima de tudo, um exercício de futurologia convincente, explorando uma futura escalada do fascismo na Inglaterra — que, no filme, chega até mesmo à música, com a criação de um popstar fascista.
A ideia faz sentido e nem é muito distante do que aconteceu de verdade: punks e pré-punks usavam suásticas para chocar os outros, Adolf Hitler quase figurou na capa de Sgt. Pepper’s, dos Beatles, Mick Jagger não se importou de ser fotografado pela “cineasta de Hitler” Leni Riefenstahl, artistas como Lou Reed e Iggy Pop registraram observações racistas em suas letras, e o próprio Bowie teve um flerte pra lá de mal explicado com a estética nazista. Mas o que rola em Máquina do tempo é bem na linha do “se vocês soubessem o que vai acontecer, ficariam enojados”. Pode se preparar.
Cinema
Ouvimos: Lady Gaga, “Harlequin”

- Harlequin é um disco de “pop vintage”, voltado para peças musicais antigas ligadas ao jazz, lançado por Lady Gaga. É um disco que serve como complemento ao filme Coringa: Loucura a dois, no qual ela interpreta a personagem Harley Quinn.
- Para a cantora, fazer o disco foi um sinal de que ela não havia terminado seu relacionamento com a personagem. “Quando terminamos o filme, eu não tinha terminado com ela. Porque eu não terminei com ela, eu fiz Harlequin”, disse. Por acaso, é o primeiro disco ligado ao jazz feito por ela sem a presença do cantor Tony Bennett (1926-2023), mas ela afirmou que o sentiu próximo durante toda a gravação.
Lady Gaga é o nome recente da música pop que conseguiu mais pontos na prova para “artista completo” (aquela coisa do dança, canta, compõe, sapateia, atua etc). E ainda fez isso mostrando para todo mundo que realmente sabe cantar, já que sua concepção de jazz, voltada para a magia das big bands, rendeu discos com Tony Bennett, vários shows, uma temporada em Las Vegas. Nos últimos tempos, ainda que Chromatica, seu último disco pop (2020) tenha rendido hits, quem não é 100% seguidor de Gaga tem tido até mais encontros com esse lado “adulto” da cantora.
A Gaga de Harlequin é a Stefani Joanne Germanotta (nome verdadeiro dela, você deve saber) que estudou piano e atuação na adolescência. E a cantora preparada para agradar ouvintes de jazz interessados em grandes canções, e que dispensam misturas com outros estilos. Uma turminha bem específica e, vá lá, potencialmente mais velha que a turma que é fã de hits como Poker face, ou das saladas rítmicas e sonoras que o jazz tem se tornado nos últimos anos.
O disco funciona como um complemento a ao filme Coringa: Loucura a dois da mesma forma que I’m breathless, álbum de Madonna de 1990, complementava o filme Dick Tracy. Mas é incrível que com sua aventura jazzística, Gaga soe com mais cara de “tá vendo? Mais um território conquistado!” do que acontecia no caso de Madonna.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
O repertório de Harlequin, mesmo extremamente bem cantado, soa mais como um souvenir do filme do que como um álbum original de Gaga, já que boa parte do repertório é de covers, e não necessariamente de músicas pouco conhecidas: Smile, Happy, World on a string, (They long to be) Close to you e If my friends could see me now já foram mais do que regravadas ao longo de vários anos e estão lá.
De inéditas, tem Folie à deux e Happy mistake, que inacreditavelmente soam como covers diante do restante. Vale dizer que Gaga e seu arranjador Michael Polansky deram uma de Carlos Imperial e ganharam créditos de co-autores pelo retrabalho em quatro das treze faixas – até mesmo no tradicional When the saints go marching in.
Michael Cragg, no periódico The Guardian, foi bem mais maldoso com o álbum do que ele merece, dizendo que “há um cheiro forte de banda de big band do The X Factor que é difícil mudar”. Mas é por aí. Tá longe de ser um disco ruim, mas ao mesmo tempo é mais uma brincadeirinha feita por uma cantora profissional do que um caminho a ser seguido.
Nota: 7
Gravadora: Interscope.
-
Cultura Pop4 anos ago
Lendas urbanas históricas 8: Setealém
-
Cultura Pop4 anos ago
Lendas urbanas históricas 2: Teletubbies
-
Notícias7 anos ago
Saiba como foi a Feira da Foda, em Portugal
-
Cinema7 anos ago
Will Reeve: o filho de Christopher Reeve é o super-herói de muita gente
-
Videos7 anos ago
Um médico tá ensinando como rejuvenescer dez anos
-
Cultura Pop8 anos ago
Barra pesada: treze fatos sobre Sid Vicious
-
Cultura Pop6 anos ago
Aquela vez em que Wagner Montes sofreu um acidente de triciclo e ganhou homenagem
-
Cultura Pop7 anos ago
Fórum da Ele Ela: afinal aquilo era verdade ou mentira?