Cinema
Vozes do Medo: cinema jovem e perturbador dos anos 1970

Organizado pelo cineasta Roberto Santos entre os anos de 1969 e 1973 – com participações de vários amigos dirigindo pequenos curtas – o filme Vozes do medo foi anunciado em 18 de julho de 1970 pelo Jornal do Brasil como um integrante do “cinema da Boca do Lixo”. Enfim, o grupo de cineastas paulistanos que tentava revolucionar a tela grande barateando custos e criando produções com temas mais modernos.
Mas havia mais ainda: o eficiente e criativo Roberto (1928-1987) era citado na reportagem como “um dos fundadores do Cinema Novo” que fazia parte do movimento. Ele tocava o filme, aliás, ao lado de vários alunos seus do Curso de Comunicação da Universidade de São Paulo.
O que passa batido nessa apresentação é o quanto Vozes do medo é um filme jovem, pop. Traz uma espécie de cinema experimental, pré-punk, pós-tropicalista, assustador (em alguns momentos), definido por muita gente como “um filme-revista”. Nomes como Antonio Pitanga, Sergio Mamberti, Ariclê Perez e Joanna Fomm aparecem aqui e ali, no elenco – alguns em total início de carreira.
>>> Veja também no POP FANTASMA: O filme “de rock” de Renato Aragão
Roberto recrutou vários cineastas amigos e alunos para produzir cada um, um pequeno curta para o filme, que duraria mais de duas horas. O tema era “medo”, e a maioria dos curtas lidava com plots, atores e cenários jovens. Mas todos os cineastas podiam abordar o tema como quisessem. “A juventude paulistana de 1970, seus medos, angústias, incertezas, anseios sociais e filosóficos, focalizada em episódios organizados de maneira de uma revista: ensaio, crítica, crônica, inquérito, reportagem, história em quadrinhos, depoimento”, diz a sinopse.
Entre os nomes chamados, estavam Aluisio Raulino, Plácido de Campos Júnior, Roman Stulbach, Gianfranesco Guarnieri, Ruy Perroti, Cyro del Nero e Maurice Capovilla. A trilha sonora contava com nomes como Rogério Duprat e Hareton Salvanini, mas vale destacar que músicas do disco A divina comédia ou Ando meio desligado, dos Mutantes (1970) aparecem aqui e ali no filme. Aliás, o episódio Retrato de um jovem brigador (um dos seis filmados pelo próprio Roberto Santos), tem cenas de luta em que a trilha sonora é o solo de bateria de Oh! Mulher infiel, tema instrumental do grupo paulistano.
A novidade é que o filme, até que tirem da web, está quase inteiro no YouTube.
>>> Veja também no POP FANTASMA: Aonde foi parar o garoto do filme Vá e veja?
Quase inteiro, porque – vale recordar – o corajoso Vozes do medo foi censurado. Segundo o site da Cinemateca Brasileira, os escritórios da Lynx Films, associada a Roberto, foram invadidos por agentes da polícia federal, que apreenderam filme e negativo do episódio A santa ceia, realizado por Aloysio Raulino. Isso aconteceu pouco depois do filme não ter conseguido visto da censura para ser apresentado no Festival de Berlim – e na sequência de uma exibição para três ministros, como última cartada para liberar o filme. O vídeo daí de cima não tem A santa ceia, até hoje desaparecido. O que deu para ser exibido do filme nos cinemas, passou em escala pequena em 1974.
Aliás, Vozes do medo é uma enorme surpresa para quem se interessa por cultura pop e cenas de rua. Num dos episódios, Caminhos, jovens andam pelas ruas de São Paulo, participam de gincanas esportivas, entram nos estúdios da recém-inaugurada TV Bandeirantes e até mesmo frequentam o auditório de Os bons do Plonka, um inusitado programa de calouros que o humorista Marcos Plonka (o Samuel Blaustein da Escolinha do Professor Raimundo) comandou na TV Tupi. As imagens unem-se às de menores (infratores?) chegando de kombi a uma delegacia, ou inscrevendo-se numa prova.
A Lynx Film, empresa à qual Roberto se associou para fazer o filme, era uma produtora de comerciais. Em alguns episódios, há paródias de reclames televisivos. Num deles, a “propriedade privada” é sacaneada por um breguíssimo padre cantor e pela imagem de um menino fazendo cocô no penico.
>>> Veja também no POP FANTASMA: Thomasine & Bushrod, um faroeste black, com trilha do Love
O episódio The super woman, desenhado por Ruy Perrotti, é uma interessante animação em que o tema é libertação sexual feminina. O jogo terrível do capitalismo e do se-dar-bem-na-vida-a-qualquer-custo é o tema de um dos episódios mais perturbadores, O jogo do ludo. O mesmo acontece num dos episódios mais impressionantes do filme, A feira do medo, dirigido pelo próprio Roberto Santos – com música tema de Sérgio Ricardo, Analfaville.
Quem andou revelando alguns detalhes sobre o filme – numa entrevista à revista Contracampo – foi o cineasta Maurice Capovilla. “O tema era muito aberto, era tão amplo que cada um fez uma interpretação do tema a partir das suas ideias. Não houve uma estrutura rígida, a temática era geral, era basicamente um filme que colocava em questão a ditadura e a repressão, quer dizer, era um filme contra a censura, e virou realmente um filme que parou durante meses”, recordou ele, que dirigiu o episódio Loucura, com duas atrizes – uma enjaulada, a outra, não – que trocam de papel.
“E praticamente ninguém viu esse filme, é um filme praticamente sem conhecimento, sem análise, nada. Quando você analisa o momento político, esse filme talvez seja mais interessante, mais importante, do que todos que foram feitos naquele período. E foi feito numa cooperativa total, ninguém ganhou nada, o equipamento era da produtora”, disse Capovilla. Ninguém duvida.
Cinema
Ouvimos: Raveonettes – “PE’AHI II”

RESENHA: Os Raveonettes mergulham de vez no lo-fi e shoegaze em PE’AHI II, disco que soa mais próximo de uma transição do que de uma realização.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
Raveonettes, aquela dupla que misturava distorções a la Jesus and Mary Chain, clima melodioso herdado dos anos 1950 e estética do filme Juventude transviada, lembra? Pois bem, eles guiaram o timão de vez para gêneros como shoegaze e lo-fi. Não é algo estranho ao som deles, vale falar. Climas “serra elétrica” sempre tiveram lugar nos discos de Sune Rose Wagner e Sharin Foo. PE’AHI II, novo disco, é a continuação de PE’AHI, disco de 2014 que já promovia suas invasões nessas áreas. Sem falar que 2016 atomized – disco anterior de inéditas da banda, 2017 – surfava essa onda.
Só que o Raveonettes de 2025 chega a soar experimental, mesmo quando abre o novo disco com uma balada nostálgica e melancólica, Strange. E na sequência, o ruído programado de Blackest soa como uma curiosa mescla de blackgaze e pop de câmara. Já Killer é uma nuvem de microfonias que lembra bandas como Drop Nineteens, só que com mais cuidado na melodia.
Entre as outras curiosidades do disco, estão o noise rock programado de Dissonant, a viagem sonora e distorcida de Sunday school e a onda sonora de microfonia (alternada com toques dream pop) de Ulrikke. O resultado final deixa um ar de EP, de mixtape, mais do que de um álbum completo e realizado dos Raveonettes. Ainda que PE’AHI II tenha momentos ótimos, soa mais como uma transição para o que vem por aí.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 7,5
Gravadora: Beat Dies Records
Lançamento: 25 de abril de 2025
- Ouvimos: The Raveonettes – Sing…
- Ouvimos: Drop Nineteens – 1991
- Ouvimos: Drop Nineteens – Hard light
Cinema
Urgente!: Cinema pop – “Onda nova” de volta, Milton na telona

Por muito tempo, Onda nova (1983), filme dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia – e censurado pelo governo militar –, foi jogado no balaio das pornochanchadas e produções de sacanagem.
Fácil entender o motivo: recheado de cenas de sexo e nudez, o longa funciona como uma espécie de Malhação Múltipla Escolha subversivo, acompanhando o dia a dia de uma turma jovem e nada comportada – o Gayvotas Futebol Clube, time de futebol formado só por garotas, e que promovia eventos bem avançadinhos, como o jogo entre mulheres e homens vestidos de mulher. Por acaso, Onda nova foi financiado por uma produtora da Boca do Lixo (meca da pornochanchada paulistana) e acabou atropelado pela nova onda (sem trocadilho) de filmes extremamente explícitos.
O elenco é um espetáculo à parte. Além de Carla Camuratti, Tânia Alves, Vera Zimmermann e Regina Casé, aparecem figuras como Osmar Santos, Casagrande e até Caetano Veloso – que protagoniza uma cena soft porn tão bizarra quanto hilária. Durante anos, o filme sobreviveu em sessões televisivas da madrugada, mas agora ressurge restaurado e remasterizado em 4K, estreando pela primeira vez no circuito comercial brasileiro nesta quinta-feira (27).
Meu conselho? Esqueça tudo o que você já ouviu sobre Onda nova (ou qualquer lembrança de sessões anteriores). Entre de cabeça nessa comédia pop carregada de referências roqueiras da época, um cruzamento entre provocação punk e ressaca hippie. O filme abre com Carla Camuratti e Vera Zimmermann empunhando sprays de tinta para pixar os créditos, mostra Tânia Alves cantando na noite com visual sadomasoquista, segue com momentos dignos de um musical glam – cortesia da cantora Cida Moreyra, que brilha em várias cenas – e trata com surpreendente modernidade temas como maconha, cultura queer, relacionamentos sáficos, mulheres no poder, amores fluidos e, claro, futebol feminino.
Se fosse um disco, Onda nova seria daqueles para ouvir no volume máximo, prestando atenção em cada detalhe e referência. A trilha sonora passeia entre o boogie oitentista e o synthpop, com faixas de Michael Jackson e Rita Lee brotando em alguns momentos. E o que já era provocação nos anos 1980 agora ressurge como registro de uma juventude que chutava o balde sem medo. Vá assistir correndo.
*****
Já Milton Bituca Nascimento, de Flavia Moraes, que estreou na última semana, segue outro caminho: o da reverência, mesmo que seja um filme documental. Durante dois anos, Flavia seguiu Milton de perto e produziu um retrato que, mais do que um relato biográfico, é uma celebração. E uma hagiografia, aquela coisa das produções que parecem falar de santos encarnados.
A narração de Fernanda Montenegro dá um tom solene – e, enfim, logo no começo, fica a impressão de um enorme comercial narrado por ela, como os daquele famoso banco que não patrocina o Pop Fantasma. Aos poucos, vemos cenas da última turnê, reações de fãs, amigos contando histórias. Marcio Borges lê matérias do New York Times sobre Milton, para ele. Wagner Tiso chora. Quincy Jones sorri ao falar dele. Mano Brown solta uma pérola: Milton o ensinou a escutar. E Chico Buarque assiste ao famigerado momento do programa Chico & Caetano em que se emociona ao vê-lo cantar O que será – um vídeo que virou meme recentemente.
Isso tudo é bastante emocionante, assim como as cenas em que a letra da canção Morro velho é recitada por Djavan, Criolo e Mano Brown – reforçando a carga revolucionária da música, que usava a imagem das antigas fazendas mineiras para falar de racismo e capitalismo. Mas, no fim, o que fica de Milton Bituca Nascimento é a certeza de que Milton precisava ser menos mitificado e mais contado em detalhes. Vale ver, e a música dele é mito por si só, mas a sensação é a de que faltou algo.
Por acaso, recentemente, Luiz Melodia – No coração do Brasil, de Alessandra Dorgan, investiu fundo em imagens raras do cantor, em que a história é contada através da música, sem nenhum detalhe do tipo “quem produziu o disco tal”. Mas o homem Luiz Melodia está ali, exposto em entrevistas, músicas, escolhas pessoais e atitudes no palco e fora dele. Quem não viu, veja correndo – caso ainda esteja em cartaz.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
Cinema
Urgente!: Filme “Máquina do tempo” leva a música de Bowie e Dylan para a Segunda Guerra

Descobertas de antigos rolos de filme, assim como cartas nunca enviadas e jamais lidas, costumam render bons filmes e livros — ou, pelo menos, são um ótimo ponto de partida. É essa premissa que guia Máquina do tempo (Lola, no título original), estreia do irlandês Andrew Legge na direção. A ficção científica, ambientada em 1941, acompanha as irmãs órfãs Martha (Stefanie Martini) e Thomasina (Emma Appleton), e chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (13), dois anos após sua realização.
As duas criam uma máquina do tempo — a Lola do título original, batizada em homenagem à mãe — capaz de interceptar imagens do futuro. O material que elas conseguem captar é todo registrado em 16mm por uma câmera Bolex, dando origem aos tais rolos de filme.
E, bom, rolo mesmo (no sentido mais problemático da palavra) começa quando o exército britânico, em plena Segunda Guerra Mundial, descobre a invenção e passa a usá-la contra as tropas alemãs. A princípio, a estratégia funciona, mas logo começa a sair do controle. As manipulações temporais geram consequências inesperadas, enquanto as personalidades das irmãs vão se revelando e causando conflitos.
Com apenas 80 minutos de duração e filmado em 16 mm (com lentes originais dos anos 1930!), Máquina do tempo pode soar confuso em algumas passagens. Não apenas pelas idas e vindas temporais, mas também pelo visual em preto e branco, valorizando sombras e vozes que quase se tornam personagens da história. Em alguns momentos, é um filme que exige atenção.
O longa também tem apelo para quem gosta de cruzar cultura pop com história. Martha e Thomasina ficam fascinadas ao ver David Bowie cantando Space oddity (o clipe brota na máquina delas), tornam-se fãs de Bob Dylan, adiantam a subcultura mod em alguns anos (visualmente, inclusive) e coadjuvam um arranjo de big band para o futuro hit You really got me, dos Kinks, que elas também conseguem “ouvir” na máquina. Um detalhe curioso: a própria Emma Appleton operou a câmera em cenas em que sua personagem Thomasina se filma (“para deixar as linhas dos olhos perfeitas”, segundo revelou o diretor ao site Hotpress).
Ainda que a cultura pop esteja presente, Máquina do tempo é, acima de tudo, um exercício de futurologia convincente, explorando uma futura escalada do fascismo na Inglaterra — que, no filme, chega até mesmo à música, com a criação de um popstar fascista.
A ideia faz sentido e nem é muito distante do que aconteceu de verdade: punks e pré-punks usavam suásticas para chocar os outros, Adolf Hitler quase figurou na capa de Sgt. Pepper’s, dos Beatles, Mick Jagger não se importou de ser fotografado pela “cineasta de Hitler” Leni Riefenstahl, artistas como Lou Reed e Iggy Pop registraram observações racistas em suas letras, e o próprio Bowie teve um flerte pra lá de mal explicado com a estética nazista. Mas o que rola em Máquina do tempo é bem na linha do “se vocês soubessem o que vai acontecer, ficariam enojados”. Pode se preparar.
-
Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 8: Setealém
-
Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 2: Teletubbies
-
Notícias7 anos ago
Saiba como foi a Feira da Foda, em Portugal
-
Cinema8 anos ago
Will Reeve: o filho de Christopher Reeve é o super-herói de muita gente
-
Videos7 anos ago
Um médico tá ensinando como rejuvenescer dez anos
-
Cultura Pop8 anos ago
Barra pesada: treze fatos sobre Sid Vicious
-
Cultura Pop6 anos ago
Aquela vez em que Wagner Montes sofreu um acidente de triciclo e ganhou homenagem
-
Cultura Pop7 anos ago
Fórum da Ele Ela: afinal aquilo era verdade ou mentira?