Crítica
Ouvimos: Patricia Polayne, “O comboio da ilusão”

- O comboio da ilusão é o segundo álbum da cantora sergipana Patricia Polayne, que sai 15 anos após sua estreia com O circo singular – As canções do exílio. O álbum foi feito entre Aracaju, São Paulo, Rio de Janeiro e Bruxelas.
- A roda, single do disco, traz Patricia promovendo uniões com o samba de pareia, oriundo de um rito de dança circular sagrada, em batucada e voz, originário do povoado quilombola Mussuca, localizado em Laranjeiras, Sergipe.
- “O samba de pareia é mais que um ritmo, é um rito, uma tradição de mais de trezentos anos, celebrado toda vez que nasce uma criança no povoado Mussuca, o que torna o ritual, para além da festa, um ato de resistência feminina”, conta ela, que chamou Dona Nadir, matriarca da localidade, para cantar na faixa.
- Temas como Tarô e I-Ching também nortearam o conceito do álbum.
O comboio da ilusão, segundo álbum de Patricia Polayne, levou tempo para sair – 15 anos após a estreia com O circo singular – As canções do exílio. E serve tanto como um caderno de referências como um relatório de vivências e memórias, começando pela vinheta percussiva e poética Amor ao difícil (“não tenho a idade dos meus anos/a caneta que em mim se movimenta/é uma dor que arrebenta/quando estou de pé e sangrenta”, diz o texto), e seguindo pelo som nordestino, pesado e profético de A roda. Uma canção com batidões, vozes distorcidas, uma certa sujeira na captação sonora e uma letra que clama por mudanças sociais urgentes (“pele de cobra trocando/tudo muda de lugar”).
O tom de Polayne como compositora chega a ser apocalíptico, lembrando artistas como Raul Seixas e Chico Science, e lembrando que ainda há muito por ser feito. “A vida é só uma quantia pequeníssima que temos”, diz em Pequeníssima, samba-pop-abolerado de vocal forte. Referências do universo pop-rock vão surgindo aqui e ali, como no rock sombrio de O medo, com percussão oriental, e variação para folk-rock anos 1980 e até para samba – mudanças surpreendentes de arranjo são comuns em O comboio, aliás. O abismal é um samba com pegada de violão hispânica e oriental – enquanto a guitarra lembra o tom limpo e melódico de Johnny Marr (Smiths).
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Algumas faixas de O comboio o tornam o típico disco que, na era do CD, iria chamar a atenção pela ambiência sonora – como a ciranda de O rio, com barulhos de água e tom meditativo, além de versos como “nunca ser o mesmo quando se entornar no mar/nunca ser o mesmo quando se tornar o mar”, que usam a imagem do rio como metáfora existencial. Em meio à variedade rítmica, surgem estilos pouco achegados ao mainstream como o sergipano samba de pareia, lado a lado com referências de baião e até de arrocha – além de um quase samba-reggae em O profeta.
O universo de O comboio inclui ainda curiosos flertes emepebísticos com o dream pop (em trechos de A cidade dos cavaleiros) e com o chamber pop (Diadorim, com cordas, violão e cravo). Fogueira (O dragão da maldade) é bossa-rock com certa filiação psicodélica, com um verso (“uma fada traiçoeira, de agrados e castigos”) tirado de Narizinho, tema infantil composto por Ivan Lins e Victor Martins para o disco infantil Sítio do Pica-Pau Amarelo (1977). Morro do urubu é uma MPB-pós-punk, com batida quase industrial e percussão que cria imagens na cabeça do ouvinte. Se for ouvir, reserve tempo para ouvir mais de uma vez.
Nota: 9
Gravadora: Longe
Lançamento: 21 de novembro de 2024.
Crítica
Ouvimos: Hotline TNT – “Raspberry moon”

RESENHA: Em Raspberry moon, o Hotline TNT acerta ao misturar noise, power pop esquisito e guitarras noventistas com letras simples e clima quase emo.
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Rotular a banda novaiorquina Hotline TNT como shoegaze é dar bem pouca areia para o caminhão deles. O grupo liderado por Will Anderson está mais para aquela época em que se sabia que rock, via de regra, tinha que ser ruidoso – seja lá em que gênero ele se adequasse. Raspberry moon, terceiro disco do grupo, guia o timão para os tempos de Hüsker Dü, Sugar, Velocity Girl, Dinosaur Jr e põe os rangidos e as paredes de guitarra para funcionar a favor da melodia.
Raspberry moon traz Will num clima diferente: em vez de compor e tocar sozinho, como aconteceu nos discos anteriores, ele pôs a galera que o acompanha nos shows para criar o disco ao lado dele. Boa parte do repertório soa mais próximo, de fato, do que pode ser entendido como um “disco de banda”, com dinamismo mais acentuado, e variando entre ruído e melodia. Was I wrong?, na abertura, é noise rock educado e alimentado como uma dieta de rock dos anos 1960. The scene é quase um haikai ruidoso e voltado pata a musicalidade pesada dos anos 1990. A ligeiramente funkeada Julia’s war tem cara de hit e chega a lembrar aquelas bandas mais palataveis que usavam a fórmula do grunge (Third Eye Blind, etc).
- Ouvimos: Dinosaur Jr – Farm (15th anniversary edition)
- Ouvimos: Velocity Girl – UltraCopacetic (Copacetic remixed and expanded)
- The living end: lembranças do Hüsker Dü ao vivo, em CD lançado em 1994
- Entrevista: Greg Norton (Hüsker Dü, Porcupine) exclusivo para o Pop Fantasma
Isto posto, dá pra dizer que o Hotline TNT se aproximou bastante do power pop no disco novo – aliás num papo com a newsletter Last Donut Of The Night, Will disse que, quando mais novo, ouvia bandas como Weezer e Red Hot Chili Peppers. Mas é um power pop esquisito, no qual cabem loucuras vaporwave (Transition lens), um clima que remete tanto a Joy Division quanto ao soft rock (Break right e Candles) e um pós-grunge como talvez ele devesse ser hoje em dia (Letter to heaven).
Aclimatações jangle-pop tomam conta de Dance the night away, e ruídos acústicos rangem nos violões ardidos de Lawnmover – enquanto uma nuvem sonora mais próxima do shoegaze que costuma ser associado à banda aparece na última faixa, Where U been?. Já as letras valorizam a simplicidade, ou o desejo de ser entendido (e sentido) em poucas frases. Há mensagens de adeus em Was I wrong? e Letter to heaven, um curioso conto de escalada em Julia’s war, e inseguranças amorosas em várias faixas, num clima praticamente emo – como o “se você realmente me amasse / faria uma cena de ciúmes / visibilidade / e todos veriam” da amarga The scene.
Talvez esse prazer por mostrar o lado mais imaturo da vida corte um pouco da boa experiência de ouvir o Hotline TNT. Mas Raspberry moon faz bem aos ouvidos quase todo o tempo.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Third Man Records
Lançamento 20 de junho de 2025.
Crítica
Ouvimos: Getdown Services – “Primordial slot machine”

RESENHA: Em Primordial slot machine, o Getdown Services mistura pós-punk, soul e krautrock com humor ácido e melodias tortas, em faixas caóticas e cativantes.
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Dupla de Bristol, na Inglaterra, o Getdown Services parece um cruzamento de Prince, Beck e John Lydon – ou seja: balanço, estranhice e zoeira marcam o repertório da dupla formada por Josh Law e Ben Sadler.
Primordial slot machine, terceiro EP dos dois (eles têm ainda um álbum, Crisps, de 2023) abre com o pós-punk desértico de Provide me your name, música na qual rola uma conversa telefônica das mais esquisitas. E em seguida vem Chrysalis, soul-rock-pop com piano Rhodes, guitarra sinuosa e vocal falado – a letra basicamente fala sobre situações estressantes resolvidas de maneira imbecil (“vou formar uma crisálida perfeita / e enchê-la de mijo”, explicam/não explicam na letra).
- Ouvimos: The Wants – Bastard
- Ouvimos: Godofredo – Tutorial
- Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – Curse (EP)
Ben e Josh investem num eletrokrautrock ruidoso em James Bay’s hat e Eat quiche. Sleep. Repeat, duas músicas cujas letras parecem uma mistura da inocência falsa de David Byrne com o humor corrosivo de Mike Patton (“eu encontrei o maior amor do mundo / no menor meet and greet do mundo / dei uma crítica de duas estrelas de um filme que eu nem tinha visto”, afirmam na segunda). God bless é um rap que parece ter sido construído num sample – ou numa imitação – da levada de Rational culture, de Tim Maia.
A música mais “normal” do disco, Drifting away, vem no fim, e fala sobre vontade de desaparecer (“sou corajoso, mas não corajoso o suficiente para ficar / indo embora”) sob uma base de rock indie e sessentista, com vocal grave lembrando Lou Reed. Para ouvir quando a amargura desses dois não conseguir te contagiar.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8
Gravadora: Breakfast Records
Lançamento: 6 de junho de 2025.
Crítica
Ouvimos: Vovô Bebê – “Bad english”

RESENHA: Quarto disco de Vovô Bebê, Bad english mistura Bowie, Jovem Guarda, baião e soul em um pop experimental cheio de referências e surpresas.
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Quando começaram a surgir as notícias sobre Bad english, quarto álbum de Vovô Bebê – codinome do músico Pedro Dias Carneiro – nomes como David Bowie eram bastante citados em textos que adiantavam o disco. Bowie paira como uma espécie de santo padroeiro sobre Bad english, disco produzido por Chico Neves e dirigido artisticamente por Ana Frango Elétrico – e a capa parece referir-se a uma versão torta de Blackstar (2016), seu disco de despedida.
E justamente o Bowie que baixou no estúdio em que Vovô Bebê gravou foi a versão mais aventureira e experimental do britânico – a da fase Berlim e a dos discos que ele fez nos anos 1990, incompreensíveis para vários fãs antigos, e revistos anos depois por vários deles. Não é só isso: o despojamento dos discos de Gilberto Gil e Caetano Veloso feitos em Londres, e até o balanço dos Red Hot Chili Peppers, além do desdobre psicodélico da Jovem Guarda (Incríveis, Silvinha, Vanusa)… Tudo isso é citado em faixas como Intro/End of the moon, Forest baby (essa, em tom bossa + rock + soul + Bowie), a contemplativa e sinuosa Little sun, a espacial Night away e a beatle-tropicalista Offbook effort.
Bad english une Beck e disco music saturada em Star smoke ticket, põe algo de glam rock na mistura em Wrong ticket, e junta baião, afoxé, jazz e lisergia em Brazil commodity e Left for dead. O soul indie Daily basis slide guitars, voz tranquila e um balanço que remete tanto a Marcos Valle quanto a Titãs. Tem experimentalismo, e muito, em Bad english – mas ele surge como um elemento a mais nas canções e arranjos.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Estúdio304
Lançamento: 23 de abril de 2025.
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