Cultura Pop
Quando o Al Goldstein e o “Midnight Blue” chocavam geral
Al Goldstein (1936-2013) deu bastante audiência, mas foi um dos sujeitos mais controversos e detestados dos EUA por vários anos. Uma espécie de Carlos Imperial gringo, Al teve diversos empregos antes de entrar de vez para o universo da mídia adulta. Foi motorista de táxi em Nova York, fotojornalista, vendeu enciclopédias, e chegou a arrumar um emprego maluco como espião industrial, quando se infiltrou em um sindicato da Bendix Corporation. O job era tão repugnante que ele decidiu contar tudo numa reportagem para o jornal underground The New York Press. Mas ele ficou mesmo conhecido em 1968, quando fundou uma revista de entretenimento adulto, a Screw.
Descrita por muita gente como “obscena, desagradável, geralmente nojenta e às vezes política”, a revista se dedicava a temas que davam (muito) trabalho naquela época: resenhas de filmes adultos, informações sobre lugares onde rolava peep shows, casas de swing e outros assuntos proibidos para menores. Começou a dar trabalho e a ficar famosa no meio pop, a ponto de, quando Al resolveu lançar um spin-off, a National Screw, em 1976, a publicação ter resolvido entrevistar vários famosos para ver qual era o pior pesadelo deles. A atriz e cantora Cherry Vanilla sonhou com uma orgia que envolvia a família Bowie inteira.
No vídeo abaixo, Al, no comecinho dos anos 1980, diz o que realmente pensava de ninguém menos que Donald Trump. “Penso nele em alguns dos meus pesadelos recorrentes”, explicou. “Ele quer tudo, quer que Nova York mude de nome para Trump City. Ele sempre constrói prédios – isso Freud explica – no formato de falos. Esse homem com certeza tem p… pequeno. É um ‘p… de Howard Trump’. Ah, pera, o nome dele é Donald, né? Trump, você é tão desimportante que nem lembro do seu nome”.
ONDA ADULTA
No começo dos anos 1970, pegou fogo a primeira grande onda do entretenimento adulto, por intermédio de revistas que seguiam uma linha bem mais liberal do que a Playboy, e por filmes como Garganta profunda e O diabo na carne de Miss Jones. Sentindo os ventos, em 1974, Goldstein decidiu levar seu projeto “adulto” e sacana para a o nascente universo da TV a cabo, e surgiu o primeiro grande sucesso desse tipo de transmissão: o Midnight Blue.
Sucesso, no caso, significava ter muita audiência, mas causar muito escândalo. A atração trazia entrevistas com nomes da música e da cultura pop (Debbie Harry, do Blondie, e Robert Crumb, estiveram lá). Mas convidava para a roda atrizes como Marilyn Chambers (do clássico soft porn Atrás da porta verde, de 1972) e Seka (de Desejos adolescentes, filmado em 1974 e lançado só em 1978). Trechos de filmes pornôs se misturavam a anúncios de casas de swing. A sexóloga Annie Sprinkle aparecia mostrando modelos de brinquedos sexuais.
De modo geral, Goldstein é considerado o responsável por ter “levado a pornografia para o mainstream cultural”. Foi começando a dar merda quando rolaram os primeiros processos e condenações por vender obscenidades e por má conduta. No fim dos anos 1980, o programa conseguiu marcar um (vá lá) gol mostrando na íntegra a fita de vídeo em que o ator Rob Lowe aparecia fazendo sexo com uma menina de 16 anos na Georgia. Lowe escapou dos processos porque, naquela época, 16 anos era a “idade do consentimento” no estado americano. Mas a queimação pública na imagem do ator foi grande.
Detalhe interessante: os filmes pornôs exibidos no programa sempre ganhavam pontos azuis para esconder partes dos corpos das pessoas. No caso da fita de Lowe, pela primeira vez, tudo apareciam sem pontos azuis – uma (vá lá) vitória de Goldstein, que queria até processar a Manhattan Cable (que exibia a atração) para deixar tudo aparecer.
UM CARA ESCROTO
Goldstein ficou na mira das feministas desde quando apareceu. Era defendido por muita gente e até hoje há quem afirme que o universo da Screw, do Midnight Blue e de outras coisas que ele fazia, era bem menos machista e objetificante do que o da Playboy. Mas no fim da vida, ainda se digladiava com vários processos na justiça. Alguns de natureza bem excêntrica e pessoal.
Pelo menos um desses processos mostrava o lado escroto de Al: brigado com o filho, que o rejeitava (e que não o havia convidado para sua formatura na faculdade de direito), publicou na Screw, como se fosse algo de interesse público, montagens de fotos nas quais o jovem “aparecia” fazendo sexo até com a própria mãe (a terceira ex-esposa de Al, Gena). Mas o apresentador também ganhou processos de uma ex-secretária por tê-la assediado moralmente, e da própria ex-esposa Gena por pedir a telespectadores do Midnight blue que ligassem para ela (!!).
Com a pindaíba do editor/apresentador/diretor, e com a queimação de sua imagem, a Screw e o Midnight Blue fecharam as portas quase ao mesmo tempo, entre 2003 e 2004. Goldstein faliu e caiu em desgraça. Muita desgraça: ele chegou a morar num abrigo para sem-teto e numa casa de repouso, onde morreu em 2013. Também precisou trabalhar como recepcionista e vendedor para sobreviver.
O material antigo do Midnight Blue, lançado em outro tempo da cultura pop, chegou ao universo do DVD, por intermédio de uma empresa chamada Blue Underground. Recentemente a fase áurea do programa chegou ao universo dos podcasts por causa de um site chamado The Rialto Report. Todos os lados de Al foram relembrados recentemente num logo texto do site Please Kill Me.
Crítica
Ouvimos: The The, “Ensoulment”
- Ensoulment é o novo disco do The The, banda-de-um-homem-só criada em 1979 pelo músico Matt Johnson, sempre com o auxílio de convidados. O disco sai pelo Cineola, selo criado pelo próprio Matt, que abarca também uma rádio com o mesmo nome. A produção foi feita por Matt e Warne Livesey.
- No começo da epidemia de covid-19, Matt foi internado para remover um abcesso da garganta. Depois disso, ele ficou seis meses sem cantar. A estadia sombria no hospital vazou para uma das faixas do novo disco, Linoleum smooth to the stockinged feet. “Talvez eu tenha morrido. Pensei que era isso que tinha acontecido. Estou morto. Agora estou naquela sala de espera entre o céu e o inferno”, contou ao The Independent.
The The é a banda-de-uma-pessoa-só que tem hits como Uncertain smile, This is the day e Slow emotion replay – músicas que já animaram festas por aí e que costumam rolar em rádios rock, das mais ousadas às mais motoclubistas e conservadoras. O fato de terem vindo dos anos 1980 e terem uma estética que fica a meio caminho de grupos como The Cure e New Order, ajudou nesse sucesso aqui no Brasil, claro.
Bom, não é bem por ai. Matt Johnson, criador e único integrante oficial do grupo, já foi louco de tacar pedra. Um dos maiores hits da banda é o eletrogótico Infected, e a coleção de clipes Infected: The movie, lançada em 1986, traz vídeos em que o cantor se mete em brincadeiras bastante arriscadas. Tipo descer um rio selvagem num barco, só que amarrado numa cadeira, ou contracenar com uma cobra. O período em que Matt chamava Jesus de Genésio por causa das drogas se foi, sua banda passou a ser mais conhecida como autora de trilhas sonoras e, em 2018, anunciou o retorno dos shows ao vivo.
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O sombrio Ensoulment, álbum novo do The The, continua na linha de mostrar que o grupo de Matt Johnson sempre esteve mais para banda pop dirigida por Tim Burton do que pra autores de jingle radiofônico de loja de surf wear (Slow emotion replay, a “da gaitinha”, foi por muito tempo usada no Rio de Janeiro exatamente para essa função). Era o que vinha acontecendo nas trilhas sonoras feitas pelo The The e foi o que rolou no obscuro disco NakedSelf (2000), basicamente um álbum de rock industrial.
Ensoulment é uma trilha para um filme que possivelmente só existe na cabeça de Matt, e cujo design sonoro está mais para discos de Iggy Pop e Leonard Cohen do que para qualquer som de festa, como rola na abertura com a climática Cognitive dissident e na folk e nostálgica Some days I drink my coffee by the grave of William Blake – esta com melodia delicadamente sampleada de The house of the rising sun, tema tradicional imortalizado por The Animals. O blues maldito Zen & the art of dating lembra uma mescla de David Bowie e Marilyn Manson, enquanto Kissing the ring of POTUS é uma balada de terror, e Life after life volta a mexer no baú de Leonard Cohen. Ajuda o fato de Matt ter enfatizado mais ainda o registro grave de sua voz com o passar dos tempos.
Daí para a frente, o álbum traz músicas como a funérea e romântica I want to wake up with you, o blues de piano fantasmagórico Down by the frozen river, o r&b lúgubre de Risin’ above the need e o folk de outros mundos de Where do we go when we die?. Sem contar as lembranças sombrias da estadia num hospital em Linoleum smooth to the stockinged feet. E assim Ensoulment é a volta do The The num clima de fantasia, mais narrativo e sofisticado.
Nota: 8,5
Gravadora: Cineola
Crítica
Ouvimos: Nando Reis, “Uma estrela misteriosa”
Se você não for exatamente um/uma fã ardoroso (a) de Nando Reis, provavelmente vai achar um enorme exagero o lançamento de um álbum triplo de carreira do cantor. Vale acrescentar que poucos artistas se aventuraram por esse tipo de formato, e entre eles estão Smashing Pumpkins e ninguém menos que Nelson Gonçalves. E que, se em outros tempos, uma ousadia dessas era sinal de que há público pagante, hoje em dia, com os mistérios das redes sociais e das plataformas, tudo fica na base do ”só vendo”.
No caso de Uma estrela misteriosa – que na versão em vinil ainda ganha um LP bônus, estendendo o título do álbum com o rabicho …revelará o mistério – Nando volta ao noticiário com um projeto tão ambicioso quanto a turnê Encontro dos Titãs, sua ex-banda. Tudo bem conveniente para um artista que sempre soube usar muito bem a mídia e suas ramificações (show, lançamentos ao vivo, feats, podcast, entrevistas, canal do YouTube). E tudo, quem sabe, ótimo para os fãs, que ganham o primeiro material verdadeiramente novo do cantor desde 2016, quando saiu Jardim-pomar. Não custa lembrar que Nando, mesmo sendo parte integrante do mainstream musical brasileiro, é um artista independente, não está rasgando dinheiro, e o projeto todo deve ter partido de uma relação custo-benefício (que já rendeu além do disco, uma turnê por todo o Brasil), e não de megalomania patrocinada por uma gravadora.
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Se o disco triplo é bom… Aí vamos por partes. Em sua obra, Nando costumeiramente se dá melhor quando veste a capa de uma certa MPB heartland, baseada em riffs roqueiros, argamassa quase pesada, letras que mostram detalhes diferentes do cotidiano, e um certo romantismo idealizado, de retorno ao passado – lembrando uma mescla pouco usual de Roberto & Erasmo e Neil Young. Em Uma estrela misteriosa, essa estética toma conta do disco 3, em faixas como O muro, Ginger e Red, Na lagoa e Tome o seu lugar. Rola também na abertura do set com A chave, e na fanfarra brega (no bom sentido) de Coragem é poder mostrar. Os arranjos de metais são uma atração à parte, soando em alguns casos como uma mescla de MPB popularesca dos anos 1970 e Dexy’s Mindnight Runners. Já Azul febril ameaça lembrar uma versão MPB-balada de Ballet for a rainy day, do XTC.
Por outro lado, tem as horas em que Nando parece lembrar que produz músicas para serem tocadas nas poucas rádios de MPB que ainda tomam conta do dial – e aí surgem músicas um tanto repetitivas, como Inverso, a balada blues Pedra fundamental e Daqui por diante. Como letrista, Nando não é como Gilberto Gil, que sabe misturar metáforas e conversas simples, às vezes numa mesma música. No disco triplo, essa disposição para exagerar nas imagens e patinar no hermetismo fica bem clara em várias letras. Por acaso, o álbum tem uma faixa, justamente Estrela misteriosa, que leva o discurso de O segundo sol para Júpiter, e que fala em “79 luas”.
Uma estrela misteriosa foi feito para os fãs de verdade – até pelo seu caráter exclusivista, de ser uma caixa de LPs – e provavelmente vai ser compreendido por eles devido a seu aspecto afetuoso. Como produto, rende altos e baixos. E Para quando o arco íris encontrar o pote de ouro, segundo álbum de Nando (2000) ainda é o disco recomendável a quem quiser encontrar MPB verdadeiramente ligada ao lado invernal da música dos anos 1990.
Nota: 7
Gravadora: Relicário
Crítica
Ouvimos: Velocity Girl, “UltraCopacetic (Copacetic remixed and expanded)”
No ano passado, os indies norte-americanos do Velocity Girl se reuniram para seu primeiro show depois de duas décadas separados. Sarah Shannon (voz), Kelly Riles (baixo), Jim Spellman (bateria), Archie Moore e Brian Nelson (ambos guitarra) aproveitaram para entrar em estúdio e remexer em seu disco de estreia, Copacetic, lançado originalmente pelo selo Sub Pop em 1992, e que agora retorna em edição remixada e expandida, com capa nova, e nome alterado para UltraCopacetic.
A edição nova traz as doze faixas do disco original, incluindo músicas queridas dos fãs, como Audrey’s eyes (cujo clipe passou até mesmo na MTV Brasil), Pop loser, Crazy town e a faixa-título. Além do som sombrio e levemente sessentista (e lembrando Velvet Underground) de Here comes. Complementando, surgem músicas de compactos, uma faixa inédita gravada nas sessões de Copacetic (e que se chama Even die) e faixas gravadas no programa do DJ britânico John Peel – incluindo duas faixas que não foram ouvidas desde a transmissão original.
No todo, um som angustiado e um espécie de primo em comum do shoegaze e do indie rock britânico. No comecinho, o grupo (que veio de Washington DC) dizia inclusive que bandas da Rough Trade e do começo do selo Creation haviam inspirado o som deles. E não custa lembrar que o nome do grupo foi tirado de Velocity girl, canção do Primal Scream, lançada numa época em que o grupo escocês estava mais próximo do jangle pop – aquele rock batido na guitarra, influenciadíssimo pelos anos 1960. Além disso, o VG era um exemplo de supergrupo indie, com ex-integrantes de bandas como Black Tambourine e Piper Club na formação.
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O Velocity Girl tinha raízes bem mais sessentistas do que fazia supor – e vale recordar que o grupo chegou a ser cortejado pela Silvertone, gravadora dos Stone Roses, mas se sentiu mais segura na Sub Pop. No caso de Copacetic, o que ficou mais na mente dos fãs era que o disco trazia canções bastante melodiosas, em meio a uma parede de guitarras e distorções, que também havia levado de roldão os vocais habilidosos de Sarah. Era basicamente um shoegaze mais melódico que o habitual, compreensível para fãs de bandas como Jesus and Mary Chain e Primal Scream.
Curiosamente, uma entrevista recente de Sarah e Moore à newsletter First Revival surpreende um total de zero pessoas: os integrantes da banda nem sabiam direito o que era shoegaze quando começaram a compor as músicas do disco, e foram descobrindo a posteriori que o som que faziam estava inserindo numa cena (“mas nunca fomos influenciados pelo Slowdive, ou por aquele som de guitarra etéreo”, diz Moore). Sarah, por sua vez, ouvia um tipo de música completamente diferente do rock indie da época – era fã de bandas como Fishbone e Trouble Funk.
O objetivo da nova edição é dar uma guaribada monstra no original, produzido e mixado por Bob Weston, um cara bem próximo do estilo de produção de Steve Albini – tocou com ele na banda Shellac e trabalharia inclusive como assistente dele no In utero, do Nirvana, lançado em 1993. Na época, o VG não entendia muito de produção, e Weston fez exatamente o que o grupo pediu para ele fazer.
O resultado é que a própria banda detestou o resultado final. Um texto do site Stereogum conta que o grupo pegou ranço a ponto de nem sequer ouvir o disco. O jornalista Rodrigo Lariu, que conta ter também ficado decepcionado com o álbum na época, enfatizou na Midsummer Madness que as masters do disco passaram anos sumidas, e só foram encontradas ano passado na casa da ex-sogra de Jim Spellman. “Pensa bem, você se separa da sua mulher e larga as masters de um disco seu na casa da mãe dela… é zero apego isso”, afirmou.
No tal papo com o First Revival, Moore entrega que alguns integrantes sentiram de cara que o disco não representava o que eles queriam. “Queríamos que soasse mais como os discos britânicos que estávamos ouvindo, comprimido, brilhante, um pouco psicodélico de um jeito pop barulhento, um disco adjacente ao shoegaze”, contou, acrescentando que os fãs do disco original podem perceber algumas mudanças na nova versão. “Uma das grandes coisas é que a bateria vai soar mais como bateria em um disco estilizado de new wave ou pós-punk (…) Não é o Copacetic que você ouviu antes, é para ser um disco falso de shoegaze”.
O shoegaze falca do Velocity Girl rendeu um grande álbum em 1992, mesmo não tendo saído como a banda achava que deveria soar – pela capa original, com uma foto distorcida e colorida, dá para notar que climas psicodélicos e nublados faziam mesmo a cabeça do quinteto. Detalhe: nos dois discos que o VG gravou depois de Copacetic (Simpatico!, de 1994, e Gilded stars and zealous hearts, de 1996) fica bem clara a disposição da banda de trabalhar numa zona entre o power pop, o punk e o rock herdado dos sons sessentistas. Não há distorções, as canções são privilegiadas, o esquema de composição e arranjo é quase beatle às vezes, e os vocais de Sarah soam límpidos e bem na frente.
Copacetic sobreviveu mesmo com os problemas de produção (que só hoje se tornam claros para vários fãs), e mesmo com o fato de vir de uma cena que, em termos de batidas na porta do mainstream, parecia esconder-se dentro de si própria. E a edição que retorna mostra, no entendimento do grupo, como ele deveria ter soado em 1992.
Nota: 8,5
Gravador: Sub Pop
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