Crítica
Ouvimos: Gia Ford, “Transparent things”

- Transparent things é o álbum de estreia da cantora britânica Gia Ford. O disco foi produzido por Tony Berg e é definido por ela como um lançamento que “tematicamente, tem uma qualidade mítica, decorrente das referências repetidas a criaturas, fantasmas e espíritos indefinidos. É um mundo próprio, onde os personagens têm mais em comum do que eu inicialmente pensei ser possível”, contou à Amplify.
- A inspiração das letras do disco? “Sempre me interessei por psicologia. Acho que é por isso que os párias eram o foco (do álbum) e por que eu me interessava por serial killers quando adolescente. O que os tornava assim? Aqueles para os quais eu criava personagens: eles são perseguidores ou assassinos ou algo angustiante”, disse ao New Musical Express.
- Gia diz que sua vida é bem mais estável do que sua música mostra. “Tenho uma pequena família. Tenho uma namorada. Tenho dois gatos. Mas acho que sou naturalmente bem nômade. Se eu não estivesse apegada a nada, acho que estaria pulando por aí o tempo todo”, contou.
Em termos de produção, interpretação e design sonoro, é difícil diferenciar Gia Ford de muita coisa que tem chegado às plataformas no dia de hoje – em Transparent things, ela soa como uma ótima cantora em busca de uma cara musical. Mas o disco de estreia dela chama a atenção pelo bom gosto, pelo foco em figuras bem estranhas nas letras e pela escolha por um pop indie e adulto-contemporâneo (enfim, a estranheza da “independência” chegando à rádio Antena 1).
O universo de Gia é, quase sempre, macabro. Falling in love again é uma balada tristíssima, lembrando uma mescla de Carpenters e Christine McVie, cuja letra fala de um pobre diabo que tem que lidar com a morte da esposa, e que está sempre procurando por ela “em alguém use as mesmas roupas” dela. Em Alligator, referenciadíssima em Fleetwood Mac fase Rumours (referência comum nos dias de hoje, aliás), ela encarna o jacaré do título, entre outros personagens, para falar sobre o “desespero para ser visto e ouvido”. Pinimbas sobre relacionamento entre pais e filhos, e sobre relacionamentos tóxicos, aparecem em dois momentos do disco – respectivamente, o ótimo soft rock Try changing e o britpop leve Paint me like a woman.
Só isso aí já bastaria para colocar a estilosa Gia num posto bem interessante: o de uma ótima contadora de histórias, cujas músicas dariam argumentos de séries, ou poderiam ser aproveitadas em trilhas sonoras, ou minimamente parecem terem sido inspiradas por séries e filmes. Ela consegue contar histórias que passam por questionamentos existenciais de maneira bastante pessoal – é o que rola na funkeada e boa Loveshot, e no bittersweet puro de Poolside, narrando as confissões de um garoto que trabalha limpando piscinas de gente rica, e se sente invisível para a turma abastada que ele é obrigado a servir todos os dias. Um bom começo, digno de audição, em busca de uma identidade musical mais forte – que vai rolar.
Nota: 7,5
Gravadora: Chrysalis
Crítica
Ouvimos: Snapped Ankles, “Hard times furious dancing”

“Ainda podemos manter a linha da beleza, forma e batida. Não é uma pequena conquista em um mundo tão desafiador quanto este… Tempos difíceis exigem dança furiosa. Cada um de nós é a prova”. Esse trecho, escrito em 2010 por Alice Walker – autora estadunidense mais conhecida pelo romance A cor púrpura, que virou filme – inspirou o quinto disco do Snapped Ankles, grupo londrino que por falta de denominação melhor, pode ser chamado de pós-punk.
Isso porque, na prática, o Snapped Ankles veio para confundir, causar e criar um som difícil de colocar em caixinhas. Você percebe um Kraftwerk torto aqui e ali, influências de grupos como Wire, Suicide e The Fall (o vocal lembra o de Mark E Smith), mas o mais bizarro é que os integrantes não revelam suas identidades e todos se apresentam com roupas camufladas (!). Hard times furious dancing, a visão deles a respeito da dança furiosa dos tempos difíceis asseverada por Alice Walker, põe em música o espanto com o capitalismo, com as corporações, com o descaso das pessoas e com a transformação de todo mundo em números e algoritmos.
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Viajando pelas faixas, Pay the rent, um samba eletrônico torto, com clima meio sujo e simultaneamente meio psicodélico, abre o álbum soando como um The Clash mais experimental – mandando bala numa letra que praticamente prevê o fim do mundo por falta de verbas. Personal responsibilities mete bala nas empresas que só querem saber de lucrar sem se preocupar com mais nada, em meio a um som que evoca um Devo do mal, ou um Suicide moderno. Raoul une Kraftwerk e Ministry. Dancing in transit é dance music de altas energias, mas com ritmos tortos, consistindo num jazz-rock doidão e ríspido.
E isso aí é só o começo. Dai para a frente, somos apresentados ao sarcasmo de Where’s the caganer?, som uptempo com uma letra citando a velha tradição do duende cagalhão, um boneco que faz parte da decoração de Natal da Catalunha. Smart world é um tecnorock que soa como uma música daqueles novelty records de música eletrônica dos anos 1970 – com uma letra que conclui que “todo mundo que eu conheço está ficando mais preguiçoso da cabeça quase dia após dia”.
As razoáveis Hagen im garten e Bai lan, músicas com partículas de reggae, industrial e até eletrohardcore, servem de ponte para Closely observed, que encerra o álbum. Uma canção bem mais meditativa que o restante do disco, e que em meio a sons espaciais, propõe a fuga do sistema maluco atual (“economize, prepare / empacote o que puder / fuja, fuja / para outro plano de inverno / aterrissamos em uma cidade vazia”). Resta saber para onde…
Nota: 8
Gravadora: The Leaf Label
Lançamento: 28 de março de 2025.
Crítica
Ouvimos: Bong Brigade, “Morte pela pizza”

O Bong Brigade vem de Campinas (SP) e se define como uma banda de “pot punk” – ou seja, uma banda punk que (note o nome do grupo) tem a maconha como um dos principais assuntos. No álbum Pizza que mata, a erva convive com temas existenciais: sonhos destruídos, o caos nosso de cada dia nas grandes cidades, lembranças dos dias de luta. E convive também com um sarcasmo que surge até na canábica Tempo verde, punk épico que comemora um futuro dia da descriminalização da maconha, com versos como “nessa noite dançaremos em cima de suas leis / tempo verde, vai chegar / não há nada que você possa fazer”.
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Mais zoações surgem em faixas como O Brasil não vai para a Copa e Morte pela pizza, unidas a protestos e amarguras em faixas como Denny disse não, Todos os relógios estão errados e Ladeira da alma. Musicalmente, o Bong Brigade tem muito de bandas como Ramones, Angelic Upstarts e até os brasileiros Inocentes, mas inserem influências de hardcore, punk 77 no estilo do Damned (Joe não falha) e, em algumas faixas, som garageiro com influências 60’s (Todos os relógios… e Dias difíceis).
Em meio aos 22 minutos do disco (com onze faixas, curto e grosso), encontra-se ainda um hino punk legítimo, Turba de 93 (“o poder do refrão / de uma bela canção / daquelas que derrubam reis / e o céu se abriu / num agosto frio / nunca mais outra vez”). E no final, tem Fantin’, tecnopunk com programação de bateria, teclados e pinta de Billy Idol, marcando um diferencial no som do álbum.
Nota: 8,5
Gravadora: Maxilar Music
Lançamento: 1 de abril de 2025
Crítica
Ouvimos: Trema¨, “M”

Projeto do guitarrista e produtor musical Lucas Lippaus, o Trema¨ faz krautpop – na real, pós-punk e música eletrônica influenciados pela vibe maníaca do krautrock. Mas existem outras coisas na receita de M, EP do Trema¨. Garantia é synthpop com ecos de New Order (o baixo faz lembrar o de Peter Hook) e Velvet Underground (as guitarras evocam o samba-de-gringo European son). Meu mundo, marcado por voz feminina distorcida e uso de pandeiro, tem efeitos de som, synth e bateria eletrônica soando como um Kraftwek mais distorcido.
Um encontro entre trip hop e synthpop oitentista acontece na sexy e enevoada Casa vazia, marcada pela voz de Persie. Já Ábua, no final, é uma espécie de bossa kraut, com cama viajante de teclados. Além de Persie, M tem participações de Siso, Elson Barbosa (Herod), Azeite de Leos (Herod, Testemolde), Bart Silva (Baleia Mutante), Débora Salomão (Gran Tormenta). O EP do Trema¨ teve também uma participação afetiva, que é a filha de Lucas, Marina – o disco foi feito a partir de um desenho dela, e o material foi igualmente inspirado em Marina.
Nota: 8
Gravadora: Independente
Lançamento: 17 de março de 2025.
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