Cinema
Myra Breckinridge, o filme que todo mundo odiou

Nem sabemos se a fonte é fidedigna, mas de acordo com o livro Law’s moving image, coletânea de textos sobre cinema organizados por Leslie Moran, Elena Loizidou, Ian Christie e Emma Sandon, rola todo um culto hoje em dia em relação à comédia Myra Breckinridge, dirigida pelo cineasta e ex-cantor pop Michael Sarne em 1970, e baseada num romance de mesmo nome do escritor Gore Vidal. O culto veio porque o filme foi lançado em DVD na década passada com algumas modificações (poucas) o suficiente para tornar seu final um pouco mais fácil de entender para os espectadores.
De qualquer jeito, lá vai: a história dá conta de que Myra Breckinridge – que marcou a estreia de Tom Selleck e Farrah Fawcett, e trouxe de volta Mae West, sumida das telonas desde 1943 – é um dos piores filmes já feitos no mundo. Logo que foi lançado, alguns atores já estavam arrependidos de terem se envolvido com o projeto. Críticos receberam a produção com frases como “é uma indesculpável pilha de bosta”, “é um insulto à inteligência, uma afronta à sensibilidade e uma abominação aos olhos”. Gore se arrependeu de ter liberado a história para o filme e chegou a culpar o fracasso do filme pelo fato de seu livro ter saído de catálogo e desaparecido.
Myra tinha uma história até bem corajosa e original para 1970. Contava a história de uma mulher trans (a Myra do título, interpretada por Raquel Welch) que, ao nascer, foi registrada como Myron. Após a mudança de gênero, Myra começou a se passar por viúva de Myron, e armou para conseguir metade da sociedade da escola de atuação de um tio (Buck Loner, interpretado por John Huston), alegando que era um desejo do falecido marido.
O tio, que nunca tinha ouvido falar de Myra na vida, dá a ela um emprego de professora na escola, mas começa a investigar a veracidade das histórias contadas por ela. No desenrolar da trama, Myra passa por um monte de situações mais absurdas do que necessariamente satíricas ou engraçadas, até ser (você duvidava?) desmascarada pelo tio. Até esse momento chegar, mantém o ideal de reviver a era de ouro de Hollywood, falar sobre “dominação feminina” aos alunos da tal escola de atuação e desconstruir o macho setentista americano.
Na época, Myra Breckinridge provocou verdadeiro ódio na crítica por alguns motivos muito básicos. Quase todo mundo achou o filme apelativo demais para uma produção hollywoodiana. Myra fica interessadíssima pelo casal formado por Rusty e Mary Ann (Roger Herren e a estreante Farrah Fawcett, respectivamente), que passa a assediar. Até que faz um exame físico em Rusty, amarra o rapaz numa maca e… o estupra com um cintaralho. A cena, sob qualquer ponto de vista, era extremamente grotesca. Não faltou quem reclamasse que tudo o que o romance de Vidal mostrava com charme, era tão explícito no filme que dava tédio e irritação.
Outro detalhe que fez muita gente espumar de raiva é que Sarne, que teve total controle do processo (mais até do que muita gente gostaria), fez a limpa nos arquivos da 20th Century Fox e usou vários trechos de filmes antigos. Até aí, sem problemas, mas eles aparecem (de fato) completamente ao acaso ao longo da produção, incluindo cenas de produções como o infantil Heidi, com Shirley Temple (1937). Era um recurso ultrapop, usado para pontuar algumas imagens bizarras do filme, mas não deu nada certo e choveram processos em cima de todo mundo.
Myra era a estreia no cinema americano do britânico Sarne, que estava com a moral alta graças ao sucesso do drama Joanna, de 1968, feito na Inglaterra. A história conta que os métodos dele deram no saco de Hollywood: o diretor deixava a equipe esperando para ficar “pensando”, filmava horas e horas de cenas que mal seriam aproveitadas e não entendia o detalhe básico de que latas de filme custavam (muito) dinheiro. Não faltaram relatos de atores reclamando que Sarne provocava brigas no set.
Mais: um site chamado We Are Cult explica que Myra correu o risco de inovar mais ainda e colocar uma atriz realmente trans no papel título. Era ninguém menos que Candy Darling, talento lançado por Andy Warhol em filmes como Trash. No livro POPismo – Os anos 60 segundo Warhol, o esteta pop explica que Candy soube do filme, escreveu várias cartas para a produção pedindo um papel, não foi chamada e ficou decepcionadíssima. “Ela escrevia falando que tinha vivido uma vida completa de Myra e que sabia ainda mais sobre filmes dos anos 1940 do que Gore Vidal. Era verdade. E eles deram o papel para Raquel Welch”, escreveu.
No Brasil, Myra passou como Homem e mulher até certo ponto e provocou certo barulho, ate pelo nome de Michael Sarne – já que Joanna passou nos cinemas daqui e tinha ganhado culto. Um detalhe curioso a respeito de Sarne é que ele passou um tempo no Brasil depois de Myra e chegou a dirigir, em 1975, um filme chamado Intimidade, com Vera Fischer e Perry Salles, que eram então um casal.
Num papo com o Jornal do Brasil em 30 de setembro de 1975, Vera contou que apostou tudo no filme e na direção de Sarne: vendeu apartamento e deixou de “frequentar lugares caros”, com a ideia de sair dos filmes apelativos e mostrar “a verdadeira Vera”. O filme não está no YouTube. No site de Sarne, em sua biografia, a passagem pelo Brasil é apenas mencionada de leve, e Myra Breckinridge é esquecido.
Se você quiser ter a chance de odiar (ou amar, ou ter qualquer tipo de opinião sobre) Myra Breckinridge, tem uma notícia boa para você: alguém jogou o filme inteirinho no YouTube, dublado em espanhol. Pega aí.
Se você chegou até aqui, pega aí a bela Raquel Welch dividindo o palco do Dick Cavett Show com ninguém menos que Janis Joplin e falando sobre Myra. Janis explica que achou o filme “agitado demais” e Raquel conta sobre quando foi assistir à película com o marido.
Cinema
Ouvimos: Raveonettes – “PE’AHI II”

RESENHA: Os Raveonettes mergulham de vez no lo-fi e shoegaze em PE’AHI II, disco que soa mais próximo de uma transição do que de uma realização.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
Raveonettes, aquela dupla que misturava distorções a la Jesus and Mary Chain, clima melodioso herdado dos anos 1950 e estética do filme Juventude transviada, lembra? Pois bem, eles guiaram o timão de vez para gêneros como shoegaze e lo-fi. Não é algo estranho ao som deles, vale falar. Climas “serra elétrica” sempre tiveram lugar nos discos de Sune Rose Wagner e Sharin Foo. PE’AHI II, novo disco, é a continuação de PE’AHI, disco de 2014 que já promovia suas invasões nessas áreas. Sem falar que 2016 atomized – disco anterior de inéditas da banda, 2017 – surfava essa onda.
Só que o Raveonettes de 2025 chega a soar experimental, mesmo quando abre o novo disco com uma balada nostálgica e melancólica, Strange. E na sequência, o ruído programado de Blackest soa como uma curiosa mescla de blackgaze e pop de câmara. Já Killer é uma nuvem de microfonias que lembra bandas como Drop Nineteens, só que com mais cuidado na melodia.
Entre as outras curiosidades do disco, estão o noise rock programado de Dissonant, a viagem sonora e distorcida de Sunday school e a onda sonora de microfonia (alternada com toques dream pop) de Ulrikke. O resultado final deixa um ar de EP, de mixtape, mais do que de um álbum completo e realizado dos Raveonettes. Ainda que PE’AHI II tenha momentos ótimos, soa mais como uma transição para o que vem por aí.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 7,5
Gravadora: Beat Dies Records
Lançamento: 25 de abril de 2025
- Ouvimos: The Raveonettes – Sing…
- Ouvimos: Drop Nineteens – 1991
- Ouvimos: Drop Nineteens – Hard light
Cinema
Urgente!: Cinema pop – “Onda nova” de volta, Milton na telona

Por muito tempo, Onda nova (1983), filme dirigido por Ícaro Martins e José Antonio Garcia – e censurado pelo governo militar –, foi jogado no balaio das pornochanchadas e produções de sacanagem.
Fácil entender o motivo: recheado de cenas de sexo e nudez, o longa funciona como uma espécie de Malhação Múltipla Escolha subversivo, acompanhando o dia a dia de uma turma jovem e nada comportada – o Gayvotas Futebol Clube, time de futebol formado só por garotas, e que promovia eventos bem avançadinhos, como o jogo entre mulheres e homens vestidos de mulher. Por acaso, Onda nova foi financiado por uma produtora da Boca do Lixo (meca da pornochanchada paulistana) e acabou atropelado pela nova onda (sem trocadilho) de filmes extremamente explícitos.
O elenco é um espetáculo à parte. Além de Carla Camuratti, Tânia Alves, Vera Zimmermann e Regina Casé, aparecem figuras como Osmar Santos, Casagrande e até Caetano Veloso – que protagoniza uma cena soft porn tão bizarra quanto hilária. Durante anos, o filme sobreviveu em sessões televisivas da madrugada, mas agora ressurge restaurado e remasterizado em 4K, estreando pela primeira vez no circuito comercial brasileiro nesta quinta-feira (27).
Meu conselho? Esqueça tudo o que você já ouviu sobre Onda nova (ou qualquer lembrança de sessões anteriores). Entre de cabeça nessa comédia pop carregada de referências roqueiras da época, um cruzamento entre provocação punk e ressaca hippie. O filme abre com Carla Camuratti e Vera Zimmermann empunhando sprays de tinta para pixar os créditos, mostra Tânia Alves cantando na noite com visual sadomasoquista, segue com momentos dignos de um musical glam – cortesia da cantora Cida Moreyra, que brilha em várias cenas – e trata com surpreendente modernidade temas como maconha, cultura queer, relacionamentos sáficos, mulheres no poder, amores fluidos e, claro, futebol feminino.
Se fosse um disco, Onda nova seria daqueles para ouvir no volume máximo, prestando atenção em cada detalhe e referência. A trilha sonora passeia entre o boogie oitentista e o synthpop, com faixas de Michael Jackson e Rita Lee brotando em alguns momentos. E o que já era provocação nos anos 1980 agora ressurge como registro de uma juventude que chutava o balde sem medo. Vá assistir correndo.
*****
Já Milton Bituca Nascimento, de Flavia Moraes, que estreou na última semana, segue outro caminho: o da reverência, mesmo que seja um filme documental. Durante dois anos, Flavia seguiu Milton de perto e produziu um retrato que, mais do que um relato biográfico, é uma celebração. E uma hagiografia, aquela coisa das produções que parecem falar de santos encarnados.
A narração de Fernanda Montenegro dá um tom solene – e, enfim, logo no começo, fica a impressão de um enorme comercial narrado por ela, como os daquele famoso banco que não patrocina o Pop Fantasma. Aos poucos, vemos cenas da última turnê, reações de fãs, amigos contando histórias. Marcio Borges lê matérias do New York Times sobre Milton, para ele. Wagner Tiso chora. Quincy Jones sorri ao falar dele. Mano Brown solta uma pérola: Milton o ensinou a escutar. E Chico Buarque assiste ao famigerado momento do programa Chico & Caetano em que se emociona ao vê-lo cantar O que será – um vídeo que virou meme recentemente.
Isso tudo é bastante emocionante, assim como as cenas em que a letra da canção Morro velho é recitada por Djavan, Criolo e Mano Brown – reforçando a carga revolucionária da música, que usava a imagem das antigas fazendas mineiras para falar de racismo e capitalismo. Mas, no fim, o que fica de Milton Bituca Nascimento é a certeza de que Milton precisava ser menos mitificado e mais contado em detalhes. Vale ver, e a música dele é mito por si só, mas a sensação é a de que faltou algo.
Por acaso, recentemente, Luiz Melodia – No coração do Brasil, de Alessandra Dorgan, investiu fundo em imagens raras do cantor, em que a história é contada através da música, sem nenhum detalhe do tipo “quem produziu o disco tal”. Mas o homem Luiz Melodia está ali, exposto em entrevistas, músicas, escolhas pessoais e atitudes no palco e fora dele. Quem não viu, veja correndo – caso ainda esteja em cartaz.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.
Cinema
Urgente!: Filme “Máquina do tempo” leva a música de Bowie e Dylan para a Segunda Guerra

Descobertas de antigos rolos de filme, assim como cartas nunca enviadas e jamais lidas, costumam render bons filmes e livros — ou, pelo menos, são um ótimo ponto de partida. É essa premissa que guia Máquina do tempo (Lola, no título original), estreia do irlandês Andrew Legge na direção. A ficção científica, ambientada em 1941, acompanha as irmãs órfãs Martha (Stefanie Martini) e Thomasina (Emma Appleton), e chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (13), dois anos após sua realização.
As duas criam uma máquina do tempo — a Lola do título original, batizada em homenagem à mãe — capaz de interceptar imagens do futuro. O material que elas conseguem captar é todo registrado em 16mm por uma câmera Bolex, dando origem aos tais rolos de filme.
E, bom, rolo mesmo (no sentido mais problemático da palavra) começa quando o exército britânico, em plena Segunda Guerra Mundial, descobre a invenção e passa a usá-la contra as tropas alemãs. A princípio, a estratégia funciona, mas logo começa a sair do controle. As manipulações temporais geram consequências inesperadas, enquanto as personalidades das irmãs vão se revelando e causando conflitos.
Com apenas 80 minutos de duração e filmado em 16 mm (com lentes originais dos anos 1930!), Máquina do tempo pode soar confuso em algumas passagens. Não apenas pelas idas e vindas temporais, mas também pelo visual em preto e branco, valorizando sombras e vozes que quase se tornam personagens da história. Em alguns momentos, é um filme que exige atenção.
O longa também tem apelo para quem gosta de cruzar cultura pop com história. Martha e Thomasina ficam fascinadas ao ver David Bowie cantando Space oddity (o clipe brota na máquina delas), tornam-se fãs de Bob Dylan, adiantam a subcultura mod em alguns anos (visualmente, inclusive) e coadjuvam um arranjo de big band para o futuro hit You really got me, dos Kinks, que elas também conseguem “ouvir” na máquina. Um detalhe curioso: a própria Emma Appleton operou a câmera em cenas em que sua personagem Thomasina se filma (“para deixar as linhas dos olhos perfeitas”, segundo revelou o diretor ao site Hotpress).
Ainda que a cultura pop esteja presente, Máquina do tempo é, acima de tudo, um exercício de futurologia convincente, explorando uma futura escalada do fascismo na Inglaterra — que, no filme, chega até mesmo à música, com a criação de um popstar fascista.
A ideia faz sentido e nem é muito distante do que aconteceu de verdade: punks e pré-punks usavam suásticas para chocar os outros, Adolf Hitler quase figurou na capa de Sgt. Pepper’s, dos Beatles, Mick Jagger não se importou de ser fotografado pela “cineasta de Hitler” Leni Riefenstahl, artistas como Lou Reed e Iggy Pop registraram observações racistas em suas letras, e o próprio Bowie teve um flerte pra lá de mal explicado com a estética nazista. Mas o que rola em Máquina do tempo é bem na linha do “se vocês soubessem o que vai acontecer, ficariam enojados”. Pode se preparar.
-
Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 8: Setealém
-
Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 2: Teletubbies
-
Notícias7 anos ago
Saiba como foi a Feira da Foda, em Portugal
-
Cinema8 anos ago
Will Reeve: o filho de Christopher Reeve é o super-herói de muita gente
-
Videos7 anos ago
Um médico tá ensinando como rejuvenescer dez anos
-
Cultura Pop8 anos ago
Barra pesada: treze fatos sobre Sid Vicious
-
Cultura Pop6 anos ago
Aquela vez em que Wagner Montes sofreu um acidente de triciclo e ganhou homenagem
-
Cultura Pop7 anos ago
Fórum da Ele Ela: afinal aquilo era verdade ou mentira?