Cultura Pop
A enciclopédia mais bizarra do mundo
Entre 1976 e 1978, o designer e escultor italiano Luigi Serafini levou, nas suas próprias palavras, uma vida de monge, ou de eremita. Não saía de casa, não falava com ninguém, não fazia nenhum tipo de trabalho (enfim, também vivia sem grana nenhuma). Sua única ocupação era fazer desenhos fantasiosos e ricos em detalhes, e acompanhá-los com uma caligrafia bizarra que ninguém conseguiria entender. Ele passava a maior parte do tempo isolado e, simultaneamente, vivia no Centro de Roma, um “lugar fantástico, em que eu via (o cineasta) Federico Fellini passando na minha porta”. No fim da aventura, tinha terminada a enciclopédia mais estranha do mundo, o “Codex Seraphinianus“, que lançou em 1981 em formato luxuoso, repleto de imagens cuidadosamente trabalhadas, trazendo formas de vida animais e vegetais que ele mesmo havia criado e desenhado em detalhes, além de vários objetos, diagramas estranhos, paisagens fantasiosas e várias bizarrices.
Tudo era descrito em uma linguagem que… bom, na verdade não havia descrição nem linguagem. Luigi, que por vários anos não deu entrevista nenhuma sobre o conteúdo do livro (abriu o verbo nesse papo aqui) escreveu tudo numa caligrafia toda própria, na qual não dá para identificar idioma nenhum, embora muitos linguistas e curiosos tivessem tentado decifrar aquilo de alguma forma. A ideia dele era justamente aumentar o clima de mistério para que mais pessoas tentassem descobrir o que havia por trás daquilo. Nomes como Umberto Eco e Ítalo Calvino adoravam o livro – este último chegou a prefaciar uma das reedições.
O próprio criador do livro e do universo que há em torno dele prefere não fechar nenhuma definição. “Você pode chamar o Codex de uma espécie de blog, uma possibilidade de compartilhar o seu mundo com as pessoas. Uma rede era minha idéia originalmente – na minha época a única maneira de fazer isso era publicar um livro. O livro apela à imaginação. O texto o estimula. A coisa toda fica cheia de processos e fenômenos. Eu queria ser ouvido e compreendido, mas eu queria uma compreensão sem o texto, uma compreensão mais profunda e pessoal”, contou no tal papo, afirmando também que “o codex não era um projeto no sentido convencional da palavra. Para mim era uma necessidade – eu só tinha que fazer isso. Você pode chamá-lo de inspiração, mas eu prefiro compará-lo a um estado de transe. Quando você está em transe, não importa quanto tempo você gasta fazendo um trabalho – você se sente envolvido e não pode parar até que você termine. Você está obcecado com isso, algo vive dentro de você”.
Uma das coisas que ajudou Luigi no seu trabalho, diz ele, é que na época não tinha internet. Mas havia uma espécie de rede que conectava as pessoas – conclusão a que ele chegou quando “viajava de carona pelos EUA, assim como em ‘On the road’, de Jack Kerouac” no começo dos anos 1970. “Eu pensei sobre as coisas. Eu tirei conclusões, falei histórias, e ouvi as histórias dos outros, eu estava mudando a mim mesmo e as pessoas ao meu redor. Só depois de terminar o livro percebi o quanto isso me influenciou – esse modelo de rede, essa estrutura”, disse. Detalhe: para ele, o livro só poderia ser traduzido em outra linguagem imaginária!
O trampo em seu “Codex Seraphinianus” levou Luigi a trabalhar como ilustrador de livros e a, em 1984, lançar a “Pulcinellopedia”, só com ilustrações baseadas na máscara da Pulcinella, personagem do teatro cômico italiano. Você pode (bom, “pode” em termos, já que o correio tá em greve) comprar o “Codex” aqui ou ler tudo aqui.
Cultura Pop
No nosso podcast, a época em que o Killing Joke revolucionou o pós-punk
Drogas, caos, peso, ocultismo, iluminação espiritual e paixão pela violência e pelo proibido marcaram a carreira do Killing Joke – e marcam até hoje, já que a banda ainda existe. Do começo até meados dos anos 1980, Jaz Coleman, Youth (e depois Paul Raven), Paul Ferguson e o recém-falecido Geordie inseriram mais e mais perigo num estilo musical, o pós-punk, marcado pela insinuação e pela exploração de demônios interiores.
No nosso podcast, o Pop Fantasma Documento, o assunto de hoje é a melhor fase do Killing Joke, uma das bandas mais misteriosas da história do rock, responsável por aproximar estilos como pós-punk, gótico e heavy metal. Terminamos no disco Brighter than a thousand suns (1986), mas a história do grupo ainda inclui muitos outros discos – ouça tudo.
Século 21 no podcast: Girls In Synthesis e Plastique Noir.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Ramones, “Halfway to sanity” (relançamento)
Que ironia: um disco nota 6 dos Ramones causa crises de saudades e revisionismo histórico e… pelo menos aqui no Pop Fantasma, aumenta de cotação. Halfway to sanity (1987) volta agora às lojas brasileiras (as online e as que resistem), e no formato CD. Foi o último disco gravado com Richie Ramone na bateria, pouco antes do grupo fazer uma tentativa de colocar o ex-Blondie Clem Burke para substituí-lo.
Dizer que “o disco tal dos Ramones foi marcado por brigas durante a gravação” é chover no molhado, ainda mais em se tratando de uma banda que tinha o intransigente Johnny Ramone como guitarrista. Halfway, décimo álbum da banda, lançado originalmente em 15 de setembro de 1987, por sua vez, é um caso à parte: a porrada comeu antes, durante e depois. Para começar, em janeiro daquele ano, o grupo baixou em São Paulo para três shows – o primeiro deles terminou em briga generalizada provocada por skinheads.
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- Temos episódios do nosso podcast sobre Ramones e Blondie.
No meio das gravações, Joey e Johnny Ramone, inimigos íntimos, não se entendiam. O produtor Daniel Rey tinha problemas de comunicação com boa parte da banda. Dee Dee Ramone (ainda no baixo do grupo), passava boa parte do tempo doidão, não conseguia se comunicar com ninguém e – dizem – teve suas partes de baixo tocadas por Rey. Pessoas que lidavam com os Ramones de perto dizem que a banda já estava de saco cheio de trabalhar feito louca, gravar um disco por ano e não ser reconhecida, com direito a amigos da onça perguntando a eles “quando a banda iria estourar”.
E aí que Halfway soa insano, embora sob controle. Curtíssimo (12 músicas em 30 minutos e uns quebrados), o álbum traz os Ramones fazendo algumas incursões pelo hard rock e pelo hardcore, com direito a vocais berradíssimos de Joey Ramone em faixas como I know better now, a agitada Weasel face (na qual a voz do cantor chega a lembrar a de Alice Cooper) e o skate punk legítimo I’m not Jesus. O grupo chega perto do pós-punk gótico em Garden of serenity, adere ao som tribal na onda do Public Image Ltd em Worm man, e soa revivalista na balada Bye bye baby (com cara de canção de girl group, e escrita, claro, por Joey) e no rock vintage Go lil Camaro go, marcado por uma apagada participação de Debbie Harry.
1987 foi um ano de três bateristas para os Ramones: com Halfway em curso, Richie saiu brigado da banda, e deu lugar para Clem Burke – jornalistas lançaram a piada de que ele adotaria o nome Clemmy Ramone, mas ficou mesmo como Elvis Ramone. Não deu certo e após dois shows confusos, Marky Ramone, que estava afastado da banda desde 1983, retornou. Hoje, vale a redescoberta.
Nota: 7,5
Gravadora: ForMusic (no Brasil)
Crítica
Ouvimos: Nick Lowe e Los Straitjackets, “Indoor safari”
- Indoor safari é o novo disco do cantor, compositor e produtor britânico Nick Lowe. Um artista cuja carreira vem desde meados dos anos 1960, mas que se notabilizou a partir dos anos 1970, primeiro como integrante das bandas Brinsley Schwarz e Rockpile, depois como artista solo lançado por gravadoras como a indie Stiff e a indie-major Radar.
- O disco é uma compilação de gravações feitas ao longo de dez anos por Lowe com a banda retrô-lounge-surf Los Straitjackets, que sempre se apresenta disfarçada por máscaras de wrestling. O cantor e o grupo já haviam lançado um álbum ao vivo em 2016.
- Indoor safari sai pelo selo Yep Roc, iniciado em 1997 e cujo elenco já teve de Fountain Of Wayne a Bob Mould e Gang Of Four.
Figurinha indispensável dos anos 1970, brilhante como cantor, compositor e produtor, rei da transição entre pub rock, punk e new wave (seu som passa pelos três estilos)… Nick Lowe é aquele cara que provavelmente, no Brasil, muita gente conhece sem conhecer. Volta e meia ele é citado por aí como nomão influente, artistas como Elvis Costello já trabalharam com ele, e sua discografia, além de já ser bem extensa, inclui músicas que volta e meia rolam no rádio até mesmo no Brasil, como So it goes, Crackin up e Cruel to be kind.
Drogas e problemas pessoais deixaram a história de Nick mais conturbada, mas ele nunca parou. De qualquer jeito, a carreira discográfica de Lowe meio que ficou no para-e-anda depois de 2013, quando ele lançou Quality street, disco de Natal. Em compensação, ele saiu em turnê para divulgar o álbum ao lado de uma banda chamada Los Straitjackets, uma banda da mesma gravadora que ele (Yep Roc), dedicada a rock extremamente vintage – surf music, rockabilly e coisas próximas do bubblegum – com cada integrante usando uma máscara de wrestling.
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Isso aí era Lowe, que já foi visto como um revisionista futurista, voltando-se para um som clássico de rock, ao lado de uma galera bastante animada. Tão animada que o enrosco com a banda rendeu turnê e alguns singles. E agora rende uma espécie de coletânea expandida, Indoor safari, com os compactinhos que ele vem gravando ao lado dos Straitjackets, mais três músicas inéditas. Uma das novas canções, a surfística Went to a party, surge na abertura soando como o Who ou os Kinks dando vida nova a uma canção dos anos 1950 – ou alguma música perdida de bandas como Kingsmen ou Rivingstones.
Indoor safari não é um disco “novo”, mas isso não o torna menos valoroso. Os Straitjackets e Lowe fazem um disco de rock quase 100% autoral que poderia ter saído em 1961 ou 1962, com músicas que, se tivessem sido feitas naquela época, estariam no set list do show dos Beatles em Hamburgo, ou entre as releituras dos primeiros discos deles. De qualquer jeito, há dois covers, A quiet place, de um grupo chamado Garnett Mimms & The Enchanters, original de 1964; e Raincoat in the river, gravada originalmente por Ricky Nelson.
O clima lounge prometido pela foto da capa surge amplificado em músicas como Love starvation, a tristezinha rocker de Crying inside, a maravilha meio Motown meio Beatles Jet pac boomerang (encerrada com uma citação de Please please me, dos quatro de Liverpool), a selvageria rocker de Tokyo bay e a bateção irresistível de violão e guitarra de Trombone. Cada riff de guitarra soa como anúncio de duelo, numa onda meio surf rock de faroeste. Ouça no volume máximo.
Nota: 9
Gravadora: Yep Roc
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