Crítica
Ouvimos: Aygam, “Aygam” (EP)
- Aygam é a estreia da banda paulistana de mesmo nome, formada por Gabú (voz e guitarra), Bruno Ras (voz e baixo), Satiê (backing vocal e guitarra) e Omar (bateria). O disco, de quatro faixas, foi gravado na garagem de Gabú, com o auxílio de um edital da Secretaria de Cultura de São Paulo para viabilizar o desenvolvimento cultural nas periferias da cidade.
- “Todas as músicas têm um tom de revolta e nossas composições evidenciam essa postura combativa, cada uma à sua maneira”, diz Bruno Ras.
A banda paulistana Aygam é uma curiosidade que vale parar pra dar uma ouvida. O primeiro EP do quarteto apresenta montes de influências de grupos como Nação Zumbi, O Rappa e até Charlie Brown Jr. Só que tudo por um viés moderno e diferente, já que até referências de dream pop surgem cruzadas com elementos de hip hop nas quatro faixas.
O imaginário do grupo une ancestralidades, dia a dia da periferia de SP e histórias de rua, numa fluidez que traz boas frases nas letras, vocais suingados e sonoridade que se aproxima do novo indie rock feito em São Paulo e no Rio. É o que surge, por exemplo, na faixa inicial, Crocodilos (“agem sempre para te ver na miséria/e na miséria não vão me achar”). E numa curiosa união de soul e shoegaze, Vida cobra II, que soa como um My Bloody Valentine sem paredões de guitarra, e com musicalidade herdada simultaneamente de Cassiano e The Smiths.
Iniciando sua história fonográfica, o Aygam precisava, em alguns momentos, apenas de mais acertos nos vocais e na qualidade de gravação (especificamente em Eucaliptos, boa música perdida no som de demo). Muito embora a disposição para experimentar seja uma boa marca do disco, e tenha gerado o tom “1,2,3 e valendo” da psicodélica e setentista Depois do papo reto só deboche, gravada ao vivo, e que encerra o EP. Boa estreia.
Gravadora: Independente/Tratore
Nota: 7,5
Crítica
Ouvimos: Chico Chico, “Estopim”
- Estopim é o segundo álbum solo de Chico Chico, produzido por Pedro Fonseca e Rafael Ramos. É o segundo lançamento do cantor pela Deck – em 2023 saiu o EP Espelho. Nomes já conhecidos dos álbuns dele, como Julia Vargas, Tui Lana e João Mantuano, participam do álbum.
- Pedro, que vem trabalhando com o cantor desde 2023, “entendeu bem essa dualidade das composições, tanto das imagens rurais quanto das urbanas que permeiam meu trabalho e se fazem presente neste álbum”, diz Chico.
- Nomes como Marlon Sette (trombone), Walter Villaça (guitarra e violão de aço), Thiago da Serrinha (percussão) e Jorge Continentino (sax barítono, flauta e pife) estão na lista de músicos.
Segundo álbum individual de uma carreira bastante voltada a registros em dupla ou grupo, Estopim é o disco mais sistemático (vamos dizer assim) que Chico Chico conseguiu fazer até o momento. E ele conseguiu isso numa gravadora de porte – a Deck -, sem abdicar da identidade própria que havia em todos os lançamentos anteriores. No novo álbum, a voz dele, mais até do que lembrar a da mãe Cássia Eller, soa como vários anos de história da MPB pós-tropicalismo condensados numa pessoa só – numa onda musical que abarca Elis Regina, Luiz Melodia, Gilberto Gil e até Oswaldo Montenegro.
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Nem parece, mas a carreira discográfica de Chico Chico já está prestes a completar dez anos – sua estreia 2×0 Vargem Alta, que era na verdade a estreia epônima de uma banda (formada por ele e vários amigos), saiu em outubro de 2015. A sonoridade quase blues e predominantemente acústica do disco ainda dá as caras em Estopim mas foi sendo acrescida de outros elementos, cabendo o soul forte de Parado no vento (na qual o registro vocal do cantor lembra o de Cazuza), o rock nordestino à moda de Alceu Valença e Raul Seixas em Toada, um som mais pop e suingado em Terra à vista (que por sinal foi o primeiro single do álbum) e uma MPB bem próxima da sonoridade pop setentista em Vai. Além do frevo de Moda do chapéu e do pop com sonoridades arábicas de Acorda Zé.
Quem curtiu músicas folk e brasileiras de Chico como Ribanceira (cujo potencial levou-a à trilha do remake da novela Pantanal) vai ficar feliz com o forró folk ágil de Altiva, gravada com Juliana Linhares, e com a interiorana Urminino, com participação (infelizmente pouco audível) de Julia Vargas. De novidade, tem a experimental Abismo, uma canção cujo arranjo é composto de várias vozes sobrepostas.
Nota: 8,5
Gravadora: Deck.
Crítica
Ouvimos: Zeal & Ardor, “Greif”
- Greif é o quarto álbum da banda novaiorquina Zeal & Ardor, projeto iniciado pelo músico Manuel Gagneux, inicialmente com a ideia de misturar black metal, soul e spirituals. “O cristianismo foi forçado para escravos afro-americanos. Eu sei que é a sua própria música, Jesus e assim por diante. Então nos perguntamos: como seria se os escravos americanos se rebelassem em suas próprias músicas? É assim que esperamos que funcione”, explicou Manuel em entrevista ao site brasileiro Blog N Roll.
- Manuel já teve um grupo de pop de câmara, o Birdmask, e conhece nomes da música brasileira, como Elis Regina, Gilberto Gil e (evidentemente) o Sepultura. Aliás, se você nunca tinha escutado falar do Zeal & Ardor, para o seu governo, eles já vieram ao Brasil e fizeram um show no Sesc Pompeia (São Paulo), em 2019 – rolou no Festival Dogma, dedicado à música de vanguarda.
O Zeal & Ardor é mais uma excelente ideia do que uma banda genial, musicalmente falando. Quem ouvir esse Greif sem ler sobre o grupo, talvez se sinta ouvindo um som que que lembra bastante uma mescla de Soundgarden, Nine Inch Nails, Danzig e até Depeche Mode. Parece em alguns momentos que, justamente pelo fato de grupos de som pesado terem passado décadas roubando elementos de spiritual, soul e blues, esse tipo de fusão necessita hoje em dia de doses mais reforçadas em alguns lados. Ou de algumas diferenciações para que o resultado final não se perca. Injusto ao extremo, inclusive.
A ideia de juntar imaginário satânico, black metal, hard rock, blues e soul desceu melhor nos três primeiros álbuns do grupo. Não custa lembrar que Manuel Gagneux, o músico suíço-americano que criou a banda, tem uma frase ótima para definir a ideologia do Zeal & Ardor: “e se os escravos americanos tivessem abraçado Satanás em vez de Jesus?”. Vale citar igualmente que, para quem curte som pesado com filigranas de experimentação musical, Devil is fine, a estreia de 2016, é recomendadíssima.
Greif, quarto disco da banda, traz mais influências de rock pesado dos anos 1990 e 2000, e de design sonoro eletrônico, do que de black metal. O disco tem de ótimo o metal funk distorcido de Thrill, o spiritual Go home my friend, o ritmo misterioso e sinuoso de Disease (fazendo lembrar um Marilyn Manson bem menos psycho). E o excelente metal construído com argamassa synth pop de Kilonova.
Já Are you the only one now, por exemplo, soa como um candidato a hino do grupo, por causa de seu refrão cantarolável – para quem já ouve som pesado há anos, parece um “já ouvi isso antes”, mas deve funcionar com o público deles. E expõe que, pelo menos em metade do álbum novo, o Zeal & Ardor ganharia bastante se tivesse criado um repertório marcado por canções com climas mais variados, já que rola de fato aquela má e velha sensação de que tudo é bastante parecido do começo ao fim do álbum.
Nota: 6
Gravadora: Independente
Crítica
Ouvimos: Childish Gambino, “Bando Stone and The New World”
- Bando Stone and The New World é o quinto e último álbum de Childish Gambino – codinome musical do ator Donald Glover. É também a trilha sonora do filme de mesmo nome, que está ainda para sair em circuito (apesar de já ter tido algumas datas de exibição). Mais de uma dezena de nomes participaram da produção, incluindo o próprio Donald, além do DJ Dahi, do maestro Ludwin Göransson, do produtor britânico The Arcade e até da banda Khruangbin.
- No filme, Glover interpreta Bando Stone, um cantor que penetra num mundo pós-apocalíptico. Ele se junta a uma mulher e a seu filho para lutar contra criaturas pré-históricas e tentar escapar de um fenômeno estranho que parece deletar “pedaços” do mundo. Legend, filho de Donald, participa do disco e do filme.
- Num papo com o The New York Times, Glover justificou o abandono do apelido afirmando que as pessoas não consomem mais álbuns como antigamente, e que está cada vez mais difícil manter uma carreira de cantor com seus projetos de filme em andamento. “Não está sendo gratificante. Senti que não precisava mais fazer nada dessa forma”, diz.
Se você deu uma ouvida em Bando Stone and The New World e achou tudo confuso demais pra você, senta, relaxa e ouve de novo – principalmente arrume tempo para escutar todos os discos que o ator Donald Glover lançou sob seu pseudônimo musical. A despedida de seu codinome Childish Gambino aponta para vários lados sem recorrer ao ecletismo barato, e justamente por ser um disco repleto de imagens (afinal, trata-se de uma trilha sonora), dá para dizer que rola uma quase psicodelia ali.
Na onda de Bando Stone cabem r&b com herança de Stevie Wonder e Earth Wind and Fire (Survive, com participação de Chlöe), algo próximo do nu metal (Lithonia), bittersweet negro (Steps beach), um inesperado pop-emo (Running around), dance music pesada com sample de Smack my bitch up, do Prodigy (Go to be), indie pop (Real love), afrogospel (Can you feel me, com participação do filho de 8 anos, Legend), experimentações vocais de arrepiar (We are god). Tudo entremeado por diálogos do filme, num esquema que deve ser descortinado só quando Bando Stone finalmente entrar no circuito. Quem escutar todo o álbum sem saber do que se trata, vai ter a impressão de estar escutando uma playlist com vários artistas. Nem parece o mesmo artista fazendo todas as músicas, pra começar.
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Se tem alguma coisa amarrando Bando Stone é a disposição de Gambino para soar um pouco mais próximo dos desafios do pop alternativo do que do design sonoro comum do hip hop. Muito embora ele insira coisas legais no estilo, em faixas como o trap In the night e a pesada e sinuosa Yoshinoya, rimada sob uma base de percussão e samples que vai crescendo, até ganhar uma segunda parte ruidosa, com vocais graves e ágeis (dá para comparar com o brasileiro Black Alien) e batidão de funk vintage. No final, uma voz pergunta: “você nunca ouviu Chaka Khan? O que eles estão ensinando na sua escola?”. Dadvocate, por sua vez, é um folk com vocais ligeiramente rappeados, que estranhamente lembra Red Hot Chili Peppers (!).
O maestro e trilheiro Ludwig Göransson (que já havia colaborado com ele em This is America) e o saxofonista Kamasi Washington surgem dando ar soul-jazz e orquestral à melhor faixa do disco, No excuses – mais de sete minutos de música viajante, repleta de climas diferentes e com uma parte instrumental que ocupa boa parte da faixa. Se ficar assustado/assustada com a variedade musical de Bando Stone, vale até começar por essa música, ou pela participação do Khruangbin na bela Happy survival, música da qual Gambino não participa nem como co-autor.
Nota: 9
Gravadora: RCA
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