Crítica
Ouvimos: Guandu – “No-fi”

RESENHA: No-fi, disco do Guandu, mistura lo-fi surrealista, introspecção e efeitos inesperados. Shoegaze, punk, blues e psicodelia se cruzam em faixas imprevisíveis.
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Após um EP voltado ao slowcore, Planos em cima de planos (resenhado pela gente aqui), o Guandu segue acrescentando tinturas lo-fi à sua sonoridade. Ou No-fi (“sem fidelidade”?), como diz o título do primeiro álbum, gravado inteiramente em fita K7.
Em No-fi, o som do Guandu, na real, parece um lo-fi surrealista, em que tudo pode derreter e desabar a qualquer momento – seja nas letras, repletas de vibes introspectivas, seja nos arranjos repletos de alterações de velocidade, ruídos que surgem de repente, e efeitos. Otimista, gravada com participação de Marina Mole, e Amores fatais seguem nessa linha, ameaçando paredes de guitarra e explosões emocionais sem, no entanto, associarem-se a estilos como shoegaze ou emo. Ausência, repleta de medo, de tensão, e de vazio deixado por palavras nunca ditas, vem vindo de longe, e ganha espaço na frente do/da ouvinte.
Músicas como Mesa de bar, Confuso e Mais um dia (esta, também com Marina Mole nos vocais) são o ápice dessa proposta – têm guitarras em velocidade paralela, vocais ao contrário, climas entre o blues, o punk e a psicodelia, e a sensação de que ou você ou a banda podem estar vendo ou ouvindo coisas. Futebas, instrumental com uma narração de futebol em espanhol, soa como a trilha sonora de um dia em que você adormece à tarde, acorda sem saber que horas são e ouve o futebol no rádio do vizinho. Luz e vidro, outro instrumental, usa efeitos de teclado para reproduzir o brilho psicodelico do título.
- Ouvimos: Duo Chipa – Lugar distante
- Ouvimos: akaStefani e Elvi – Acabou a humanidade
- Ouvimos: Turnstile – Never enough
- Ouvimos: Slowdive – Everything is alive
Há algo de progressivo (ou “punkgressivo”) nos ritmos pouco usuais e nas texturas de Fadas. Bedroom foda-se abre lembrando o pré-chiptune dos Young Marble Giants, e segue como uma peça de guitarra e de eletrônica vertiginosa. De novo não, entre o emo e o shoegaze, conta uma história que cheira a Ritalin, pressões diárias e vontade de sumir (“de novo não, vou chapado pra escola / mais uma vez comprimidos na sua mente / tudo isso pra sustentar a gente”).
Tem ainda Morrer, shoegaze sombrio com vocais de trap, que vai ganhando beleza, forma e tranquilidade na sequência – e a curiosidade é que, só lá pela metade, você percebe que se trata de uma versão de Morrer, dos Ratos de Porão, só que alteradíssima. No-fi oscila entre o ruído e a surpresa, e une os dois.
Texto: Ricardo Schott.
Nota: 9
Gravadora: Feitio
Lançamento: 5 de junho de 2025
Crítica
Ouvimos: Pulp – “More”

RESENHA: Se o Pop Fantasma desse nota 20 para um álbum, seria para More, retorno elegante do Pulp, com Jarvis Cocker inspirado e um disco cheio de estilo, classe e surpresas.
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O Pop Fantasma só dá notas de 5 a 10 pros discos, indo de ruim (mas audível e checável) a transcendental. Discos que mereceriam nota de 0 a 4, honestamente, são ouvidos apenas até a faixa 4, se tanto – e dispensados. Pois bem, se houvesse uma nota 20 por aqui, seria dada ao retorno do Pulp: More não é apenas um disco, é um sonho que David Bowie, Bryan Ferry, Serge Gainsbourg, Scott Walker, Leonard Cohen e Ian Curtis tiveram, e que motivou uma conversa entre os seis.
Jarvis Cocker, líder do Pulp, é uma daquelas figuras que motivam qualquer jornalista a escrever mais sobre ele do que sobre sua banda – sua póetica o torna quase um personagem de filme. Essa figuraça do rock dos anos 1990, que alcançou o sucesso tardiamente (o Pulp surgiu em 1978 e só estourou quase 15 anos depois), às vezes soa como uma versão irônica de Bryan Ferry à frente do Roxy Music. Ou como uma versão britpop do Marcelo, aquele personagem amoral e despudorado que apareceu em quase todos os filmes de Walter Hugo Khouri. Nas letras do Pulp, Cocker surge disposto a observar de forma inusitada temas como amor, sexo, envelhecimento, vida íntima, luta de classes e particularidades em geral.
More é um disco elegante, cheio de cordas, com emanações do glam rock, do chamber pop, do pop francês (em especial) e da esquina entre disco music e pós-punk – Slow jam, por exemplo, tem algo de Sister Midnight (David Bowie e Iggy Pop) e lembra os passeios da dupla pelos estúdios da França e de Berlim. O tom de faixas como Spike island e da valsa rock Farmers market, duas canções que criam a sensação de paraíso na mente, serve para trazer à memória que no Roxy Music, durante vários anos, tocaram vários artistas de rock progressivo – gente muito eficiente em criar climas.
A sonoridade de More aponta também para glam rock + easy listening (em Tina e Grown ups), sons entre o country e a música dos girl groups sessentistas (A sunrise), rock lunar e belo (Partial eclipse, cuja beleza mostra como o Coldplay reduziu o rock britânico a uma empulhação e a um mínimo reconhecível como experiência musical), mais sons elegantes e dançantes (Got to have love e o trip hop enrockado de My sex) e algo próximo de Heroin, do Velvet Underground, só que com magia e estilo (Background noise).
- O comecinho do Roxy Music no nosso podcast
- Relembrando: Iggy Pop – New values (1979)
- Quem é quem (e o que é o que) na ficha técnica de Ziggy Stardust, de David Bowie
Quanto às letras… Jarvis fala de amor platônico em Tina – o narrador se apaixona por uma menina que viu no trem e imagina com ela desde casamento até sexo em lugares inusitados (“transando em uma loja de caridade / em cima de sacos de lixo pretos / cheio de doações”). Grown ups faz comentários quase automáticos sobre os lados ruins e bons de crescer e envelhecer, quase sempre pela ótica do “vai ser sempre a mesma coisa?”. Got to have love, próxima do soul britânico, prega verdades como “sem amor / você só está se masturbando dentro de outra pessoa” e que “quando o amor desaparece/ a vida desaparece”.
My sex, por sua vez, causa estranheza: você não entende se Jarvis está falando de um ser agênero, ou de um tipo de ato sexual que é próprio de alguém, ou de um sexo que abarca tudo – todas as preferências, gêneros, estilos, o que aparecer. Esse clima bizarro, que gera fichas que caem às vezes vários anos depois, é a cara do Pulp, eternamente condenado a ser aquela banda do britpop que muita gente não vai gostar da primeira vez que ouvir – não tem a zoeira intelectual do Blur, o clima rocker do Oasis, por exemplo. Até que um dia você e o Pulp se esbarram, como um futuro casal que se conhece numa batida de carrinho no supermercado. Pode acontecer com More.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 10
Gravadora: Rough Trade
Lançamento: 6 de junho de 2025.
Crítica
Ouvimos: Marya Bravo – “Eterno talvez”

RESENHA: Marya Bravo imprime muita força em Eterno talvez: trip hop, jazz, psicodelia e sombras se misturam num disco belo, estranho e cheio de camadas.
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“Qual de vocês consegue sustentar uma nota alta?”, perguntou Paul McCartney em 1967, diante de um grupo de fãs dos Beatles no portão da gravadora EMI. Lizzie Bravo, então adolescente brasileira, estava lá, e se candidatou. Entrou no estúdio e eternizou sua voz no coral da faixa Across the universe, dos quatro de Liverpool.
Eterno talvez, novo álbum da filha Marya Bravo (cujo pai é o cantor, compositor e multi-homem Zé Rodrix), herda esse sopro de história. E transporta tudo para vocais extensos e performáticos, músicas introspectivas, climas sombrios, e para uma sonoridade que une trip hop, jazz, pós-punk e psicodelia em doses quase iguais. Pouca coisa no álbum não dá sensação de estar à deriva, ou em busca de algo no meio de uma praia deserta.
É o que acontece na faixa-título, em (olha aí!) À deriva, na contemplativa Braços abrigo e na visual Tudo por acaso – esta, lembrando a vibe setentista de Joni Mitchell, mas sob outros aspectos musicais. Avisei, por sua vez, une peso e leveza em doses iguais – é um som ligeiramente orquestral, mas com batida quase industrial no começo. Já Quem é que vai? inicia nas sombras, com programações e guitarra fazendo ruído. Uma das faixas mais experimentais e eletrônicas do disco, mas com clima quase pop.
- Ouvimos: Maria Beraldo – Colinho
- Ouvimos: Catto – Caminhos selvagens
- Ouvimos: Flaira Ferro – Afeto radical
- Ouvimos: Jadsa – Big buraco
Existe algo de tropicalista sendo insinuado em faixas como Loucura confirmando e Ai quem dera. Poderiam ser canções gravadas por Gal Costa ou até por Marisa Monte, mas o design musical é bem mais perturbador – no caso da segunda, ela é uma balada-blues soturna, com um clima derretido e psicodélico, que surge também no blues texturizado Rainha do nada, e paira sobre muita coisa do álbum.
Além do material totalmente autoral (feito ao lado de Nobru e Dony Von), Marya também resgata em Eterno talvez uma inédita do pai – a insone Faca no peito, trip hop imagético em que parece que vai acontecer algo a qualquer momento, e no qual dá pra enxergar as entidades “bem” e “mal” tão misturadas quanto arroz e feijão. No final, a eletrônica Vai acontecer é um pop barroco, ou uma canção de ninar às avessas, em clima de Air e Massive Attack.
Nome: Ricardo Schott.
Nota: 9
Gravadora: Independente
Lançamento: 21 de maio de 2025.
Crítica
Ouvimos: Turnstile – “Never enough”

RESENHA: Em Never enough, o Turnstile mistura hardcore, emocore e pop futurista num disco emocional, ousado e cheio de surpresas que fogem do óbvio.
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Provavelmente Never enough vai estar em boa parte das listas de melhores álbuns de 2025, coroando um trabalho muito bem feito do Turnstile – o quinteto do Baltimore vem fazendo o possível e o impossível para tirar o hardcore do gueto, e hoje há fãs de música pop, e de hip hop que são fãs do grupo. Por “tirar do gueto”, entenda-se que quando estilos como hardcore e hardcore melódico começam a ficar mais famosos, acontecem algumas anomalias – bandas como Blink-182, por exemplo, acabam chamando mais a atenção de caras de 30, 40 anos que não quiseram crescer.
O Turnstile, surfando uma onda que vai para os lados do hardcore, do emocore e da experimentação, decidiu apostar na conexão com um público que quer ter uma experiência emocional com a música. Tanto que as músicas de Never enough têm mais a ver com a mistura de estilos e épocas do hyperpop (e por consequência, com Charli XCX) do que com a dureza e a crueza de um dos desdobres mais radicais do universo punk. E vale citar que além de tudo, ele é um álbum visual dirigido pelo vocalista Brendan Yates e do guitarrista Pat McCrory, que reúne as 14 faixas do álbum em uma imersão audiovisual contínua.
A política de Never enough, vale dizer, é a dos sentimentos, do respeito ao processo, da vontade de cortar laços com o mundo. Isso aproxima o Turnstile de grupos como The Cure, Smashing Pumpkins, até de Legião Urbana – e musicalmente, toques ligados ao indie pop surgem aqui e ali no novo disco. Climas espaciais e ondas art rock transformam Never enough, a faixa-título, numa espécie de emo ambient em que a banda fala sobre carências e vulnerabilidades (“nunca baixe a guarda / onde quer que você vá”, “amor nunca é o suficiente”). Sole, aberta em clima próximo do metal, e prosseguido com uma das maiores tradições do hardcore, os vocais “de torcida”, prega: “firme enquanto você flutua / você está melhor sozinho”. E fala sobre as lições do “deixar ir”.
- Temos episódios do nosso podcast sobre The Cure e Smashing Pumpkins
- Ouvimos: Smashing Pumpkins – Aghori mhori mei
- Ouvimos: The Cure – Songs of a lost world
É nessa mescla de união de elementos musicais e de manual de sobrevivência jovem na selva que Never enough se sustenta, partindo para uma união de emo e Smiths (com tontons de bateria dos anos 80!) em I care. E depois para uma curiosa união entre hardcore e afropop latino (quem no Brasil faria um som desses?) em Dreaming. Por outro lado, há momentos em Never enough que as coisas parecem bem estranhas – ou talvez mal coladas. Sunshower é um hardcore melódico com final falso e parte 2, com synths e flautas tomando à frente. Look out for me, emo-ambient de seis minutos que surgiu como single, dá a impressão de algo que precisava MUITO de edição, com uma “parte eletrônica” que surge lá pelas tantas.
Mais: vibes herdadas do lo fi e do krautrock tomam conta de Dull e Light design. Sons que lembram The Police e o começo de Sting solo batem ponto em Seein stars – música que herdou muito também do balanço de David Bowie e Michael Jackson nos ano 1980. De qualquer jeito, para fazer um suposto agradinho aos fãs antigos, o lado “hardcore feroz” do grupo surge em Birds e Slowdive, enquanto Time is happening é puro punk pop melódico.
A face inusitada do Turnstile volta a bater ponto em Ceiling, faixa de 1:13 que parece uma vinheta do Daft Punk ou do Massive Attack com participação do Turnstile. Magic man, que encerra o disco, é tudo que os fãs do grupo talvez não esperassem. E também é uma mostra de que talvez os pais ou avós dos fãs do Turnstile também tornem-se fãs da banda: é uma faixa de teclados e voz que soa como um ABBA progressivo, ou como o Alphaville de Forever young. Tudo isso faz de Never enough um disco sobre risco, doação, ganhos e perdas – e transforma o Turnstile numa banda bem diferente de quase todas as outras.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Roadrunner
Lançamento: 6 de junho de 2025
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