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Cultura Pop

Várias coisas que você já sabia sobre Boy, estreia do U2

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A audição de I will follow, faixa de abertura de Boy (1980) estreia do U2, já indicava que se tratava de uma banda especial. Mais ainda: o U2 mostrava-se uma daquelas bandas que, ame ou odeie, mexia com qualquer ouvinte. Não havia nada ali que não tinha sido colocado para mexer com parte específicas das emoções e da mente das pessoas. Tinha Bono gritando “i will follow!” na abertura, o tilintar no refrão, o rufar dos tambores logo na introdução, a guitarra econômica de The Edge, a boa cozinha de Larry Mullen Jr (bateria) e Adam Clayton (baixo).

Várias coisas que você já sabia sobre Boy, estreia do U2

Havia também em Boy religião como subtexto, como busca pessoal, não exatamente como fator de conversão do ouvinte. Isso já indicava que qualquer pessoa poderia se identificar com aquela proposta. E reforçava a ideia básica de que o U2, antes de qualquer coisa, queria mesmo era ser uma banda amada por todo mundo. Como, aliás, várias testemunhas do começo da banda afirmam. Isso, por mais que o U2 viesse de um país pouco afeito a paradas de sucesso, e ainda por cima, fizesse rock numa época em que o estilo não se misturava ao pop. Ainda assim, o quarteto construiu pontes que duram até hoje, e não são poucos os fãs que dizem que o melhor disco da banda saiu há quarenta anos.

E esse é o nosso relatório sobre Boy, que fez 40 anos mês passado. Leia ouvindo e ouça lendo.

ANTES DO U2

A IRLANDA não era um grande fornecedor de bandas para o universo pop, mas algumas bandas conseguiram furar o bloqueio. Entre elas, artistas mais ligados ao rock clássico, como Thin Lizzy e o guitarrista/cantor Rory Gallagher. Mais aparentado ao U2, teve o Boomtown Rats, de Bob Geldof, que fez sucesso pra burro, mas foi um fenômeno restrito à Europa. De qualquer jeito, Rat trap, hit single deles lançado em 1978, foi o primeiro número um de uma banda irlandesa na parada britânica e fez uma turma enorme de garotos sonhar com o mesmo destino.

O U2 surgiu em 1976 em Dublin, na antiga República Livre da Irlanda. E (surpresa!) inicialmente foi uma ideia do baterista Larry Mullen Jr. Em 1976, aos 14 anos, ele decidiu colocar um papel no quadro de avisos de sua escola recrutando músicos para uma nova banda. Seis pessoas apareceram na casa do baterista no dia 25 de setembro de 1976 e consta que a primeira delas foi o baixista Adam Clayton. Larry comenta que foi só Bono aparecer, que ele percebeu que não conseguiria mais ser líder da própria banda que criou.

MALANDRÃO. A entrada de Adam Clayton para a banda, que logo ganhou o nome de Feedback, tem lá seus lados obscuros. Bono disse certa vez que o baixista ganhou o posto porque era o único que tinha amplificador próprio e isso fez com que o grupo nem cogitasse dispensá-lo. Era também amigo de The Edge e de seu irmão. “Pensávamos: ‘Esse cara só pode ser músico, ele sabe do que está falando’. Ele usava palavras como ‘gig’, ‘ação’, ‘escala’. Só que um dia descobrimos que ele não estava tocando as notas certas e que ele nem sabia tocar”, contou Bono.

A ESCOLA

O COLÉGIO em que o U2 se conheceu foi a Mount Temple Comprehensive School, fundada em 1972, e que descendia de uma das mais antigas escolas de Dublin, a Hibernian Marine School, fundada em 1766. Todos os integrantes estudavam lá e se envolveram com vários assuntos – e turmas diferentes – por lá. Larry Mullen lembra que o “compreensivo” do nome da instituição não era só figura de linguagem. O local não separava alunos e alunas e talentos eram sempre incentivados. “Se uma pessoa era interessada em algum assunto, como esportes, não acontecia de ela ser desencorajada porque o assunto não era acadêmico”, recordou. Foi lá que Paul Hewson e Dave Evans viraram Bono e The Edge, respectivamente.

A MOUNT TEMPLE acabou gostando da ideia de ter uma banda formada lá dentro. Tanto que deu uma sala para os garotos ensaiarem e deixou um professor de história a disposição dos garotos, para conversar e tirar dúvidas. O grupo era bem querido na escola, apesar de Adam Clayton fazer coisas que mereciam um “bonito, hein?” dos mestres mais conservadores, como beber café na sala de aula (meu Deus!) e usar um kilt escocês no colégio.

PEGADOR. Bono lembra que no primeiro ensaio com Larry, na cozinha do baterista, choveram garotas para ver o músico tocando. O destruidor de corações Larry afugentou as meninas com uma mangueirada. “Ele não estava a fim, queria tocar bateria”, justificou o novo amigo.

MÚSICA, HUMANA MÚSICA

BONO, na adolescência, não pensava em ser músico. Aliás, seu maior interesse era jogar xadrez. Mas em junho de 1971, teve uma revelação: ligou a TV e viu o Middle Of The Road, sensação pop escocesa que muitos veem como um pré-ABBA, dublando seu pegajoso hit Chirpy cheep cheep no programa britânico Top of the pops. Um mundo novo se abriu. “Tinha uns 11 anos e pensei: ‘Wow, é pra isso que serve música pop. Você canta assim e ainda por cima é pago”, contou.

EM COMPENSAÇÃO, quando o U2 (já com esse nome) fez a primeira apresentação na Mount Temple no comecinho de 1978, o vocalista já tinha uma ideia claríssima a respeito do que queria com a banda. “Desde o começo queríamos algo com o poder do Who e com a sensibilidade de Neil Young. Mas nossas principais influências somos nós mesmos”, garantiu. Nomes como Marc Bolan (T. Rex), Leonard Cohen e David Bowie eram também referências do cantor, que foi bastante impactado por Live at Leeds, disco ao vivo do The Who de 1970.

CONCURSO

EM 1979, o U2 resolveu se meter no Harp And Guinness Talent Contest, uma batalha de bandas criada pela cervejeira Guinness, e realizada em Limerick, cidade a duas horas de Dublin. O grupo, que mal tocava três acordes, concorria com bandas de rock pesado e com uma galera que já se achava “profissional”. Mas decidiram apostar num som e numa postura mais frágeis, até para justificar um problema audível: Bono estava sem voz. No entanto, acabaram ganhando o concurso. Levaram 500 libras pra casa e ainda conseguiram a glória de gravar uma demo que seria ouvida pelo braço irlandês da Columbia.

ALIÁS E A PROPÓSITO, o U2 era um quinteto até pouco antes de tocar em Limerick, já que Dik Evans, irmão de The Edge, estava na banda como guitarrista. Mais velho que todo mundo na banda, ele já estava na faculdade quando o U2 dava os primeiros passos, e o conflito de gerações acabou por tirá-lo do grupo. Passou a se dedicar aos Virgin Prunes, banda que não fez muito sucesso e era bem mais experimental que o U2. Aliás, o VP volta e meia cedia músicos convidados para o U2 quando um dos quatro se enrolava e não podia tocar.

U2-3

JACKIE HAYDEN, representante da gravadora, já tinha gostado da banda assim que a viu tocando no tal concurso de Limerick, e produziu as gravações. Não havia projeto de disco ainda. A ideia era que a banda gravasse várias canções para que a CBS Ireland (nome local da firma) escolhesse o que havia de melhor, mas o U2 só conseguiu gravar uma faixa inteira, Inside out. A sessão de gravação foi interrompida por um motivo prosaico: o senhor Larry Mullen foi lá resgatar seu filho baterista, Larry Mullen Jr, porque aquela brincadeira ia varar a madrugada e o garoto precisava ir à escola no dia seguinte.

O U2 quase foi contratado pela CBS por artes de Hayden. Mas o quarteto deu pra trás quando leu o contrato e se assustou com o fato de que não haveria como negociar nada. A coisa melhorou quando a banda passou a ser empresariada por Paul McGuinness, que abordou um representante da CBS britânica, Chas de Whalley, e disse a ele que o U2 havia ganho o tal concurso. Após idas e vindas, e quase desistências, De Whalley, que não ficou fã da banda mas gostou de Bono, topou produzir o grupo no maior estúdio de Dublin, o Windmill Lane.

SAIU!

O EP de doze polegadas U2-3 foi lançado, finalmente, em 26 de setembro de 1979. A gravação foi uma zona, com o anti-produtor Whalley falhando em manter os músicos no tempo, e o trio de guitarra-baixo-bateria desesperado porque Bono gravava vocais longe deles. O disco tinha Boy/girl, escolhida numa enquete de rádio, mais os dois maiores hits de palco da banda, Stories for boys e Out of control. O disco vendeu todas as suas mil cópias rapidamente e acabou sendo um sucesso local. A CBS britânica cagou para o lançamento e Jackie Hayden até conseguiria recuperar as demos que havia enviado para o escritório na Inglaterra.

ALIÁS E A PROPÓSITO, as mil cópias do disco foram numeradas pessoalmente por Whalley e tem um fã do U2 que está querendo localizar onde foram parar todas as cópias. Fez até um site para conseguir isso (já falamos disso aqui no POP FANTASMA).

O EMPRESÁRIO

PAUL McGUINNESS, alemão criado na Irlanda, conheceu o U2 em um show em Dublin em 25 de maio de 1978, por intermédio do jornalista Bill Graham. Ele tinha pouca experiência no ramo, mas já havia se metido em muita coisa. Até mesmo na área de cinema, como assistente de direção. Também dirigira comerciais de TV.

O NOVO manager da banda tinha o mesmo topete dos quatro: vivia dizendo aos quatro cantos que o U2 ainda seria um enorme sucesso. “Mas nunca sabíamos por quanto tempo isso duraria”, contou. Foi com ele no comando que a banda fez sua primeira viagem de shows a Londres, em dezembro de 1979. Tocaram até mesmo no prestigioso clube Hope And Anchor, casa de bandas como Joy Division e Stranglers. Mas a apresentação teve como público a enormidade de nove pagantes (!).

DIFÍCIL É O NOME. Numa das noites londrinas, o U2 abriu para The Dolly Mixtures, banda punk feminina, no Rock Garden. Mark Williams, jornalista da Melody Maker, estava lá, cobriu o show, mas grafou o nome da banda como V2. Em vários pôsteres de shows do U2 na sua turnê pela Inglaterra, a banda aparecia com nome grafado como UR, U-2, U2s e The U2’S.

ALIÁS E A PROPÓSITO, o nome U2 não era unanimidade entre jornalistas e a banda precisou ouvir várias vezes que deveria trocá-lo. Muita gente chamava o grupo de “os U2’s” ou algo do tipo. O U2 surgiu de uma lista de nomes que a banda separou para escolher e, sim, veio do “avião espião” Lockheed U-2, conhecido como Dragon Lady, presença marcante na Guerra Fria.

O ESTÚDIO

DESDE U2-3, o U2 desenvolveu uma relação de carinho com o maior estúdio de gravação da Irlanda, o Windmill Lane. Vários discos da banda foram gravados inteira ou parcialmente lá. O estúdio havia sido fundado em 1978 pelo engenheiro de som Brian Masterson, num prédio que anteriormente abrigava uma fábrica de calçados. O nome da empresa veio do endereço do local, 22 Windmill Lane, rua localizada na área das docas. Em 1990, o estúdio mudou-se para o endereço onde está até hoje, 20 Ringsend Road.

A IDEIA DE gravar U2-3 lá surgiu como uma forma de baixar custos para o primeiro EP do grupo, numa época em que o contrato com a CBS e a gravação do disco pareciam obra de igreja. O interessante é que o WL jamais tinha abrigado bandas de rock e costumava servir de escoadouro para a cena de música folk irlandesa. Depois se tornou um lugar famoso a ponto de receber nomes como Def Leppard, Metallica, David Bowie, Spice Girls e Kate Bush.

SALA GRANDE. Uma das salas do Windmill Lane é imensa o suficiente para conseguir receber orquestras inteiras. Com a fama do U2 e o investimento dos donos do estúdio, montes de filmes tiveram suas trilhas gravadas lá, como Uma janela para o amor, Missão impossível, Meu pé esquerdo e O máscara. Em 2009, a casa foi vendida para a Dale Entertainments Ltd e o estúdio ganhou um banho de loja, com o que havia de mais moderno em tecnologia.

SEM CHIFRINHOS

APESAR DE nos anos 1990 Bono ter adotado um personagem (à moda das personas de David Bowie) chamado McPhisto, que usava chifrinhos de demônio, e de Adam Clayton ter mostrado as joias da família numa das fotos de Achtung baby (1991), o U2 sempre teve uma (justificada) fama de banda religiosa. Isso por causa do envolvimento de três deles (Bono, Larry e The Edge) com o cristianismo, desde a época da escola. Bono foi criado na Igreja Católica e o irmão, na Anglicana, por ideia dos pais.

UM ANO ANTES DO LEVANTE PUNK, em 1976, houve uma espécie de “levante espiritual”, que levou de roldão também o U2. Há testemunhas: T-Bone Burnett, músico de Bob Dylan, disse à biografia do cantor, Down on the highway, que a partir daquele ano vários roqueiros se converteram, inclusive ele e outros integrantes da banda de Dylan. “Aconteceu com Bono, Larry e The Edge na Irlanda, com Michael Hutchence na Austrália e aqui em Los Angeles: houve um movimento espiritual”.

O LIVRO Walk on – A jornada espiritual do U2, escrito pelo pastor presbiteriano irlandês Steve Stockman, lembra que Bono teve contato com o cristianismo desde criança, por intermédio de Derek Rowan, um vizinho, e dos pais dele. Bono começou a frequentar a Associação Cristã de Moços local. The Edge comenta que, na adolescência, ele, Larry e Bono viram um homem que lia uma Bíblia e estava sendo insultado por membros da religião Hare Krishna. Os três se aproximaram e conversaram com o cara – que convidou o trio para conhecer uma comunidade cristã não-denominativa chamada Shalom. Começava aí uma longa associação do trio com essa turma, que geraria até perrengues internos sérios.

RELIGIÃO NA ESCOLA

LEMBRA DA Mount Temple, a escola na qual o U2 havia estudado? Considerada um local progressista em Dublin (a capital de um país fruto de uma cisão vinda, entre outros detalhes, de questões religiosas), a escola passou a ter, lá pelo fim dos anos 1970, reuniões de orações e monitores cristãos. Há quem diga que, justamente por virem de um ambiente que investia na diferença, o U2 poderia se tornar uma banda mais radical e anti-católica se tivesse estudado numa instituição religiosa comum.

ISSO vai ao encontro da tese de que a origem em Dublin tornou o U2 o que ele é até hoje. O livro Walk on bate na tecla de que em qualquer outra cidade mais conhecida, o U2 teria na formação garotos que achariam o comportamento religioso careta e classe-média, e faria músicas no estilo “não à Igreja”. Em 1983, numa entrevista à Rolling Stone que ficou célebre, Bono disse que sua concepção de rebeldia não era jogar carrões em piscinas, mas “se recusar a comprometer crenças e valores”. Disse também que estava mais interessado na “política do amor”.

SEXO E DROGAS?

BOM, à exceção de Adam Clayton, que ficou solteiro até 2013 e chegou a namorar a Naomi Campbell, todo mundo da banda casou cedo. Até Larry Mullen Jr, o perigote das garotas, casou-se com a primeira namorada. O site Who’s dated who diz que Bono “não teve nenhum relacionamento que nós conhecemos”, mas já rolaram boatos de casos do cantor com supermodelos.

DESDE cedo, o grupo chamava a atenção de jornalistas por evitar drogas. Amigos contavam que Bono era visto tomando suco de laranja em festas, embora o vocalista esteja longe de ser um cara abstêmio. O livro Walk on explica que “para esta banda, era mais rebelde ler Bíblias no fundo do ônibus do que provar drogas”. Mas o mau garoto Adam Clayton (por acaso o único que não tinha saco para a arenga religiosa dos amigos) já foi preso por porte de maconha e fez tratamento contra o alcoolismo, após tomar umas doses a mais e deixar a banda na mão antes de um show em 1993.

ESSE LADO CRISTÃO começou a dar no saco até mesmo de antigos admiradores da banda. Especialmente quando, lá por meados dos anos 1980, parecia que toda a mídia havia ficado certinha e conservadora, com direito à volta da guerra contra as drogas e a reportagens cada vez mais paranoicas sobre a Aids. Quando a banda foi fazer shows em Belfast, na Irlanda do Norte, onde o povo já estava de saco cheio de qualquer papo católico, Bono teve que levar na cara uns “para de pregar e canta!”. Por sinal, quem estava na plateia desse show era uma turma de notáveis da futura gravadora do U2.

ISLAND

A GRAVADORA britânica, que tinha sucesso com um astro jamaicano (Bob Marley) vinha contratando desde os anos 1970 nomes importantes do rock, como Roxy Music, Sparks, Cat Stevens e Ultravox. Mas estava com poucos nomes realmente grandes em 1980. McGuinness conhecia o assessor de imprensa do selo desde 1977 e resolveu começar um ataque soviético à gravadora, mandando demos e fechando contrato de publicação com a editora musical do dono da empresa, Chris Blackwell.

ROB PARTRIDGE, chefe de comunicação da Island, se amarrou em especial na guitarra de The Edge, que para ele parecia a de Tom Verlaine (Television). Caciques da Island foram ver o U2 em Belfast e curtiram a postura da banda no palco, especialmente a “petulância” de Bono quando peitou a plateia anti-católica de Belfast.

TREMENDOS VACILÕES. O U2 era cristão mas não era santo. A banda resolveu roubar as chaves do gerente do hotel em Belfast e destruiu um quarto inteiro. Era uma brincadeirinha da banda, achando que McGuinness dormia lá – mas o quarto era de um outro hóspede. Depois, todo mundo encheu a cara e começou a jogar cerveja um no outro pelos corredores do hotel. O vacilão Adam Clayton achou que seria engraçado jogar cerveja em Annie Roseberry, uma das chefes de A&R da Island. A brincadeira acabou com McGuinness tendo que se desculpar com a executiva.

O CULPADO

UM DOS maiores responsáveis pela contratação do U2 foi o diretor de A&R da Island, Nick Stewart. Nick era um sujeito de costumes conservadores, ex-capitão do exército, jogador de críquete, e ouviu as indicações de seus colegas de que havia uma banda muito boa em Dublin. Acabou indo lá assistir a um show do U2 no National Boxing Stadium, para um público de 1.200 pessoas formado quase que totalmente por convidados. Deu tão certo que Nick saiu abraçando pessoas dizendo que estava diante do “Led Zeppelin dos anos 1980”.

DIFÍCIL É O DONO. Chris Blackwell, dono da Island, é que não via nada demais naquele grupo. Perguntou a Nick por que deveria contratar o U2 e ouviu do executivo que a banda tinha um grande cantor e um grande guitarrista. “Então contrate o cantor e o guitarrista”, retrucou. Blackwell tentou dissuadir Nick várias vezes, mas acabou consentindo. O U2 venceu uma corrida travada em sigilo com o Spandau Ballet (também visado pela Island, mas que acabou indo para a Chrysalis). Bono, The Edge, Larry e Adam foram contratados por quatro álbuns, com adiantamento de 50.000 libras, mais 50.000 em suporte para a turnê.

BLACKWELL só foi conhecer a banda pessoalmente em junho de 1980, durante o último show de Bob Marley no Reino Unido, ao qual o U2 foi. O encontro foi gentil e amistoso, e Blackwell pareceu gostar dos garotos. Também resolveu pessoalmente os dilemas que ainda haviam sobre o nome U2, dizendo que gostava dele. “Não, adoro o nome. É muito simples. Se você tem um nome simples e curto, pode realmente torná-lo maior com as luzes acima do Madison Square Garden”, contou.

QUASE PRODUTOR

O PRIMEIRO LP do U2 quase foi parar nas mãos de Martin Hannett, o cara por trás do som dos dois LPs do Joy Division, Unknown pleasures (1979) e Closer (1980). Isso porque Martin produzira o primeiro single do U2 pela Island, 11 o’clock tick tock. Fã do Joy, o U2 ficou animado e chegou a ir à Inglaterra ver a gravação do single Love will tear us apart.

MARTIN, você talvez saiba, era bem estranho: tinha um comportamento excêntrico que assustava músicos e usava métodos pouco ortodoxos de gravação. Mandou criar uma engenhoca de gravação, o AMS Digital Delay, que fazia todo tipo de som fantasmagórico. Graças a esse aparelho, rola aquele eco sombrio na bateria de Unknown pleasures. Ele também botou Ian Curtis, vocal do JD, para cantar no elevador do estúdio e Stephen Morris, baterista, para tocar as partes do instrumento uma por uma (e mixou tudo depois). E respondia às sugestões da banda com amorosos “vão se foder”.

A GRAVAÇÃO do single do U2 rolou dias 5 e 6 de abril de 1980 no (adivinhe só) Windmill Lane. Martin pirou tanto no trabalho que deixou o U2 suspeitando que ele usava ácido. Em compensação, fez coisas que todos adoraram: gravou as notas de baixo de Adam Clayton todas em separado (e mixou depois) e insistiu que cada som do disco fosse isolado e gravado separadamente. Mas o single, lançado em maio de 1980, ficou com som de radinho de pilha e não vendeu chongas.

NO FIM DAS CONTAS o U2 preferiu não repetir a vibe maníaca do single na gravação do LP. Mas por outro lado Martin teve uma crise nervosa por causa da morte de Ian Curtis e se pirulitou. E o U2 ficou sem produtor, mas não por muito tempo…

FACILITADOR

O INGLÊS Steve Lillywhite tinha começado a carreira em 1972 no estúdio da PolyGram. Uma de suas primeiras produções foi uma demo do Ultravox, que acabou contratado pela Island. Steve também acabou contratado como produtor pelo selo e cuidou de discos do próprio Ultravox, por exemplo. Também fez coisas para a Virgin, como o disco solo do ex-New York Dolls Johnny Thunders, So alone (1978) e álbuns do XTC e Peter Gabriel. Foi ele que chefiou as gravações de Boy no Windmill Lane.

TESTEMUNHAS lembram que o tranquilo Steve não era um cara excêntrico e fazia mais a figura do facilitador do que a do “gênio trabalhando”. Ainda assim, fez várias experimentações com o U2 em Boy. O produtor não acreditava muito no potencial do Windmill Lane para gravar rock e achava que as salas fossem mais próprias para folk e sons mais tranquilos. “Naquela época, eu gostava muito de sons 3D, que voltavam tanto para a esquerda quanto para a direita”, contou ele, que chegou a pensar em importar equipamento de Londres. Mas Steve adorou o som de uma sala de recepção do estúdio, com parede de pedra, e pôs Larry Mullen para gravar sua bateria lá.

ALIÁS E A PROPÓSITO, banda e produtor precisavam esperar a moça da recepção terminar o expediente para conseguir gravar na sala, porque o telefone do Windmill Lane tocava o dia inteiro. O problema é que às vezes, à noite, ele também tocava e atrapalhava as gravações (e ninguém se lembrava de tirá-lo do gancho).

ALÉM de adorar a sala de recepção do Windmill Lane, Steve deixou baixar um Martin Hannett rápido quando incentivou Larry Mullen a gravar bateria numa escada do estúdio, e pôs garrafas e latas para girar e fazer barulho numa roda de bicicleta (você escuta o resultado desse experimento em I will follow, lá pra 2:05). Também deu a ideia de usar um glockenspiel, instrumento de placas de metal semelhante ao xilofone, em I will follow, a faixa de abertura. Isso porque o mesmo instrumento havia aparecido em Hong Kong Garden, de Siouxsie And The Banshees, que ele havia produzido.

NÃO ANIMEI NÃO

LILLYWHITE, vale dizer, abriu os trabalhos com o U2 produzindo o segundo single da banda, A day without me. O produtor não conhecia o primeiro single e tinha recebido da Island uma cópia de U2-3, mas não se animou muito com o que ouviu no EP. Só foi convencido quando pegou um avião para a Costa Oeste da Irlanda e foi ver o U2 ao vivo num salão de escola. “Eles atacaram com I will follow e vi que tinha algo ali”, conta o produtor, que tinha em mente vários estereótipos sobre a Irlanda e achou que Paul McGuinness ia chegar “de trator, com palha atrás do ouvido” (palavras de Steve) para recebê-lo no aeroporto.

VALE DIZER QUE nem mesmo A day without me deixou Steve feliz, já que (adivinhe só) detestou o som da bateria. Daí a determinação em achar um canto em que pratos, caixas e bumbos soassem da maneira que o chefe queria.

ALIÁS E A PROPÓSITO, logo após receber Steve no aeroporto, Paul trancou-se com o produtor em seu carro e… pôs para rodar todas as demos do U2 que tinha nas mãos para o novo amigo. O problema era que o sistema de som de McGuinness era horroroso e as fitas eram péssimas, segundo Steve. O produtor quase se enfiou no primeiro avião de volta para a Inglaterra, mas sua ideia era mesmo conferir o show, já que a Island apostava muito na banda. Ainda assim, Steve diz ter boas lembranças desse primeiro encontro. “Paul era adorável, charmoso e um bom vendedor”, contou.

GENTE COMO A GENTE

UM DETALHE SOBRE O U2 que vira assunto sério quando se fala dos primeiros anos do grupo, é que Bono, The Edge, Larry e Adam eram pessoas comuns, gente do tipo que você poderia ser colega na escola ou na universidade. Nada do jeito intelectualizado e defensivo de bandas como Joy Division, Cabaret Voltaire e outras. Paolo Hewitt, que foi entrevistar a banda para a Melody Maker no Windmill Lane em plena gravação de Boy, lembra que “eles tinham uma verdadeira energia e paixão que você não estava recebendo desses grupos intelectuais”.

HEWITT e o fotógrafo Tom Sheehan foram pegos de carro no aeroporto por McGuinness e, ao chegarem no estúdio, chegaram a se assustar com o comportamento humilde da banda, num clima de “nossa, vocês vieram aqui para nos ver”. Sheehan avisou que seus pais eram de Dublin. “Então eles me levaram a um pub chamado Sheehan’s e tiraram uma foto minha do lado de fora”, contou. O fotógrafo saiu da entrevista convencido de que lidava com garotos de 20 anos que agiam e pensavam como se tivessem uns 25, e que fariam de tudo para serem a maior banda do mundo.

IMPRENSA, AMIGA IMPRENSA

OS PRIMEIROS REPÓRTERES QUE entrevistaram o U2 na época de Boy tinham uma convivência, digamos, privilegiada com o dia a dia da banda. Alguns deles conheceram até mesmo os pais dos integrantes. Aliás, muitos desses jornalistas têm lembranças especiais do pai de Bono, que assumira a tarefa de criar os dois filhos após a morte da esposa. “O pai dele era um cara legal também, muito tranquilo. Ele só queria que seu filho fizesse o que ele queria. Quer dizer, Bono não tinha nenhuma porra de dinheiro, mas ele não tinha nada de mão beijada de seu pai”, contou Paul Slattery, da revista britânica Sounds, que aliás ficou hospedado na casa de Bono em abril de 1980 para entrevistar a banda.

ALIÁS E A PROPÓSITO, Bono abrigou o repórter lá durante as entrevistas de Boy porque durante uma turnê do U2 pela Inglaterra, Slattery fez tráfico de sanduíches de bacon para a banda, que estava sem grana.

PRA QUE SERVIA ‘BOY’?

O PRIMEIRO LP do U2, conforme a própria crítica notou depois, era um verdadeiro tratado sobre amadurecimento e perda da inocência, com pitadas de religião em vários momentos das letras. I will follow era uma homenagem à mãe de Bono, morta quando ele tinha 14 anos – a letra foi escrita da perspectiva dela. Twilight, a segunda faixa de Boy, era, segundo Bono, sobre “a zona de crepúsculo onde o menino que se foi confronta o homem que caminha para as sombras”. Stories for boys, primeira do lado B, fala sobre a vida de uma criança que lê uma revista de aventuras e descobre que a vida dela não é assim.

A DOBRADINHA An cat dubh (termo irlandês que significa “um gato preto”) e Into the heart, com sua enorme introdução instrumental, fala de sexo, relacionamentos e ingenuidade. Já A day without me, primeiro single com repertório de Boy, via o mundo da perspectiva de uma pessoa que se afastava de seu círculo social.

ALIÁS E A PROPÓSITO, o single de A day without me saiu em agosto de 1980. Por sinal, alguns meses depois do suicídio de Ian Curtis, do Joy Division (ocorrido em maio). Uma chuva de jornalistas ligou para o telefone da Island querendo saber se a música era uma homenagem ao cantor. Não era, já que em fevereiro de 1980 ela já tinha essa mesma letra.

The electric co. não faz referência a nenhuma companhia de energia elétrica de Dublin. Uma das canções mais fortes de Boy, a penúltima faixa do disco é uma homenagem a um amigo de Bono que sofreu terapia eletroconvulsiva. No fim, a banda emenda com Shadows and tall trees, letra inspirada no livro Senhor das moscas, de William Golding, que falava de uma sociedade de meninos britânicos numa ilha. Logo após essa faixa, vinha uma vinheta anônima de trinta segundos. Essa vinheta estava apenas nos primeiros LPs e não aparecia nas primeiras edições em CD. Depois retornou com o nome de Saturday matinee.

A CAPA DO DISCO

O GAROTO da capa do álbum já havia aparecido na capa de U2-3 e era um velho conhecido de Bono. Peter Rowan, sete anos em 1980, é irmão de Derek Rowan, ou Guggi, o cara que apresentou o cristianismo ao cantor (e que depois tocaria na Virgin Prunes). Peter apareceu também na capa de War, o terceiro disco (1982) e em vários outros singles. Hoje é fotógrafo e já clicou o U2 algumas vezes.

Várias coisas que você já sabia sobre Boy, estreia do U2

NA ÉPOCA, Peter foi pago com uma caixa de chocolates. “Eles não eram uma banda rica”, justificou. Ele ainda é fã do U2 e lembra de fotos bem legais dele, ao ar livre, que nunca foram usadas pela banda.

O FATO DE ter um garotinho indefeso na capa de Boy colocou o U2 em encrenca. Para começar a Island ficou com medo de a banda ser associada à pedofilia. A Island botou a fotógrafa Sandy Porter para bolar uma capa nova para o lançamento americano. Sem verba, ela pegou as fotos de divulgação e distorceu para fazer a nova capa (que depois foi reeditada também em CD).

‘BOY’ PELO MUNDO

A CAPA original do disco trazia Boy e U2 escritos em letras prateadas de leitura difícil. Por conta disso, a edição francesa posicionou nome da banda e do disco num canto mais acessível. Na Grécia, o LP saiu com tons tão estourados de branco na capa que o menino virou um fantasminha. Mas afora a mudança da capa nos EUA e Canadá, não houve muitas modificações ao redor do mundo.

ALIÁS E A PROPÓSITO, o disco também ganhou várias remasterizações diferentes. A edição mais recente, que está nas plataformas, tem vários bônus, inclusive as músicas de U2-3.

APESAR DE muita gente achar que Boy foi lançado no Brasil apenas em 1986, quando U2 já tocava nas rádios brasileiras, o álbum ganhou uma edição nacional em 1981 pela Ariola, que por aqueles tempos lançava os discos da Island no país.

E ‘BOY’ DEU CERTO, AFINAL?

MAIS OU MENOS. Boy saiu em 20 de outubro de 1980 e vendeu 200 mil cópias. Era um resultado animador, mas não a salvação da lavoura – pelo menos não no sentido de transformar o U2 em banda mainstream. Chegou às 13ª posição na Irlanda, à posição 63 na Billboard 200 nos EUA e ao número 52 no Reino Unido. A crítica de modo geral recebeu bem o disco. Betty Page, da Sounds, disse que o U2 era os “jovens poetas do ano”. A irlandesa Hot Press disse que “era impossível reagir negativamente” ao disco. Uma voz discordante foi o irônico Robert Christgau, que no Village Voice disse que “temia o pior” de um mundo influenciado pela postura clean do U2.

A SOLUÇÃO que todos viram foi apresentar o U2 ao público americano.  Testemunhas lembram que a banda era grande demais para a Irlanda. Mas até a BBC via o U2 com underground demais e não tocava o grupo. Em 5 de dezembro de 1980, o U2 fez um showcase para executivos em Nova York. Em seguida, fechou contrato com a Premier Talent, que agenciava Bruce Springsteen e The Who nos EUA. E rolou uma pequena turnê pelos EUA.

A ISLAND não tinha operação nos EUA e tudo que rolava lá vinha do conglomerado Warner. Mas o nome do selo era grande o suficiente para servir como carta de recomendação para a banda. Decidiram fazer trabalho de formiguinha, tocando para plateias de 200 pessoas. Mas a tal “postura clean” que causou tristeza em Christgau também deu salvo-conduto à banda. Afinal, pouco antes de David Bowie, Eric Clapton e Lou Reed voltarem ao mercado com ar yuppie, o U2 era uma banda de subtexto cristão desbravando os EUA.

E DEPOIS?

DEPOIS viria October, segundo disco do U2, lançado em (adivinhe) 12 de outubro de 1981, numa época de profundo envolvimento do grupo com temas cristãos. O disco quase se chamou Scarlet, nome de uma das faixas. Aliás, Bono perdeu uma pasta cheia de letras que aproveitaria no disco. Em decorrência disso, precisou virar noites reescrevendo o material e gravou os vocais na pressão.

O TRIO religioso Bono-The Edge-Larry, ainda muito ligado à comunidade Shalom (lembra?) passava horas e horas a fio discutindo a Bíblia, causando tédio no baixista Adam Clayton. Pouco depois do lançamento do disco, considerado de modo geral como mais fraco que Boy, a banda chegou a pensar em largar o rock, achando que o estilo e o cristianismo se chocavam. Mas aí é uma outra história.

E JÁ QUE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI…

SEI LÁ, achamos as linhas vocais da introdução de Another time another place, uma das mais bonitas músicas de Boy, um tanto quanto parecidas com os metais de Miragem, canção de J.T. Meirelles gravada pelo super-baterista Edison Machado no disco É samba novo (1964). Provavelmente o U2 nunca ouviu Edison, mas é melhor que a semelhança entre Vanusa e Black Sabbath, não?

Com informações dos livros Walk on – A jornada espiritual do U2, de Steve Stockman, e Stories for boys, de Dave Thomas.

VEJA TAMBÉM NO POP FANTASMA:

– Demos o mesmo tratamento a Physical graffiti (Led Zeppelin), ao primeiro disco do Black Sabbath, a End of the century (Ramones), ao rooftop concert, dos Beatles, a London calling (Clash), a Substance (New Order), a Fun house (Stooges), a New York (Lou Reed), aos primeiros shows de David Bowie no Brasil, a Electric ladyland (The Jimi Hendrix Experience), a Pleased to meet me (Replacements), a Dirty mind (Prince), a Paranoid (Black Sabbath), a Tango in the night (Fleetwood Mac) e a Mellon Collie and the infinite sadness (Smashing Pumpkins). E a The man who sold the world (David Bowie). E a L.A. woman (Doors).
– Além disso, demos uma mentidinha e oferecemos “coisas que você não sabe” ao falar de Rocket to Russia (Ramones) e Trompe le monde (Pixies).
– Mais U2 no POP FANTASMA aqui.

Cultura Pop

Urgente!: O silêncio que Bruce Springsteen não quebrou

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Urgente!: O silêncio que Bruce Springsteen não quebrou

Tá aí o que muita gente queria: Bruce Springsteen vai lançar uma caixa com sete álbuns “perdidos”, nunca lançados oficialmente. O box vai se chamar Tracks II: The lost albums (é a continuidade de Tracks, caixa de 4 CDs lançada em 1998) e nasceu de uma limpeza que Bruce fez nos seus arquivos durante a pandemia. Pelo que se sabe até agora, o material inclui sobras das sessões de Born in the USA (1984) e gravações da fase eletrônica dele, no comecinho dos anos 1990 – inclusive um disco inteiro desse período, que nunca viu a luz do dia.

Essa notícia caiu nos sites na semana passada e trouxe de volta um detalhe que os fãs de Bruce já conhecem bem: ele tem muito material inédito guardado – e material bom. Em uma entrevista à Variety em 2017, ele mesmo comentou que sabia ter feito mais discos do que os que lançou, mas que havia motivos sérios para manter alguns deles nas gavetas.

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“Por que não lançamos esses discos? Não achei que fossem essenciais. Posso ter achado que eram bons, posso ter me divertido fazendo, e lançamos muitas dessas músicas em coleções de arquivo ao longo dos anos. Mas, durante toda a minha vida profissional, senti que liberava o que era essencial naquele momento. E, em troca, recebi uma definição muito precisa de quem eu era, o que eu queria fazer, sobre o que estava cantando”, disse na época (o link do papo tá aqui – é uma entrevista longa e bem legal).

Com o tempo, vários desses registros acabaram saindo em boxes e coletâneas. Um deles foi The ties that bind, um disco de pegada punk-power pop que seria lançado no Natal de 1979 – e que acabou virando uma espécie de esboço inicial do disco duplo The river, de 1980. Pelo menos saiu uma caixa em 2015 chamada The ties that bind: The River collection, com todo o material dessa época, inclusive o tal disco descartado (além de um material que formava quase um suposto disco de punk + power pop que teria sido abandonado).

Um texto publicado na newsletter do músico Giancarlo Rufatto recorda que Bruce infelizmente deixou de fora do novo box alguns álbuns que realmente mereciam ver a luz do dia. Um deles é um álbum solo (sem a E Street Band, enfim), com uma sonoridade country ’n soul, que foi gravado em 1981. Esse disco teria sido abandonado durante um período de depressão, que resultou em isolamento e na elaboração do disco cru Nebraska (1982), feito em casa com um gravador de quatro canais, só voz e violão.

Bruce até parece fazer referência a esse álbum perdido na entrevista da Variety. “Esse disco é influenciado pela música pop da Califórnia dos anos 70”, contou. “Glen Campbell, Jimmy Webb, Burt Bacharach, esse tipo de som. Não sei se as pessoas vão ouvir essas influências, mas era isso que eu tinha em mente. Isso me deu uma base pra criar, uma inspiração pra escrever. E também é um disco de cantor e compositor. Ele se conecta aos meus discos solo em termos de composição, mais Tunnel of love e Devils and dust, mas não é como eles. São apenas personagens diferentes vivendo suas vidas.”

Outro material bastante esperado pelos fãs – e que também não está na caixa – é o Electric Nebraska, a tentativa de Bruce de gravar com a E Street Band as músicas que acabaram no Nebraska. Nem ele, nem o empresário Jon Landau, nem os co-produtores Steven Van Zandt e Chuck Plotkin gostaram do resultado, e as gravações foram trancadas a sete chaves. Nem em bootlegs esse material apareceu até hoje. Pra você ter ideia, Glory days, que só sairia no Born in the USA (1984), chegou a ser ensaiada e gravada junto.

Quase todo mundo próximo a Bruce acredita que ele nunca vai lançar oficialmente essas gravações elétricas do Nebraska. Max Weinberg, baterista da E Street Band desde 1974 (com algumas pausas), confirmou a existência desse material em 2010, numa entrevista à Rolling Stone, e disse que adoraria ver tudo lançado.

“A E Street Band realmente gravou todo o Nebraska, e foi matador. Era tudo muito pesado. Por melhor que fosse, não era o que Bruce queria lançar. Existe um álbum completo do Nebraska, todas essas músicas estão prontas em algum lugar”, revelou. Bruce pode até guardar discos inteiros na gaveta, mas esse é um daqueles casos em que o silêncio guarda várias histórias – que podem render surpresas bem legais.

E ese aí é o lyric video de Rain in the river, uma das faixas programadas para Tracks II (a faixa sai num disco montado durante a elaboração do box, Perfect world).

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Cultura Pop

Urgente!: Supergrass, Spielberg e um atalho recusado

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Coisas que você descobre por acaso: numa conversa de WhatsApp com o amigo DJ Renato Lima, fiquei sabendo que, nos anos 1990, Steven Spielberg teve uma ideia bem louca. Ele queria reviver o espírito dos Monkees – não com uma nova versão da banda, como uma turma havia tentado sem sucesso nos anos 1980, mas com uma nova série de TV inspirada neles. E os escolhidos para isso? O Supergrass.

O trio britânico, que fez sucesso a reboque do britpop, estava em alta em 1995, quando lançou seu primeiro álbum, I should coco. Hits como Alright grudavam na mente, os vídeos eram cheios de energia, e Gaz Coombes, o vocalista, tinha cara de quem poderia muito bem ser um monkee da sua geração. Spielberg ouviu a banda por intermédio dos filhos, gostou e fez o convite.

Os ingleses foram até a Universal Studios para uma reunião com o diretor – com direito a recepção no rancho dele e papo sobre fase bem antigas da série televisiva Além da imaginação. O papo sobre a série, diz Coombes, foi proposital, porque a banda sacou logo onde aquilo poderia dar. “Talvez eu estivesse tentando antecipar a abordagem cafona que seria sugerida, tipo a banda morando junta como os Monkees”, contou Coombes à Louder, que publicou um texto sobre o assunto.

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A proposta era tentadora. Mas eles disseram não. “Foi lisonjeiro e muito legal, mas ficou óbvio para nós que não queríamos pegar esse atalho”, explicou o vocalista, afirmando ter pensado que aquilo poderia significar o fim do grupo. “Você pode acabar morrendo em um quarto de hotel ou algo assim, ou então a produção quer apenas um de nós para a próxima temporada. Foi muito engraçado, respeitosamente muito engraçado”.

O tempo passou. E agora, em 2025, I should coco completa 30 anos (mas já?). O Supergrass, que se separou no fim dos anos 2000, voltou para tocar o disco na íntegra e alguns hits em festivais como Glastonbury e Ilha de Wight.

Aqui, o trio no Glastonbury de 2022.

Foro: Keira Vallejo/Wikipedia

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Crítica

Ouvimos: Lady Gaga, “Mayhem”

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Ouvimos: Lady Gaga, “Mayhem”

Tudo que é mais difícil de explicar, é mais complicado de entender – mesmo que as intenções sejam as melhores possíveis e haja um verniz cultural-intelectual robusto por trás. Isso vale até para desfiles de escolas de samba, quando a agremiação mais armada de referências bacanas e pesquisas exaustivas não vence, e ninguém entende o que aconteceu.

Carnaval, injustiças e polêmicas à parte, o novo Mayhem foi prometido desde o início como um retorno à fase “grêmio recreativo” de Lady Gaga. E sim, ele entrega o que promete: Gaga revisita sua era inicial, piscando para os fãs das antigas, trazendo clima de sortilégio no refrão do single Abracadabra (que remete ao começo do icônico hit Bad romance), e mergulhando de cabeça em synthpop, house music, boogie, ítalo-disco, pós-disco, rock, punk (por que não?) e outros estilos. Todas essas coisas juntas formam a Lady Gaga de 2025.

Algo vinha se perdendo ou sendo deixado de lado na carreira de Lady Gaga há algum tempo, e algo que sempre foi essencial nela: a capacidade de usar sua música e sua persona para comentar o próprio pop. David Bowie fazia isso o tempo todo – e ele, que praticamente paira como um santo padroeiro sobre Mayhem, é uma influência evidente em Vanish into you, uma das faixas que melhor representam o disco. Aqui, Gaga entrega dance music com alma roqueira, um baixo irresistível e um batidão que evoca tanto a fase noventista de Bowie quanto o synthpop dos anos 1980.

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Mais coisas foram sendo deixadas de lado na carreira dela que… Bom, sao coisas quase tão difíceis de explicar quanto as razões que levaram Gaga a criar um álbum considerado “difícil” como Artpop (2013), enquanto simultaneamente mergulhava no jazz com Tony Bennett e preparava-se para abraçar o soft rock no formidável Joanne (2016), um disco autorreferente que talvez tenha deixado os fãs da primeira fase perdidos. Em outro tempo, Madonna parecia autorizada a mudar como quisesse, mas quando Gaga fazia o mesmo, deixava no ar notas de desencontro e confusionismo. O pop mudou, as décadas passaram, o público mudou – e todas as certezas evaporaram.

É nesse cenário que Mayhem equilibra as coisas, entregando um pop dançante, consciente e orgulhoso de sua essência, mas ao mesmo tempo sombrio e marginal. Há momentos de caos organizado, como em Disease e Perfect celebrity – esta última começa soando como Nine Inch Nails, mas, se você mexer daqui e dali, pode até enxergar um nu-metal na estrutura. Killah traz uma eletrônica suja, um refrão meio soul, meio rock que caberia num disco do Aerosmith, enquanto Zombieboy aposta no pós-disco punk, evocando terror e êxtase na pista (por acaso, Gaga chegou a dizer que o disco tem influências de Radiohead, e confirmou o NiN como referência).

Na reta final, o álbum se aventura por outros terrenos: How bad do U want me e Don’t call tonight flertam com o pop dinamarquês dos anos 90 (e são, por sinal, as únicas faixas pouco inspiradas do disco); The beast tem cara de trilha sonora de comercial de cerveja; e Lovedrug mergulha na indefectível tendência soft rock que surge hoje em dia em dez entre dez discos pop. Essa faixa soa como um híbrido entre Fleetwood Mac e Roxette – como se Gaga  estivesse pensando também na programação das rádios adultas de 2035.

O desfecho de Mayhem chega como um presente para o ouvinte: Blade of grass é uma balada melancólica de violão e piano, que ecoa tanto a tristeza folk dos anos 70 quanto a melancolia do ABBA, crescendo em inquietação à medida que avança. E então, como quem perde um pouco o tom, o álbum termina com… Die with a smile, a já conhecida balada country-soul gravada em parceria com Bruno Mars, lançada há tempos como single. Dentro do contexto do disco, ela soa mais como um apêndice do que como um encerramento – uma nota de rodapé onde se esperava um ponto final. Nada que chegue a atrapalhar a certeza de que Lady Gaga conseguiu, mais do que retornar ao passado, unir quase todos os seus fãs em Mayhem.

Nota: 8,5
Gravadora: Interscope
Lançamento: 7 de março de 2025.

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