Crítica
Ouvimos: The Marías, “Submarine”
- Submarine é o segundo álbum do The Marías, uma banda indie-pop de Los Angeles, formada pela cantora María Zardoya (que é portorriquenha criada na Georgia), pelo baterista e produtor Josh Conway, pelo guitarrista Jesse Perlman e pelo tecladista Edward James.
- A banda começou a partir de um encontro entre María e Josh, numa casa de shows em Los Angeles – ela estave se apresentando e ele era o gerente. Começaram a compor juntos e iniciaram um namoro.
- María era fã da cantora mexicana Selena quando adolescente, e conta que sua família estranhou quando ela decidiu cortar o cabelo muitos centímetros abaixo do normal. “Em Porto Rico todo mundo tem cabelo comprido. Quer dizer, é tudo uma questão de ir ao salão de beleza e fazer uma limpeza semanal. Mas eu queria mudar!”, disse aqui.
O nome “submarino” não é apenas figura de linguagem. A sonoridade do The Marías sugere mergulho sonoro, como se algo estivesse musicalmente submerso ou flutuando, graças ao tom dream pop das composições e da produção. É a onda deles em Submarine, disco tão luminoso musicalmente quanto angustiado nas letras (e em alguns vocais).
Como acontece em Paranoia, basicamente uma canção sobre falta de comunicação num relacionamento marcado por grilo em cima de grilo (“sua paranoia é irritante/agora tudo que eu quero fazer é fugir”). O hit Run your mouth, indie pop dançante e repleto de synths e linhas de baixo sintetizado, mostra a cantora Maria Zardoya irritada com a verborragia e o narcisismo de algum relacionamento: “você só me chama quando eu estou distante/sempre fala demais/e eu não quero ouvir”. Esse tom dramático (e meio enjoativo, às vezes) dá mais as caras nas canções em espanhol do disco, Lejos de ti e Ay no puedo.
O poder de atração de Submarine rola na combinação de vocais doces, sintetizadores e batidas, além de letras que sugerem frustrações com alguma falha na comunicação – e que dominam o álbum. Tipo em Real life, synth pop abolerado cuja letra mistura conversas pelo FaceTime, traições, mentiras e vontade de transar. Vicious sensitive robot lembra um Radiohead mais pop, ou uma mescla de Thom Yorke com Sade Adu – se é que isso é possível.
O baião-drum’n bass Hamptons parece um filme de Pedro Almodóvar e não é à toa, em se tratando de uma banda que já lançou uma música chamada Hable com ella. O tema dos relacionamentos virtuais que trazem frustração atrás de frustração reaparece na baladinha No one noticed. Nem tudo é tão brilhante em Submarine, mas as surpresas são muitas.
Nota: 7,5
Gravadora: Nice Life/Atlantic
Crítica
Ouvimos: George Harrison, “Living in the material world – 50th anniversary edition”
Ouvido hoje em dia, Living in the material world, quarto álbum de George Harrison (1973), eternamente considerado “álbum mais espiritualizado” do cantor, soa mais do que pé-no-chão. Se não fossem os problemas jurídicos e a onda de processos que rolaram entre os quatro Beatles, além da desestabilização pessoal e amorosa vivida por Harrison, talvez o autor de Something estaria envolvido em outros tipos de busca, talvez tivesse feito outro álbum, quem sabe sua inspiração apontasse para outros lados.
Principalmente, talvez ele não tivesse feito um disco (hoje remasterizado em edição comemorativa, supervisionada pelo filho e pela viúva do artista) que responde a todos os problemas que ele vivia na época. E que, de quebra, serve como resposta aos ex colegas de banda. A bela Give me love (Give me peace on Earth) soa como espelho dos protestos “pacifistas” de John Lennon e Yoko Ono. Mas a letra, com versos como “me mantenha livre deste fardo/me dê esperança/me ajude a lidar com essa carga pesada”, entrega que algo não ia bem com o cara que, em meio às batalhas judiciais dos Beatles – um contra o outro e todos conta o ex-empresário Allen Klein – cunhou a frase “se algum dia conseguirmos sair daqui”, que Paul McCartney ouviu e chupou para o hit Band on the run.
No dia a dia, George lidava com um casamento que ia terminando, com as tentações do capeta (cocaína, álcool e escapadinhas matrimoniais) e com as contradições entre a vida espiritualizada e o dia a dia de um rockstar poderosão. Também lidava do seu jeito com um fato básico: os anos 1960 já tinham acabado, ele já andava pelos trinta anos (parece pouco hoje, era a proximidade da velhice para roqueiros em 1973), e não adiantava fazer um disco que não vendesse e não tocasse no rádio. Depois da explosão roqueira e do vômito criativo de All things must pass (1970), George entregou-se à união de country, rock e blues, e a uma visão particular e messiânica do que seria o rock adulto-contemporâneo nos anos 1970.
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- Tudo (ou quase tudo) sobre All things must pass, de George Harrison
Em Living, músicas como Give me love e Don’t let me wait too long estabeleceram um paradigma de rock violeiro, pop, belo e melancólico que ressoa até hoje. Sue me, sue you blues, zoação-de-sorriso-amarelo com a onda de processos envolvendo John, Paul, George e Ringo, não é exatamente um blues – lembra a onda folk que rolou na Inglaterra lá pelo começo dos anos 1970. The light that has lighted the world tem lá seus laços com a fase 1971/1972 dos Rolling Stones (a face mais acústica, de Wild horses) e com a mesma época na carreira de Neil Young – destaque para o piano de Nicky Hopkins e para a slide guitar do próprio Harrison, que aliás brilha em todo o álbum.
Uma curiosidade em Living é Who can see it, que não faria feio na voz de Paul McCartney – abre como uma balada de piano e ganha cordas que têm lá seus cruzamentos com The long and winding road. A faixa-título, por sua vez, é um rock com cara country e certo ar feroz, apesar da parte contemplativa lá da metade. A letra cita nominalmente dois de seus ex-colegas de banda (“John e Paul aqui no mundo real/embora nós tenhamos começado muito pobres/ficamos ricos numa turnê/e fomos pegos pelo mundo real”) e aparentemente só deixa Ringo de fora porque ele estava na banda de apoio do disco, tocando bateria ao lado de Jim Keltner.
O clima deprê-religioso de Living é reforçado pela melancolia de Be here now, pela esperançosa The day the world gets round (na qual a voz de Harrison parece que vai se despedaçar) e pela confusa Try some, buy some – é a mesma base da versão feita por Ronnie Spector em 1970, com a voz dela tendo sido apagada e substituída pela de George. Um quase momento de respiro é The lord loves the one (That loves the lord), um louvor dos mais esquisitos (“o senhor ajuda aqueles que ajudam a si próprios/e a lei diz que o que quer que você faça/retornará a você”), com uma melodia country-soul-rock marcada por piano Rhodes, metais, violão e bateria marcial.
O CD extra com takes de arquivo varia entre surpresas e coisas não lá tão legais, mas vale muito ouvir Sunshine life for me (Sail away Raymond), com George Harrison acompanhado por Ringo Starr e pela The Band que acompanhava Bob Dylan. O take 18 de Give me love traz só George acompanhando-se ao violão, e revela o quanto essa música reverberou nas tentativas de fazer pop-rock acústico, aqui no Brasil (de Raul Seixas e Rita Lee a Nando Reis, passando por Lulu Santos e Dalto, todo mundo se inspirou lá).
Nota: 9
Gravadora: Dark Horse Records/BMG
Crítica
Ouvimos: Kim Deal, “Nobody loves you more”
- Nobody loves you more é o primeiro álbum solo de Kim Deal (Pixies, Breeders). As faixas mais antigas, Are you mine? e Wish I was, foram compostas em 2011, e versões inicias delas foram incluídas em uma série independente de cinco discos de vinil de sete polegadas lançada em 2013.
- O disco foi tendo, ao longo de seu preparo, uma longa lista de colaboradores – que inclui gente dos Breeders (Kelley Deal, Jim MacPherson, Mando Lopez, Britt Walford), o ex-guitarrista do Red Hot Chili Peppers, Josh Klinghoffer, e o produtor Steve Albini, que chegou a comandar algumas gravações de cordas. Kim lembrou ao site Exclaim que construiu muito do disco no ProTools.
- Boa parte do disco foi inspirada no tempo que Kim passou cuidando de sua mãe Ann (que teve alzheimer por 18 anos), seu pai Robert e seus tios, todos falecidos entre 2019 e 2020. “Eu estava morando com eles e cuidando deles. Então é só… não sei, talvez seja por isso que não é um disco de festa. Há algo sobre assistir alguém perder algo todos os dias por 18 anos”, disse.
Definir para que lado Nobody loves you more, primeiro disco solo de Kim Deal, aponta, é mais do que complicado , Afinal, depois de tanto tempo que ela passou ligada a dois grupos de forte presença (Pixies, que deixou em 2013, e Breeders), o álbum surge quase como um relato de sua história musical. Mas com algumas diferenças.
Para começar, ainda que Kim tenha revisitado duas canções da série de compactos que gravou há mais de dez anos (Are you mine? e Wish I was reaparecem no novo álbum), o esquema é outro. Mesmo nos momentos mais ruidosos e experimentais, o som de Kim não soa cru. Soa é muito bem produzido, com direito a cordas e metais tornando o álbum uma experiência bem mais rica musicalmente.
O conceito de “canção pop” de Kim Deal passa necessariamente pelas baladas dos anos 1950 e 1960, pelo punk, por Lou Reed, por música orquestral. A faixa-título, que abre o álbum, reúne tudo isso – com direito a um ar de trilha sonora e de big band garantido pelas cordas e metais. Coast, na sequência, volta nas bases simples da música das Breeders, só que com mais retoques finais, além de metais que trazem uma nostalgia quase latina para a música – não custa lembrar que a ideia da canção é falar sobre bandas que tocam em casamentos.
Já Crystal breath abre com um clima psicodélico que chega a lembrar Mutantes, embarcando num pós-punk quase marcial. Wish I was e Are you mine?, relidas aqui, fazem as versões originais soarem como pérolas lançadas em singles pouco conhecidos, que ganharam melhorias feitas em versões gloriosas e bem sucedidas feitas por outros artistas – a primeira traz ecos de Suspicious minds, sucesso gravado por Elvis Presley.
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Num disco solo de Kim, não poderia faltar o lado mais experimental e lo-fi, que surge na velvetiana e revoltada Disobedience, nos ruídos e no batidão quase metal-funk de Big ben beat, na união de ruído e beleza de A good time pushed e na quase balada/quase shoegaze Come running, que fecha em tom sombrio e punk, com bateria ralentando. A vinheta instrumental Bats in the afternoon sky é o momento de respiro psicodélico do disco, assim como Mad Lucas dividia The last splash, álbum das Breeders – só que aqui num clima mais tranquilo. Summerland, uma canção nostálgica que fala sobre férias com os pais na infância, leva um inusitado clima de Burt Bacharach para o álbum, graças às intervenções da orquestra.
Provavelmente, Nobody soa até mais grandioso do que alguns fãs de longa data de Kim, acostumados com o tom quase punk das Breeders, esperavam. Mal sabiam eles. No geral, soa como se Kim estivesse sendo, de verdade, e finalmente, ela mesma. Sem a proteção de uma banda, sem a faceta de musicista durona e indie do rock 80’s/90’s – por acaso, num papo revelador com o periódico The Guardian, ela não deixou de falar sobre Nobody ser o primeiro álbum de sua história em que ela aparece na capa. É ela mesma que está ali em cada detalhe.
Nota: 9
Gravadora: 4AD
Crítica
Ouvimos: Batata Boy, “MAGICLEOMIXTAPE (quando vê, já foi)”
- MAGICLEOMIXTAPE (quando vê, já foi) é o disco novo do beatmaker alagoano Batata Boy, ou Leonardo Acioli, seu nome verdadeiro. Na lista de convidados estão nomes como Ana Frango Elétrico (que fez também a arte da capa), Jadsa, Bruno Berle, Luiza de Alexandre, dadá Joãozinho, Vitor Milagres, L444U, yung vegan, Ico dos Anjos, snowfuks, Virgínia Guimarães, Saci, alici, ori music e maxixe.
- O disco foi feito em meio às turnês que Batata vem fazendo pelo mundo. Ele diz que, por causa da agenda, foi fazendo o disco com o tempo. “Muitos beats surgiram em jams comigo mesmo. Gosto de, no estúdio, ter tudo ligado e conseguir chegar no som que eu quiser a qualquer momento. Foi uma onda. Levou um bom tempo a parte de edição. Quando cheguei em 80% do disco, os últimos 20% levaram um bom tempo. E é uma parte cansativa, mas vale a pena, né? Cheguei a fazer viajando por muitos lugares, e foi difícil, mas eu gosto também. É essa coisa de retalhar. Eu gosto de colagem”, disse ao site Monkey Buzz.
O subtítulo do disco novo de Batata Boy não é brincadeira: se você escutar MAGICLEOMIXTAPE distraidamente, pode acabar ficando assustado com a duração curta, e com os universos musicais para os quais o álbum aponta num tempo tão curto. É um disco de colagens, colaborativo, em que estilos como hip hop, trap, funk e drum’n bass são passados num filtro lo-fi e quase punk, de faça-você-mesmo, em alguns momentos.
O álbum traz o tom frenético de Pode ligar (Foi bom com você), feita ao lado de Ana Frango Elétrico e Yung Vegan, o clima de samba eletrônico e psicodélico de Todas as metas, o trap romântico e safado de Domingão, Maceió (com o rapper e beatmaker Saci) e o tom meio psicodélico, meio eletrobossa de Quero te lamber (com Luiza de Alexandre, Virginia Guimarães e Ori Music). São faixas que mostram o lado variado musicalmente de Batata Boy, com várias texturas sendo exploradas, às vezes numa mesma faixa.
Dadá Joãozinho participa num soul caseiro que lembra o estilo de Sade (I wanna get to say love). Já músicas como Technocoração, com Jadsa, e Certeza de te amar, com Ico dos Anjos, sugerem mergulhos na psicodelia eletrônica, com ruídos e efeitos em torno dos sons. Um som que faz voar.
Nota: 9
Gravadora: Batata Records
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