Crítica
Ouvimos: Sophie, “Sophie”

- Sophie é o segundo disco, e primeiro álbum póstumo, da DJ e produtora inglesa Sophie. Foi feito a partir de gravações que ela vinha finalizando, e teve produção do irmão dela, Benny Long, que tomou à frente na produção após a morte da artista.
- Em 30 de janeiro de 2021, aos 34 anos, Sophie morreu ao cair acidentalmente do telhado de um prédio de três andares em Atenas, Grécia, enquanto tentava tirar uma foto da lua cheia. Artistas como Rihanna, Sam Smith, Vince Staples e Charli XCX deram declarações de condolências. Brat, disco novo de Charli, tem uma homenagem a ela na faixa So I (a letra: “quando eu faço músicas, lembro das coisas que você sugeria/’acelere mais’/será que você gostaria dessa música?”).
Há notícias de que a DJ e produtora Sophie estava preparando um álbum bem pop antes de morrer prematuramente. A artista britânica vinha trabalhando em casa na sequência do segundo álbum, Oil of every pearl’s un-insides (2018), e levando adiante uma carreira que se tornou conhecida pela criação de texturas e atmosferas sonoras, que influenciaram de Pet Shop Boys a Charli XCX.
Músicas mais antigas como It’s okay to cry, Vyzee, Ponyboy e Lemonade soam mais como pequenas mixtapes, miniexperimentos de estúdio, prontos para serem esticados por DJs e produtores como módulos dançantes – o tipo de som que funciona na pista de dança e vira viagem individual quando ouvido em casa. E que, como costuma acontecer em projetos de produtores, permite a entrada de obras em progresso lado a lado com canções prontas.
Essa noção de que o inacabado tem seu tempo e lugar é o que permeia Sophie, primeiro álbum póstumo da DJ e produtora – e um disco cuja conexão com o ouvinte é imensa, o que já era comum na obra dela (não se lança uma música chamada “é Ok chorar” à toa, enfim). O material abre com uma canção climática, monocórdica e fantasmagórica, Intro (The full horror), que se aproxima mais do rock alemão dos anos 1970 do que da dance music. Repletas de participações, as dezesseis faixas assemelham-se mais a beats e criações nas quais Sophie vinha trabalhando, embora, segundo a família, componham um disco que já estava quase completo em 30 de janeiro de 2021, quando a produtora morreu.
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Como costuma acontecer em discos póstumos, sempre parece que algo está faltando – no caso, Sophie entregou os vocais para convidados como Cecile Believe, Liz e a controversa Nina Kraviz, que dão um ar mais humano a músicas como o popzão de FM My forever, a atmosférica The dome’s protection e ao house irretocável de Why lies e Live in my truth. O techno mais frenético surge na experimental Berlin Nightmare e no gabber de Gallop – ambas com participações de Evita Manji – e na parte final de One more time. Não há nenhuma faixa mal diagramada no disco, mas em alguns momentos, fica a ligeira impressão de que muita coisa de Sophie ainda seria repensada, e que estava sendo gravada quase como um mostruário de trabalho – como se alguns beats pudessem ser reaproveitados aqui e ali.
Nos títulos e nas letras (ou frases usadas como letras simples), dá para perceber que Sophie acreditava de verdade em sua música como fator de transformação e de proximidade. E essas são as melhores características do disco. Não deve ser por acaso que o álbum termina com a bela e dançante Love me off Earth (“ame-me fora da Terra”), quase uma mensagem post mortem para seus fãs, num clima bem mais ameno do que o próprio começo do disco.
Já Always and forever, um house celestial e discreto (que pedia um remix ou uma segunda parte com beats mais fortes) gravado com a amiga Hannah Diamond, parece uma carta dos amigos para Sophie: “tudo está se afastando/para mais e mais longe/(…) para sempre e para sempre/estaremos brilhando juntos”. Esse clima de mensagens trocadas quase como numa tábua ouija é o que mais fica na mente no fim da audição.
Nota: 7
Gravadora: Transgressive Records/Future Classic
Crítica
Ouvimos: Jimi Hendrix, “Electric Lady Studios: A Jimi Hendrix Vision”

A morte mais lamentável da história do rock? A de Jimi Hendrix. Sem discussão. Hendrix não foi apenas um gênio da guitarra — ele redefiniu o próprio som do rock, trazendo uma visão futurista e tecnológica para um instrumento que virou símbolo do estilo. Deixou um legado vasto, criativo e barulhento: uma verdadeira biblioteca de riffs e invenções sonoras que continua sendo explorada desde 1970, ano de sua morte. Do rock clássico ao punk, do grunge ao indie dos anos 1980, passando pelo pós-punk e por tudo que veio depois, não houve quem ficasse imune à sua influência.
Como sempre aparece algo novo no baú de Hendrix, nada relacionado a ele parece definitivo. Por isso, é arriscado classificar Electric Lady Studios: A Jimi Hendrix Vision como o guia definitivo das gravações feitas pelo músico nas únicas dez semanas em que usou o Electric Lady, estúdio que ele começou a construir em 1968. O espaço enfrentou inúmeros percalços até ser concluído — e acabou sendo inaugurado pouco antes da morte de Jimi. O box, lançado em cinco LPs de vinil ou três CDs, reúne 39 faixas gravadas por Hendrix ao lado de sua última banda, a Band of Gypsys, com o baixista Billy Cox e o baterista Mitch Mitchell.
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Trinta e oito dessas gravações são inéditas, e trazem primeiras versões de músicas que sairiam em discos póstumos como The cry of love (1971) e First rays of the new rising sun (1997). No geral, são faixas que traziam uma pista de como Hendrix soaria nos anos 1970, caso tivéssemos sido poupados da morte dele. O criador do disco duplo Electric ladyland (1968) estaria provavelmente fazendo rock rajado de soul e jazz, e seguindo por um caminho que grupos como Lynyrd Skynyrd e até Neil Young & Crazy Horse pegariam: country rock estradeiro e igualmente influenciado por soul e gospel.
Muitas canções que estão em Electric Lady Studios trazem fragmentos que, anos depois, seriam chupados por outros artistas, de Robin Trower a Lenny Kravitz (o riff de Are you gonna go my way deve muito a Ezy ryder). Valleys of Neptune é hard rock com cara soul dada pelo piano Rhodes. A extensa The long medley (26 minutos!) parece contar com antecedência toda uma história posterior da guitarra, que passa por Herbert Vianna, Eddie Van Halen e Joey Santiago (Pixies) entre outros. Quem tiver interesse em ouvir uma música tão longa, ganha de Hendrix um “depois que eu partir, vai ficar assim!”.
Do repertório de Electric Lady Studios constam também os primeiros templates de músicas que mostravam o poder de Hendrix como criador de melodias, como Room full of mirrors, Drifting e a balada sonhadora Angel. Além do progressivo motorbiker (lembrando Blue Cheer) de Earth blues, e do blues voador de Night bird flying. Tire um dia inteiro para escutar, nem que seja só nas plataformas digitais.
Nota: 10
Gravadora: Sony
Lançamento: 4 de outubro de 2024
Crítica
Ouvimos: David Longstreth, Dirty Projectors e Stargaze, “Song of the Earth”

Beach Boys, Stereolab, Crosby Stills Nash & Young, Moody Blues, Mutantes e até os Beatles do álbum Abbey Road (1969) residem em Song of the Earth, projeto do músico David Longstreth com seu grupo Dirty Projectors e a orquestra de câmara berlinense Stargaze. É um disco de música clássica feito por quem tem os dois pés no universo do rock e da música pop, com sonoridade luminosa e, às vezes, psicodélica.
Trazendo uma lista de colaboradores que inclui Phil Elverum, Steve Lacy, Patrick Shiroishi, Anastasia Coope, Ayoni, Portraits of Tracy e até o brasileiro Tim Bernardes (que surge na “voz de rádio”, gravada como se fosse um registro antigo, da vinheta Appetite), Song of the Earth tenta pôr em música e letra os problemas que surgiram de incêndios florestais na Califórnia em 2020. São 24 faixas, que somam 64 minutos de audição, abertas pela felicidade de Summer light e Gimme bread. E prosseguidas pelo contraste entre luz e sombra de At home, que soa como luz entrando num ambiente escuro, Circled in purple, Opposable thumb (com “piano preparado” e tom de trilha de programa de rádio) e Our green garden – essa última faz lembrar discos orquestrais antigos.
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Muita coisa em Song of the Earth, já que falamos em trilhas, lembram aqueles desenhos animados antigos que usavam música clássica para sublinhar travessuras de personagens ou voos de pássaros. Unhabitable Earth, paragraph one mescla orquestra, reggae e pós-punk “espacial” para falar dos perigos do aquecimento global. E surge quando o conteúdo de Song of the Earth começa a ficar mais tenso – os metais rangendo de So blue the lake dão a impressão de que uma coisa perigosa pode acontecer, Armful of flowers e Twin aspens são belas peças musicais que soam como algo provocativo. Algo que opera entre os Electric Prunes de Mass in F minor (1968), Tom Jobim e Clube da Esquina surge em More mania e Spiderweb at water’s edge.
Com produção feita de 2020 em diante, Song of the Earth acabou, por coincidência, sendo finalizado quando a Califórnia vive problemas causados por outros incêndios. É um disco que também exige tempo do ouvinte, e exige uma atenção não apenas à música, mas também às questões levantadas por ele. Na parte final, Raven ascends encapsula a sensação de perigo do disco, Blue of dreaming leva a linguagem do álbum para um soft rock orquestrado, e Raised brow é uma vinheta vertiginosa em que cordas vão “levantando” aos poucos. Um disco de fôlego.
Nota: 10
Gravadora: Trangressive Records
Lançamento: 4 de abril de 2025
Crítica
Ouvimos: Black Country, New Road, “Forever howlong”

Esqueça completamente aquele Black Country, New Road dos primeiros tempos. O BCNR do novo disco Forever howlong tem mais a ver com bandas como Beatles, Moody Blues e Pretty Things, e até com o lado operístico do 10cc (de faixas como Une nuit à Paris) do que com qualquer sonoridade mais destrutiva. Boa parte do álbum poderia ter sido arranjada por George Martin.
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Um exemplo: o single Besties, um hino à amizade e à sororidade, lembra Beatles no arranjo, na melodia, no título (quando deparei com a faixa numa plataforma, li mal lido e entendi “Beatles” mesmo) e nas linhas vocais claramente decalcadas de My love, de Paul McCartney. Outros: Two horses parece ter se inspirado em Because, do Abbey Road, e faixas como Socks e The big spin parecem mexer no legado do começo dos Wings.
Isso é ruim? O disco é ruim? Claro que não – talvez tudo só soe mais confuso para quem era fã da fase inicial, com o vocalista Isaac Wood. O Black Country New Road faz questão de expor sua nova fase orquestral em fotos de divulgação que fazem com que a banda se pareça menos com um grupo de rock, e mais com um grupo de música antiga prestes a fazer um concerto numa igrejinha em Ouro Preto – com direito a meninas de um lado e meninos do outro.
Faixas como Salem sisters mexem simultaneamente com o lado “espacial” dos Beach Boys e com uma espécie de soft rock orquestral, enquanto faixas como Mary soam próximas de bandas como Jefferson Airplane. Há algo de evidentemente perturbador em faixas como Happy birthday, basicamente uma zoação em cima de moleques bem-nascidos que se sentem vítimas do mundo, e no som de cavalaria de For the cold country. O clima mágico da faixa-título lembra algo de Judee Sill e até de Suzanne Vega, e muita coisa do disco, em geral, tem aquele mesmo clima da fusão entre progressivo e jazz que marcou bandas como Soft Machine, Focus e até o Yes, em alguns momentos.
No fim das contas, Forever howlong deixa mais dúvidas do que certezas. As novas letras do Black Country New Road soam estranhas, meio sem filtro, com uma beatitude meio esquisita – aquela coisa típica de quem cruzou a linha fina entre a consciência e a chatice, um mal do qual o Arcade Fire e até o U2 sofreram em alguns momentos. As qualidades do disco valem a pena, mesmo talvez não sendo o que se esperava ouvir deles, e o que mais chama a atenção é a ousadia. Nesse quesito, ganham vários pontos.
Nota: 8
Gravadora: Ninja Tune
Lançamento: 4 de abril de 2025
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