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Crítica

Ouvimos: Nick Cave and The Bad Seeds, “Wild god”

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Ouvimos: Nick Cave and The Bad Seeds, "Wild god"
  • Wild god é o décimo-oitavo disco de Nick Cave ao lado de sua banda The Bad Seeds. Para o músico, se trata de um “disco complicado”, mas simultaneamente “profundamente e alegremente contagiante” – ele afirma que o álbum reflete o estado de espírito feliz de sua banda.
  • Os Bad Seeds hoje são Nick Cave (voz), Warren Ellis (teclados, flauta, violino, guitarra), George Vjestica (guitarra, violão), Martyn P. Casey (baixo), Thomas Wydler (bateria) e Jim Sclavunos (vibrafone, percussão, backing vocals). Nick e Warren produziram o álbum.

Não dá para ouvir Wild god, novo disco de Nick Cave and The Bad Seeds, e ficar indiferente. Se for para tentar comparar com o espaço emocional que outros discos ocuparam na história da música recente, a primeira lembrança é a da fila de uma certa loja varejista, poucos dias após a morte de Renato Russo (1960-1996), cheia de fãs da Legião Urbana levando A tempestade, último disco do grupo liderado por Renato (1996). Boa parte dos fãs estava com lágrimas nos olhos ao levar o disco (sim, na fila da loja) e a audição de músicas como A via-láctea teria outro sentido a partir daí.

Não foi muito diferente do que aconteceu com Blackstar, último disco de David Bowie (2016), e A panela do diabo, último álbum de Raul Seixas, dividido com Marcelo Nova (1989) – no qual Raul falava sobre “o curto sonho da vida” na faixa Nuit. São álbuns marcados pelo luto, só que no caso de Nick Cave, a despedida não é do narrador-personagem. Nick, que já havia perdido um filho em 2015, Arthur, viu outro partir recentemente – Jethro, em 2022.

Se o tema “morte” pairava sobre a obra de um sujeito que já lançou um disco chamado Your funeral…my trial (1986), e já vivenciou estados depressivos e bem sinistros por causa da heroína, o clima aqui não é de flerte com a ceifadora, mas do aprendizado com experiências reais e bastante dolorosas. Já era o que havia acontecido em Skeleton tree (2016, feito sob o impacto da morte de Arthur) e Ghosteen (2019), mas imagine o que acontece após duas experiências dolorosas.

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Qualquer disco de Cave foi feito para que o cantor soe como um contador de histórias extremamente profundas, de teor quase religioso, mas sem direito a fé cega, ou a um “deus intervencionista” (como ele próprio cita na letra de Into my arms). Parece muito com a energia dos álbuns de Leonard Cohen, cantor/poeta que Nick já disse considerar “o maior de todos”. Wild god é outra atmosfera, falando em sonhos perdidos, coisas que vão se dissolvendo e na sensação reconfortante de que o que não tem remédio, remediado está. Song of the lake, a música grandiloquente da abertura, e de clima musical parecido com Radiohead e The Smile (por acaso Colin Greenwood, das duas bandas, toca baixo no disco), segue dessa forma, com Lake inserindo uma verdade enorme na letra e na interpretação.

Essa verdade é o motor de Wild god. A faixa-título, uma balada que segue entre Bob Dylan e o David Bowie de 1969/1970, fala sobre um deus bem humano, que deseja que seu espírito seja “trazido para baixo”. Frogs é um conto sombrio que tem versos como “tire essa arma da sua mão/porque tudo ficará bem”. A camerística Joy fala de alguém que acorda “com a tristeza em volta da cabeça/como se alguém da minha família tivesse morrido”. O folk Final rescue attempt encerra com o verso “eu sempre amarei você”, repetido várias vezes.

Questionamentos sobre fé e amor, além da constatação de que não dá mesmo para fugir da tristeza, surgem em canções como a balada gótica Cinnamon horses, e as mortalmente tristes Long dark night e As the waters cover the sea. Chega a soar estranho quando uma nota de sensualidade invade O wow O wow (How wonderful she is), em versos como “ela se levanta antes tirar a calcinha/posso confirmar que deus realmente existe”. Não é o principal tema de Wild god, um disco que claramente Cave fez, ao lado de sua banda, para lidar com as perdas da forma mais prática possível.

Nota: 9
Gravadora: PIAS

Crítica

Ouvimos: Anika – “Abyss”

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Ouvimos: Anika - "Abyss"

RESENHA: Anika mistura pós-punk, krautrock e sons ritualísticos em Abyss, disco sombrio e cru sobre confusão, fuga e relações quebradas.

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Anika vem de Berlim, Alemanha – você vai perceber isso logo que escutar as primeiras faixas de seu terceiro álbum, Abyss. Além do sotaque fortíssimo (ela canta em inglês), os vocais remetem logo a Nico e às tentativas musicais de Christiane F (a própria). Na verdade, quase dá pra dizer Anika soa como uma filha perdida de Nico e Iggy Pop, só que criada por Lou Reed e tendo Ian Curtis como padrinho.

Procurando, ou até sem procurar, você acha toda essa vibe em Abyss, disco de pós-punk duro, de krautrock, gravado quase totalmente ao vivo, e variando da crueza punk às aclimatações tecno (a abertura, com Hearsay), e aos sons de garagem dos anos 1960/1970 – nesse caso, a faixa-título, que lembra Stooges e a era do disco Funhouse, de 1970. Anika segue com o ruído distorcido de Honey, o power pop em preto-e-branco de Walkaway (que chega a lembrar Ramones), o punk ruidoso e dramático de Into the fire – cuja guitarra remete à intro de Life goes on, do The Damned.

O repertório de Abyss é endereçado a quem já se sentiu confuso/confusa demais para entender o mundo e já quis fugir. Essa sensação de desnorteio, de abismo (“abyss”, enfim) permeia todas as letras do álbum, passando pela desassociação de Oxygen, pelos relacionamentos falsos da faixa-título, pelo clima destrutivo de One way ticket e de Walk away. Com referências assumidas de Genesis P-Orridge, Anika também embarca em sons ritualísticos em Out of the shadows (com ruídos misteriosos na abertura). Sem deixar de evocar The Cure e até o lado mais sombrio dos Rolling Stones em Last song e na velvetiana Buttercups.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8,5
Gravadora: Sacred Bones Records
Lançamento: 4 de abril de 2025.

  • Ouvimos: The Cure – Mixes of a lost world
  • Joy Division antes, durante e depois do fim, no nosso podcast
  • Relembrando: Iggy Pop – New values (1979)

 

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Crítica

Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – “Curse” (EP)

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Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra - "Curse" (EP)

RESENHA: Curse, novo EP do Unknown Mortal Orchestra, mistura terror, lo-fi e riffs setentistas num som sujo, psicodélico e estranho, mas cativante.

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O único disco mais, digamos, orientado para o mainstream da Unknown Mortal Orchestra é V, de 2023. O restante do trabalho do grupo de Ruban Nielson inclui grooves psicodélicos, singles de 27 minutos (!) e improvisações bem estranhas – como em IC-02 Bogotá, resenhado aqui. Pois bem: Curse, novo EP do grupo, se equipara a V e consegue ser mainstream sendo, ao mesmo tempo, esquisito pacas.

Curse foi inspirado nos giallos, filmes italianos de terror, e de quebra, inspirou-se também nessa época maluca de tirania no poder norte-americano, desgraças nos jornais, violência e outros temas nada amenos. Ruban inspirou-se também, claro, na ondinha que vem se erguendo de produções lo-fi – o repertório do EP parece ter sido gravado em fita K7. Dessa vez, as referências mais comuns da UMO desapareceram e o grupo se transforma numa daquelas bandas desconhecidas de rock pauleira dos anos 1970 que, lá por 2005, geral baixava de blogs, comunidades do Orkut ou endereços do 4shared e do Rapidshare.

Daí, se o papo é terror e porrada, mais fácil comparar a nova Unknown Mortal Orchestra com formações pouco lembradas como o Buffalo (o Black Sabbath australiano dos seventies) e Black Widow (a “outra” banda britânica que falava de temas ocultistas há uns 50 anos). Curse tem essa mesma aura underground, exibida na introdução aterrorizante de Aura, na riffarama de Boys with the characteristics of wolves e Sorcerers of silence, no metal ambient One hundred bats, na aura grunge de Death comes from the sky. No fim das contas, Curse soa como uma trilha sonora psicodélica para um pesadelo vintage – estranhamente atual, perigosamente sedutor.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8
Gravadora: JagJaguwar
Lançamento: 18 de junho de 2025

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Crítica

Ouvimos: Ultrasonho – “Nós nunca vamos morrer”

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Ouvimos: Ultrasonho - "Nós nunca vamos morrer"

RESENHA: O Ultrasonho estreia com um disco aterrorizante, Nós nunca vamos morrer, feito de colagens sonoras, jingles, discursos e ruídos que assombram como fantasmas.

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O projeto paranaense Ultrasonho (ou U L T R A S O N H O, como costuma estilizar o nome) faz música para meter medo, perturbar. Nós nunca vamos morrer, primeiro álbum do projeto criado por Thomas Blum, é formado por estranhas colagens sonoras que mexem com o conceito da hauntology (fantologia), de elementos da cultura do passado que assombram o presente como fantasmas.

Ouvir Nós nunca vamos morrer é tomar contato com esses fantasmas – e com sons que não são reconhecíveis à primeira vista, mas logo vão tomando forma. Nervos de aço, na abertura, é um vaporwave aterrorizante com sintetizador aludindo aos anos 1980, gravação de desenho animado e tom de Richard Clayderman dos infernos – até que tudo é acelerado. Tem de haver uma resposta une discursos de políticos, propagandas antigas da Bombril, jingles e trechos de I know there’s an answer, dos Beach Boys. Narrações e sons da natureza, em meio ao clima sombrio, animam Quem realmente está livre.

  • Ouvimos: Manco Capac – Bom jantar (EP)
  • Ouvimos: Fluxo-Floema – Ratofonográfico
  • Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – Curse (EP)
  • Ouvimos: Anika – Abyss

Um detalhe interessante sobre o Ultrasonho é que Thomas acha terror em sons que vemos como naturais. Baclofeno midnight faz de sons de rádio e de uma propaganda de creme dental (!) puros manifestos sobrenaturais. Um conto infantil de extremo mau gosto, narrado com sotaque sulista, dá o tom em Os meninos pregados, enquanto até mesmo o piano romântico de Dolce frequentiae aterroriza, ao lado de vários samples de voz. Preciso desinstalar meu instagram é um blues medonho, que reduz o pitch de uma gravação de voz de Silvio Santos – o “patrão” fica parecendo um zumbi.

Muita coisa de Nós nunca vamos morrer vem do rádio, transformado em uma caixinha de sons assustadores em Infinitu scrimu, e subvertido de forma irônica em Relatos de um pai ausente, em que colagens criam a frase “a maioria das pessoas trabalha de 96 a 98 horas por dia” e transformam o dia a dia de um filho com pai sumido em um corredor sombrio. No final, a faixa-título mistura musica de faroeste e uma onda sonora de vozes distorcidas e sons superpostos. Se o álbum do Ultrasonho fosse uma colagem de imagens, você não conseguiria assistir duas vezes.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8
Gravadora: Hominis Canidae REC
Lançamento: 5 de junho de 2025.

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