Crítica
Ouvimos: Elza Soares, “No tempo da intolerância”

- Primeiro disco póstumo de Elza Soares, No tempo da intolerância começou a ser feito tão logo a cantora lançou Planeta fome (2019). A ideia dela foi fazer um disco autoral – sete das dez faixas têm Elza como autora ou coautora.
- Quatro faixas do disco são compostas por Elza com o empresário Pedro Loureiro, e com a dupla Umberto Tavares e Jefferson Junior. O repertório é complementado por músicas feitas por mulheres, com ou sem Elza: Rita Lee (com Roberto de Carvalho em Rainha africana), Pitty (Feminelza), Josyara (com Elza em Mulher pra mulher), Isabela Moraes (Quem disse?) e Dona Ivone Lara (com Elza e Pedro em No compasso da vida).
- A letra de Rainha africana foi publicada no livro Outra autobiografia, de Rita Lee, antes de sair em disco. Segundo Rita, Elza lhe pediu a música pouco antes da autora de Ovelha negra ser diagnosticada com câncer. “A letra baixou em dez minutos”, contou no livro. Roberto de Carvalho fez a música e imediatamente o casal foi ao estúdio na garagem gravar uma demo, no mesmo dia. “Tive que me esforçar mais pra cantar, coisas do tumor que já estava ali”, lembrou Rita.
A primeira coisa que chama a atenção em No tempo da intolerância, disco póstumo de Elza Soares, é que ele foi montado como um set (no sentido DJ da coisa). Ou como um show em que a peteca não pode cair. O som é contínuo nas primeiras faixas, o clima de mensagem na garrafa não encerra até o fim do disco, tudo aparece no momento certo, em letra e música. O material deixado por Elza (e gravado por ela um ano antes de sua morte) parecer ter sido gravado na noite de ontem. E relaciona-se com uma tristeza e um preconceito que, infelizmente, está nas esquinas há séculos.
Em certo casos, o material abre um furo no tempo dos sambas dos anos 1960/1970 que falavam do “antigamente” (como Saco de feijão, imortalizado por Beth Carvalho, que lembrava de uma época em que era possível comprar um saco do alimento com um tostão). Em especial na faixa-título, sobre um tempo “da intolerância” que parece falar do passado. Mas está aqui do lado, na esquina – com direito à citação “como dizia Luther King/se você quer um inimigo/é só falar o que pensa”. Mais buracos abertos no tempo: a voz de Elza Soares surge remoçada, com balanço mais próximo de suas gravações mais antigas, do que nos discos mais recentes.
>> Mais discos no Pop Fantasma aqui.
O som do disco une samba, funk e, como um pequeno recado em meio aos arranjos, baixo/bateria que lembram as bandas do pós-punk que se bandearam para a união com funk, ou que parecem lembrar (isso surge discretamente no afrobeat Coragem). Fragmentos da vida de Elza surgem em todo o disco, repleto de frases de efeito e de um clima sincero que lembra o dos álbuns de hip hop. Isso acontece até mesmo num bolero, Te quiero – que apesar do título, fala de um amor ruim que precisava acabar (“eu não divido o presente/com alguém do passado/que não tem futuro”). Também surge com força na fala de abertura de Elza na vinheta Justiça (um depoimento falado, gravado em 2018). E no samba-funk-reggae Mulher pra mulher (A voz triunfal), de versos como “vai ter que pautar, escutar, incluir/no seu feminismo de bandeira branca/a minha pele negra”.
Já Rainha africana, emocionaria apenas por ter sido composta por Rita Lee e Roberto de Carvalho, e por ser um encontro de rainhas que partiram com pouco tempo de distância – mas tem ainda o arranjo orquestral e o clima mágico da canção. No final, tem No compasso da vida, que une duas compositoras, Elza Soares e Dona Ivone Lara, na batuta da Elza dos anos 1970, só que com cara moderna. Um disco vencedor e solidário.
Gravadora: Deck
Nota: 10
Crítica
Ouvimos: YMA – “Sentimental palace”

RESENHA: Em Sentimental palace, YMA cria um hotel onírico de sons psicodélicos, misturando dream pop, jazz e eletrônica com charme e imaginação.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 9
Gravadora: Matraca Records
Lançamento: 23 de outubro de 2025
- Quer receber nossas descobertas musicais direto no e-mail? Assine a newsletter do Pop Fantasma e não perca nada.
“Um hotel onírico, ocupado pelo inconsciente, vira abrigo e pista de dança”, diz a primeira frase do release de Sentimental palace, segundo álbum de estúdio da paulistana YMA. Na real, vale dizer que Sentimental, pela sua psicodelia inerente, e pelas várias portas da percepção abertas por instrumentos musicais, vozes, climas e ruídos, soa como uma versão noturna, eletrônica e chique de Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida, álbum dos Mutantes creditado apenas a Rita Lee e lançado em 1972.
Musicalmente, são dois discos que caminham por lugares bem distantes, mas há uma ligação sonhadora e psíquica entre eles que não dá para ignorar. A faixa-título, que abre Sentimental palace, apresenta um passeio pelo tal hotel onírico, guiado pela voz jazzística e doce de YMA, que parece narrar várias cenas, em meio a ruídos de passos e de portas abrindo. Fritar na areia!!!, aberta por barulho de fritura (!), soa como um ambient praiano, em que a voz dela lembra a de Rite Lee – e em que climas lembrando Kraftwerk, blues, jazz, dream pop e até uma versão drum n’ bass do Pink Floyd vão se seguindo.
- Ouvimos: Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo – Música do esquecimento
- Ouvimos: Jup do Bairro – Juízo final
O passeio pelo hotel continua com a bossa pop e jazzística de 2001, com a vibração meio Secos & Molhados, meio Melody’s Echo Chamber de La femme, a onda dream pop e sexy de Dentro de mim (cuja melodia, em alguns momentos, chega a lembrar uma trilha de filme antigo da Disney) e um experimentalismo sonoro próximo do pós-punk em Te quero fora (com Lucas Silveira, do Fresno) e na balada melancólica e ruidosa Ruído branco. Já Lagosta, ostra, ruídos de mastigação abrem a declamação jazz-punk de Jup do Bairro e YMA sobre alimentos caros em pratos fundos de metal, luxos vetados para muita gente, e que na verdade escondem lixos.
Existe um lado pop-clássico em Sentimental palace, e ele surge em faixas como Passageira S. (que soa como uma Marina Lima mutante), no clima doce e tranquilo de Rita, com participação de Sophia Chablau, e no som beatle-britpop de O anjo cometa, que encerra o disco com emanações de John Lennon e até de pop triste setentista, daqueles que iriam parar rapidamente numa trilha de novela.
- Gostou do texto? Seu apoio mantém o Pop Fantasma funcionando todo dia. Apoie aqui.
- E se ainda não assinou, dá tempo: assine a newsletter e receba nossos posts direto no e-mail.
Crítica
Ouvimos: Guerilla Toss – “You’re weird now”

RESENHA: No álbum You’re weird now, o Guerilla Toss mistura slacker rock, synthpop e punk psicodélico com humor, barulho e espírito livre.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 9
Gravadora: Sub Pop Records
Lançamento: 12 de setembro de 2025
- Quer receber nossas descobertas musicais direto no e-mail? Assine a newsletter do Pop Fantasma e não perca nada.
“Se eu sou muito louco / não vou me curar”, já diziam os Mutantes. Ao que parece, essa lição foi aprendida em regra pela banda novaiorquina Guerilla Toss, um grupo que soa como um cozidão de Sparks, Todd Rundgren, Utopia, Devo, Yoko Ono, Blondie, James Chance and The Contortions, Pink Floyd dos anos 1970 e o próprio grupo de Rita Lee e dos irmãos Baptista. O novo disco da rapaziada, You’re weird now, parece uma cláusula de libertação da mente, mesmo nem chegando a ser um disco “psicodélico” de verdade. Está mais para um slacker rock abusando do senso de humor – e vale citar que Stephen Malkmus (do Pavement, orgulho slacker) produziu o álbum.
Pra não dizer que a banda não soa psicodélica em momento algum, You’re weird now ganha a definição de “punk psicodélico” em faixas como Psychosis is just a number (que traz algo sério de no-wave encartado, mesmo assim), o synthpop torto Life’s a zoo e a hora do teclado maluco de CEO of personal & pleasure – cuja letra parece as hipotéticas confissões de uma época em que o Louco, da Turma da Mônica, decidiu virar CEO ou coach. Os versos concluem que “você sabe que os teimosos nunca mudam / eles simplesmente ficam realmente cansados disso / se você está se sentindo estranho / você provavelmente deveria continuar com isso” – sinal de que o Guerilla Toss decidiu rir da vibe Linkedisney das empresas que só falam em tracionar, escalar, e coisas do tipo.
- Ouvimos: Pavement – Cautionary tales: Jukebox classiques
O grupo cria misturas sonoras como o synthpop slacker (Red flag to angry bull) e o punk funk progressivo (Panglossian mannequin, canção com mumunhas eletrônicas que, se mexer aqui e ali, ganha semelhanças com Gong e Can). Deep sight une Gang Of Four e Sonic Youth – balanço e barulho -, When dogs bark junta Pixies, Velvet Underground e teclados cintilantes, e Favorite sun parece uma sobra da fase new wave de araque do Yes, ou um desdobre progressivo-fake de bandas como Buggles e Blondie. Tem ainda Crocodile cloud, punk sintetizado psicodélico (olha outro exemplo aí!) com batida new wave puladinha e letra falando em LSD, liberdade e nuvens com formato de crocodilo.
- Gostou do texto? Seu apoio mantém o Pop Fantasma funcionando todo dia. Apoie aqui.
- E se ainda não assinou, dá tempo: assine a newsletter e receba nossos posts direto no e-mail.
Crítica
Ouvimos: Matheus Gomes Lima – “Carnaval”

RESENHA: Matheus Gomes Lima estreia com Carnaval, disco de bom astral que mistura rock 80s, ska, soul e power pop em canções leves e cheias de humor.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8
Gravadora: Independente
Lançamento: 25 de setembro de 2025
- Quer receber nossas descobertas musicais direto no e-mail? Assine a newsletter do Pop Fantasma e não perca nada.
Cantor e compositor de São Gonçalo (RJ), Matheus Gomes Lima merece bastante sua atenção por ter lançado uma das músicas nacionais mais bacanas desse ano: o bubblegum Encruzilhada, licor e dente-de-leão , inspirado numa mescla de Oasis, Skank e The Cure. Em Carnaval, seu disco de estreia, há outras canções na mesma onda, em melodia, letra ou na combinação das duas.
A ótima Marataízes é música de férias: soa como uma mescla de Jorge Ben, Mundo Livre S/A e Beach Boys, se é que é possível. Quando eu envelhecer, um power pop sobre maturidade e envelhecimento, cita nominalmente um certo ex-presidente inominável e uma tal de intervenção militar – ambos (felizmente) tidos na faixa como indesejáveis. A gozada Pobre em Teresópolis é um ska + power pop que lembra Blitz e fala em programas como idas a Bauernfest e viagens a Guapimirim (RJ).
- Ouvimos: Pélico – A universa me sorriu – Minhas canções com Ronaldo Bastos
Um certo lado do disco lembra o rock dos anos 1980 e bandas como Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso – como Porta da frente blues (que faz referência a BB King e acaba lembrando Noite do prazer, do Brylho), o punk pop No turno noturno e Será que vai chover?, que não é uma regravação dos Paralamas, mas é um reggae que cita a composição de Herbert Vianna.
Além das referências roqueiras, há um lado de pop romântico na balada com ar soul Chuva de verão e em A casa sem você – e essa faceta aparece bem resolvida na última faixa, Supersônico, pop com ar britpop. Um disco de bom astral.
- Gostou do texto? Seu apoio mantém o Pop Fantasma funcionando todo dia. Apoie aqui.
- E se ainda não assinou, dá tempo: assine a newsletter e receba nossos posts direto no e-mail.
- Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 8: Setealém
- Cultura Pop5 anos ago
Lendas urbanas históricas 2: Teletubbies
- Notícias8 anos ago
Saiba como foi a Feira da Foda, em Portugal
- Cinema8 anos ago
Will Reeve: o filho de Christopher Reeve é o super-herói de muita gente
- Videos8 anos ago
Um médico tá ensinando como rejuvenescer dez anos
- Cultura Pop7 anos ago
Aquela vez em que Wagner Montes sofreu um acidente de triciclo e ganhou homenagem
- Cultura Pop9 anos ago
Barra pesada: treze fatos sobre Sid Vicious
- Cultura Pop8 anos ago
Fórum da Ele Ela: afinal aquilo era verdade ou mentira?