Cultura Pop
Relembrando: Wayne Kramer, “Citizen Wayne” (1997)
Citizen Wayne veio num momento de renovação e superação para Wayne Kramer, guitarrista e artífice de uma das bandas mais originais da história do rock, o MC5. O músico estava livre 100% dos excessos de outros tempos, cada vez mais afinado politicamente, irônico e sério na medida certa. Sua carreira solo havia sido iniciada em 1991, vários anos após o fim da banda que o tornou famoso – do começo dos anos 1970 até vinte anos depois, Wayne era cultuado, sua ex-banda havia virado lenda, mas as coisas não aconteciam de verdade.
Durante esses vinte anos, o músico passou um bom tempo catatônico com a heroína, chegou a ser preso por tráfico (foi solto em 1979). E foi voltando aos poucos, alternando trabalhos como carpinteiro e construtor de casas (!) com serviços como músico de estúdio. Tocou no Gang War com Johnny Thunders, arranhou o pop tocando com Was (Not Was) (em 1983, no hit Wheel me out) e foi produzindo bandas pequenas, à medida que ia migrando de local nos EUA.
Citizen flagrava Wayne interessado em mesclar punk, jazz (em especial), blues, hip hop e música eletrônica, sob o comando de David Was, a outra metade da dupla Was (Not Was), que dividia autorias e igualmente produzia o disco com o guitarrista. Não é um álbum “pop” na acepção da palavra. Era um álbum abrasivo, às vezes experimental, com letras esquerdistas, mas era pelo viés da acessibilidade que Kramer, um esteta do barulho, via o som que havia conseguido tirar com o amigo. E Wayne, mais do que tudo, voltou disposto a se colocar no disco, a escrever sobre o o que havia vivido. Guitarras e bateria (a cargo de Brock Avery) foram gravadas ao vivo, para dar um tom urgente a tudo.
“Eu chamo o disco de ‘automitológico’. Estou tentando contar minha história. Não quero ser… reverente aqui. Estou escrevendo músicas pop por dinheiro. Não estou curando o câncer nem nada. Tento escrever músicas que tenham significado. Mas não quero tentar ser profundo”, contou na época, afirmando também o status de lenda podia ser muito bom, mas estava longe de pagar os boletos. “Só estou tentando pagar meu aluguel todo mês e manter meu telefone funcionando. Esse negócio do rock and roll não é o que todo mundo pensa que é. É difícil sustentar uma carreira. Este é o tipo de trabalho em que você precisa cavar dentro de si mesmo para encontrar a motivação. Você inventa tudo sozinho. Tudo começa com o artista. Às vezes é difícil. É difícil”, dizia.
Era complicado. Em Citizen, Wayne era flagrado fazendo o inventário dos demônios com os quais tivera que lidar, na tribal e distorcida faixa de abertura, Stranger in the house. Mas também recordava o que havia no ar na época do MC5, em Back when the dogs could talk, e fazia a crônica dos revolucionários da época em Revolution in apt. 29 (“temos mais problemas que soluções/mas ninguém parece se importar”). Mesmo lidando de maneira bastante realista com o fato de ser uma “lenda”, Wayne investia em seu passado, com todos os lados bons e ruins que ele tinha. Down on the ground, um punk-blues-rock citando William Burroughs e Allen Ginsberg, entregava o que de fato era os tempos do MC5: “É o tipo de merda que fazíamos o tempo todo/tocar para as pessoas e não ganhar um tostão”.
O disco pegava pesado. O punk-jazz tenso Shining Mr. Lincoln’s shoes contava a breve história do sujeito “sem benefícios” que morria de ataque cardíaco em seu novo emprego temporário: limpar os sapatos da estátua de Abraham Lincoln no Capitólio. Tinha ainda o tribalismo jazzístico de Dope for democracy, o hard rock de No easy way out e um estranho blues-funk-rock classudo, You don’t know my name, com vocais falados e metais em clima quase acid-jazz. E o melhor refrão do disco vem de um hard rock com cara pop feito só por Kramer, Snatched defeat, repleto de derrotas e vitórias na letra. No final, um quase instrumental sombrio e comunicativo, com batida dançante, Doing the work (“fazer o trabalho/me salvou de verdade”, diz a letra) e a melancolia de A farewell to whiskey, tema jazzístico tocado por Kramer na guitarra, sozinho.
Anos depois, Wayne diria que o principal de Citizen wayne é que arte é mudança, é desafio, e que o disco representou a mudança em sua vida. O disco foi revisitado pelo próprio cantor numa versão remasterizada e com bônus em 2002 (Return of Citizen Wayne), cabendo até um documentário em CD-ROM, Citizen Wayne: A short film. O desafio continuou moldando a vida e a história de Wayne, que passou a compor para a televisão e voltou com uma formação comemorativa e renovada do MC5, o MC50.
Cultura Pop
No nosso podcast, a época em que o Killing Joke revolucionou o pós-punk
Drogas, caos, peso, ocultismo, iluminação espiritual e paixão pela violência e pelo proibido marcaram a carreira do Killing Joke – e marcam até hoje, já que a banda ainda existe. Do começo até meados dos anos 1980, Jaz Coleman, Youth (e depois Paul Raven), Paul Ferguson e o recém-falecido Geordie inseriram mais e mais perigo num estilo musical, o pós-punk, marcado pela insinuação e pela exploração de demônios interiores.
No nosso podcast, o Pop Fantasma Documento, o assunto de hoje é a melhor fase do Killing Joke, uma das bandas mais misteriosas da história do rock, responsável por aproximar estilos como pós-punk, gótico e heavy metal. Terminamos no disco Brighter than a thousand suns (1986), mas a história do grupo ainda inclui muitos outros discos – ouça tudo.
Século 21 no podcast: Girls In Synthesis e Plastique Noir.
Estamos no Castbox, no Mixcloud, no Spotify e no Deezer .
Edição, roteiro, narração, pesquisa: Ricardo Schott. Identidade visual: Aline Haluch (foto: reprodução internet). Trilha sonora: Leandro Souto Maior. Vinheta de abertura: Renato Vilarouca. Estamos aqui de quinze em quinze dias, às sextas! Apoie a gente em apoia.se/popfantasma.
Crítica
Ouvimos: Ramones, “Halfway to sanity” (relançamento)
Que ironia: um disco nota 6 dos Ramones causa crises de saudades e revisionismo histórico e… pelo menos aqui no Pop Fantasma, aumenta de cotação. Halfway to sanity (1987) volta agora às lojas brasileiras (as online e as que resistem), e no formato CD. Foi o último disco gravado com Richie Ramone na bateria, pouco antes do grupo fazer uma tentativa de colocar o ex-Blondie Clem Burke para substituí-lo.
Dizer que “o disco tal dos Ramones foi marcado por brigas durante a gravação” é chover no molhado, ainda mais em se tratando de uma banda que tinha o intransigente Johnny Ramone como guitarrista. Halfway, décimo álbum da banda, lançado originalmente em 15 de setembro de 1987, por sua vez, é um caso à parte: a porrada comeu antes, durante e depois. Para começar, em janeiro daquele ano, o grupo baixou em São Paulo para três shows – o primeiro deles terminou em briga generalizada provocada por skinheads.
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- Temos episódios do nosso podcast sobre Ramones e Blondie.
No meio das gravações, Joey e Johnny Ramone, inimigos íntimos, não se entendiam. O produtor Daniel Rey tinha problemas de comunicação com boa parte da banda. Dee Dee Ramone (ainda no baixo do grupo), passava boa parte do tempo doidão, não conseguia se comunicar com ninguém e – dizem – teve suas partes de baixo tocadas por Rey. Pessoas que lidavam com os Ramones de perto dizem que a banda já estava de saco cheio de trabalhar feito louca, gravar um disco por ano e não ser reconhecida, com direito a amigos da onça perguntando a eles “quando a banda iria estourar”.
E aí que Halfway soa insano, embora sob controle. Curtíssimo (12 músicas em 30 minutos e uns quebrados), o álbum traz os Ramones fazendo algumas incursões pelo hard rock e pelo hardcore, com direito a vocais berradíssimos de Joey Ramone em faixas como I know better now, a agitada Weasel face (na qual a voz do cantor chega a lembrar a de Alice Cooper) e o skate punk legítimo I’m not Jesus. O grupo chega perto do pós-punk gótico em Garden of serenity, adere ao som tribal na onda do Public Image Ltd em Worm man, e soa revivalista na balada Bye bye baby (com cara de canção de girl group, e escrita, claro, por Joey) e no rock vintage Go lil Camaro go, marcado por uma apagada participação de Debbie Harry.
1987 foi um ano de três bateristas para os Ramones: com Halfway em curso, Richie saiu brigado da banda, e deu lugar para Clem Burke – jornalistas lançaram a piada de que ele adotaria o nome Clemmy Ramone, mas ficou mesmo como Elvis Ramone. Não deu certo e após dois shows confusos, Marky Ramone, que estava afastado da banda desde 1983, retornou. Hoje, vale a redescoberta.
Nota: 7,5
Gravadora: ForMusic (no Brasil)
Crítica
Ouvimos: Nick Lowe e Los Straitjackets, “Indoor safari”
- Indoor safari é o novo disco do cantor, compositor e produtor britânico Nick Lowe. Um artista cuja carreira vem desde meados dos anos 1960, mas que se notabilizou a partir dos anos 1970, primeiro como integrante das bandas Brinsley Schwarz e Rockpile, depois como artista solo lançado por gravadoras como a indie Stiff e a indie-major Radar.
- O disco é uma compilação de gravações feitas ao longo de dez anos por Lowe com a banda retrô-lounge-surf Los Straitjackets, que sempre se apresenta disfarçada por máscaras de wrestling. O cantor e o grupo já haviam lançado um álbum ao vivo em 2016.
- Indoor safari sai pelo selo Yep Roc, iniciado em 1997 e cujo elenco já teve de Fountain Of Wayne a Bob Mould e Gang Of Four.
Figurinha indispensável dos anos 1970, brilhante como cantor, compositor e produtor, rei da transição entre pub rock, punk e new wave (seu som passa pelos três estilos)… Nick Lowe é aquele cara que provavelmente, no Brasil, muita gente conhece sem conhecer. Volta e meia ele é citado por aí como nomão influente, artistas como Elvis Costello já trabalharam com ele, e sua discografia, além de já ser bem extensa, inclui músicas que volta e meia rolam no rádio até mesmo no Brasil, como So it goes, Crackin up e Cruel to be kind.
Drogas e problemas pessoais deixaram a história de Nick mais conturbada, mas ele nunca parou. De qualquer jeito, a carreira discográfica de Lowe meio que ficou no para-e-anda depois de 2013, quando ele lançou Quality street, disco de Natal. Em compensação, ele saiu em turnê para divulgar o álbum ao lado de uma banda chamada Los Straitjackets, uma banda da mesma gravadora que ele (Yep Roc), dedicada a rock extremamente vintage – surf music, rockabilly e coisas próximas do bubblegum – com cada integrante usando uma máscara de wrestling.
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Isso aí era Lowe, que já foi visto como um revisionista futurista, voltando-se para um som clássico de rock, ao lado de uma galera bastante animada. Tão animada que o enrosco com a banda rendeu turnê e alguns singles. E agora rende uma espécie de coletânea expandida, Indoor safari, com os compactinhos que ele vem gravando ao lado dos Straitjackets, mais três músicas inéditas. Uma das novas canções, a surfística Went to a party, surge na abertura soando como o Who ou os Kinks dando vida nova a uma canção dos anos 1950 – ou alguma música perdida de bandas como Kingsmen ou Rivingstones.
Indoor safari não é um disco “novo”, mas isso não o torna menos valoroso. Os Straitjackets e Lowe fazem um disco de rock quase 100% autoral que poderia ter saído em 1961 ou 1962, com músicas que, se tivessem sido feitas naquela época, estariam no set list do show dos Beatles em Hamburgo, ou entre as releituras dos primeiros discos deles. De qualquer jeito, há dois covers, A quiet place, de um grupo chamado Garnett Mimms & The Enchanters, original de 1964; e Raincoat in the river, gravada originalmente por Ricky Nelson.
O clima lounge prometido pela foto da capa surge amplificado em músicas como Love starvation, a tristezinha rocker de Crying inside, a maravilha meio Motown meio Beatles Jet pac boomerang (encerrada com uma citação de Please please me, dos quatro de Liverpool), a selvageria rocker de Tokyo bay e a bateção irresistível de violão e guitarra de Trombone. Cada riff de guitarra soa como anúncio de duelo, numa onda meio surf rock de faroeste. Ouça no volume máximo.
Nota: 9
Gravadora: Yep Roc
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