Crítica
Ouvimos: Suzanne Vega – “Flying with angels”

RESENHA: Suzanne Vega lança Flying with angels, disco falando quase sempre sobre personagens à margem, misturando folk, punk e soul com lirismo afiado.
Quem ouvia Luka no rádio nos anos 1980 sabia que estava escutando uma mensagem bastante grave – uma música que, na real, era o pedido de socorro de um menino que sofria abusos em casa. Esse tom de carta, de bilhete, de observação da vida pelo olhar de personagens solitários e esquecidos, sempre foi uma das maiores armas de Suzanne Vega. Mesmo quando ela gravava discos supostamente mais ensolarados – como em 99.9F° (1992), álbum de tom colorido e alternativo.
Primeiro disco de material inédito de Suzanne desde 2014, Flying with angels é basicamente um disco de cartas, escritas por (ou para) personagens que quase sempre lutam pelas suas próprias vidas enquanto sofrem abusos e deboche do sistema. Como acontece com o profeta do “o fim está próximo” e o louco das ruas de Speaker’s corner, folk com clima power pop, no qual os personagens não têm direito nem a uma praça como a do humorístico A praça é nossa, para jogar conversa fora.
Ou com o conto de absurdo urbano de Witch, folk pós-punk com Suzanne cantando de forma grave e ardida, num arranjo que tem algo de Smashing Pumpkins e The Who. A “bruxa”, por sua vez, é a dona de um destino político bem estranho (“que bruxa apertou esse interruptor / batendo nele não uma, mas duas vezes?”, canta, evidenciando que a nova era Trump já ganhou seu hino).
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- Ouvimos: Smashing Pumpkins, Aghori mhori mei
- Ouvimos: Pete Townshend, Live in concert 1985-2001 (box set)
Em Flying with angels, a surpresa mais inesperada, pelo menos para quem conhece só os hits de Suzanne, é Rats, punk novaiorquino que falava basicamente sobre a corrida de ratos da selva urbana. “Bem vindo à minha cidade / a sobrevivência do mais apto / nunca é muito bonita”, diz a letra, com melodia lembrando um Blondie de mau humor, ou bandas como Shame e Fontaines DC.
Só que mesmo para quem conhece a obra de Vega de trás para a frente, tudo é uma surpresa no disco, pela musicalidade e pela variedade. Suzanne volta realmente disposta a unir folk e climas sombrios, como em Alley e na cigana Last train from Mariupol. Também soa levemente irreconhecível no soul de Love thief, quase na cola de Isaac Hayes, e ganha elementos de Pete Townshend solo na lindíssima faixa-título, uma canção meditativa em que Suzanne se alegra: “estou feliz por não estar voando sozinha”.
Uma das personagens cantadas por Suzanne é bem conhecida. Lucinda é soul-rock com cara setentista, vocais rappeados, bateria à frente com eco, e letra homenageando Lucinda Williams, countrywoman norte-americana cuja carreira se fez basicamente em selos indies, com exceção de uma passagem pela Mercury nos anos 1990 – ela é a “Dusty Springfield do Sul / com calças de couro e um batom rosa claro”.
Já Chambermaid tem vários elementos de I want you, de Bob Dylan – Suzanne disse que a faixa foi “inspirada por uma música que sempre amei, de um artista que significou muito para mim ao longo dos anos”, e a música de Dylan cita também uma camareira (chambermaid). Em I want you, ela passa batida, e aqui vira personagem principal – mesmo que viva à sombra de Bob. O final é venturoso e guerreiro, com o folk celta Galway, a história de uma paixão que nunca aconteceu (por causa de um convite recusado para ir à Irlanda) e deixou marcas.
Ouvindo Flying with angels, você tem a impressão de que não está sozinho/sozinha – como a personagem título da faixa. Um sentimento raro, mas essencial, num tempo em que a música precisa acolher mais do que impressionar.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 10
Gravadora: Cooking Vinyl
Lançamento: 2 de maio de 2025
Crítica
Ouvimos: Anika – “Abyss”

RESENHA: Anika mistura pós-punk, krautrock e sons ritualísticos em Abyss, disco sombrio e cru sobre confusão, fuga e relações quebradas.
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Anika vem de Berlim, Alemanha – você vai perceber isso logo que escutar as primeiras faixas de seu terceiro álbum, Abyss. Além do sotaque fortíssimo (ela canta em inglês), os vocais remetem logo a Nico e às tentativas musicais de Christiane F (a própria). Na verdade, quase dá pra dizer Anika soa como uma filha perdida de Nico e Iggy Pop, só que criada por Lou Reed e tendo Ian Curtis como padrinho.
Procurando, ou até sem procurar, você acha toda essa vibe em Abyss, disco de pós-punk duro, de krautrock, gravado quase totalmente ao vivo, e variando da crueza punk às aclimatações tecno (a abertura, com Hearsay), e aos sons de garagem dos anos 1960/1970 – nesse caso, a faixa-título, que lembra Stooges e a era do disco Funhouse, de 1970. Anika segue com o ruído distorcido de Honey, o power pop em preto-e-branco de Walkaway (que chega a lembrar Ramones), o punk ruidoso e dramático de Into the fire – cuja guitarra remete à intro de Life goes on, do The Damned.
O repertório de Abyss é endereçado a quem já se sentiu confuso/confusa demais para entender o mundo e já quis fugir. Essa sensação de desnorteio, de abismo (“abyss”, enfim) permeia todas as letras do álbum, passando pela desassociação de Oxygen, pelos relacionamentos falsos da faixa-título, pelo clima destrutivo de One way ticket e de Walk away. Com referências assumidas de Genesis P-Orridge, Anika também embarca em sons ritualísticos em Out of the shadows (com ruídos misteriosos na abertura). Sem deixar de evocar The Cure e até o lado mais sombrio dos Rolling Stones em Last song e na velvetiana Buttercups.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8,5
Gravadora: Sacred Bones Records
Lançamento: 4 de abril de 2025.
- Ouvimos: The Cure – Mixes of a lost world
- Joy Division antes, durante e depois do fim, no nosso podcast
- Relembrando: Iggy Pop – New values (1979)
Crítica
Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – “Curse” (EP)

RESENHA: Curse, novo EP do Unknown Mortal Orchestra, mistura terror, lo-fi e riffs setentistas num som sujo, psicodélico e estranho, mas cativante.
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O único disco mais, digamos, orientado para o mainstream da Unknown Mortal Orchestra é V, de 2023. O restante do trabalho do grupo de Ruban Nielson inclui grooves psicodélicos, singles de 27 minutos (!) e improvisações bem estranhas – como em IC-02 Bogotá, resenhado aqui. Pois bem: Curse, novo EP do grupo, se equipara a V e consegue ser mainstream sendo, ao mesmo tempo, esquisito pacas.
Curse foi inspirado nos giallos, filmes italianos de terror, e de quebra, inspirou-se também nessa época maluca de tirania no poder norte-americano, desgraças nos jornais, violência e outros temas nada amenos. Ruban inspirou-se também, claro, na ondinha que vem se erguendo de produções lo-fi – o repertório do EP parece ter sido gravado em fita K7. Dessa vez, as referências mais comuns da UMO desapareceram e o grupo se transforma numa daquelas bandas desconhecidas de rock pauleira dos anos 1970 que, lá por 2005, geral baixava de blogs, comunidades do Orkut ou endereços do 4shared e do Rapidshare.
Daí, se o papo é terror e porrada, mais fácil comparar a nova Unknown Mortal Orchestra com formações pouco lembradas como o Buffalo (o Black Sabbath australiano dos seventies) e Black Widow (a “outra” banda britânica que falava de temas ocultistas há uns 50 anos). Curse tem essa mesma aura underground, exibida na introdução aterrorizante de Aura, na riffarama de Boys with the characteristics of wolves e Sorcerers of silence, no metal ambient One hundred bats, na aura grunge de Death comes from the sky. No fim das contas, Curse soa como uma trilha sonora psicodélica para um pesadelo vintage – estranhamente atual, perigosamente sedutor.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8
Gravadora: JagJaguwar
Lançamento: 18 de junho de 2025
Crítica
Ouvimos: Ultrasonho – “Nós nunca vamos morrer”

RESENHA: O Ultrasonho estreia com um disco aterrorizante, Nós nunca vamos morrer, feito de colagens sonoras, jingles, discursos e ruídos que assombram como fantasmas.
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O projeto paranaense Ultrasonho (ou U L T R A S O N H O, como costuma estilizar o nome) faz música para meter medo, perturbar. Nós nunca vamos morrer, primeiro álbum do projeto criado por Thomas Blum, é formado por estranhas colagens sonoras que mexem com o conceito da hauntology (fantologia), de elementos da cultura do passado que assombram o presente como fantasmas.
Ouvir Nós nunca vamos morrer é tomar contato com esses fantasmas – e com sons que não são reconhecíveis à primeira vista, mas logo vão tomando forma. Nervos de aço, na abertura, é um vaporwave aterrorizante com sintetizador aludindo aos anos 1980, gravação de desenho animado e tom de Richard Clayderman dos infernos – até que tudo é acelerado. Tem de haver uma resposta une discursos de políticos, propagandas antigas da Bombril, jingles e trechos de I know there’s an answer, dos Beach Boys. Narrações e sons da natureza, em meio ao clima sombrio, animam Quem realmente está livre.
- Ouvimos: Manco Capac – Bom jantar (EP)
- Ouvimos: Fluxo-Floema – Ratofonográfico
- Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – Curse (EP)
- Ouvimos: Anika – Abyss
Um detalhe interessante sobre o Ultrasonho é que Thomas acha terror em sons que vemos como naturais. Baclofeno midnight faz de sons de rádio e de uma propaganda de creme dental (!) puros manifestos sobrenaturais. Um conto infantil de extremo mau gosto, narrado com sotaque sulista, dá o tom em Os meninos pregados, enquanto até mesmo o piano romântico de Dolce frequentiae aterroriza, ao lado de vários samples de voz. Preciso desinstalar meu instagram é um blues medonho, que reduz o pitch de uma gravação de voz de Silvio Santos – o “patrão” fica parecendo um zumbi.
Muita coisa de Nós nunca vamos morrer vem do rádio, transformado em uma caixinha de sons assustadores em Infinitu scrimu, e subvertido de forma irônica em Relatos de um pai ausente, em que colagens criam a frase “a maioria das pessoas trabalha de 96 a 98 horas por dia” e transformam o dia a dia de um filho com pai sumido em um corredor sombrio. No final, a faixa-título mistura musica de faroeste e uma onda sonora de vozes distorcidas e sons superpostos. Se o álbum do Ultrasonho fosse uma colagem de imagens, você não conseguiria assistir duas vezes.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 8
Gravadora: Hominis Canidae REC
Lançamento: 5 de junho de 2025.
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