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Crítica

Ouvimos: Johnny Cash, “Songwriter”

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Ouvimos: Johnny Cash, "Songwriter"

Apesar de muita gente (ainda mais aqui no Brasil) insistir que Johnny Cash passou os anos 1980 e parte dos 1990 desaparecido e foi “redescoberto”, não é bem por aí. Cash manteve contrato com sua gravadora de vários anos (a Columbia) até o fim dos anos 1980 e foi responsável por um revival bem interessante da era áurea do country em 1985, quando se juntou a Kris Kristofferson, Waylon Jennings e Willie Nelson numa espécie de pré-Travelling Wilburys do estilo, os Highwaymen, que gravou três álbuns.

O cantor passou por uma fase de “oitentização” do seu som quando foi contratado pela Mercury Records (fim dos anos 1980) e estava afastado das FMs a ponto de nem sequer ter sido lembrado para participar do single do USA For Africa (We are the world, cuja equipe de produção por sinal esnobou igualmente Dolly Parton e Willie Nelson). E aí, sim, fazia diferença nos anos 1980/1990: as aparições em eventos americanoides, os discos gospel e de Natal (ele gravou vários), e a pouca renovação no repertório haviam jogado Cash para a vala comum dos artistas que os pais ouviam e os filhos preferiam nem serem lembrados da existência. Não era sarjeta, mas evidente que as coisas não eram as mesmas.

A grande diferença entre o Cash de 1994 e o Cash de antes foi o verdadeiro bombril que foi sendo passado em sua carreira, e em seu (vamos dizer assim) posicionamento no mercado pop. O lado maldito, de “homem de preto”, passou a chamar a atenção de bandas novas – e dava para ver mais do que partículas do imaginário de Cash em U2, Depeche Mode, Ministry, Jesus and Mary Chain e várias outros grupos. Entre a primeira fase e a retomada com American recordings (1994), produzido por Rick Rubin, houve um disco independente de Natal (Country Christmas, de 1991), e a gravação de demos com músicas feitas em momentos diferentes da carreira do cantor – registradas em 1993 num estúdio pertencente à enteada de Cash, quando o cantor estava sem gravadora.

Foram essas demos, retrabalhadas em estúdio, que deram origem a Songwriter, novo disco póstumo de Johnny Cash. Um disco em cuja capa Cash parece amargurado e com vontade de tacar o violão na cabeça de quem lhe observa – e um disco mais próximo do Cash do Velho Testamento do que do cantor que voltou como padrinho da nova era deprê do rock. John Carter Cash, filho de Johnny e um dos produtores do disco, pegou a fita original e manteve apenas a voz do pai e os backing vocals gravado por Waylon Jennings. Montou uma nova banda, com vários músicos que haviam tocado com seu pai, além da participação de Dan Auerbach (Black Keys) tocando guitarra e percussão na faixa Spotlight, única música em que o som do cantor surge modernizado, com aparência country-blues e sonoridade lembrando um Lynyrd Skynyrd introvertido.

Cash foi reapresentado às novas gerações, em parte, por causa do design sonoro documental criado pelo produtor Rick Rubin na série de discos American – tudo mais seco, rude, e distante dos álbuns então mais recentes do cantor. Songwriter traz quase sempre um country mais formal, mais sustentado pelo mito, embora haja faixas realmente bonitas como Hello out there, I love you tonite, Have you ever been to Little Rock? e Like a soldier – que já havia sido gravada anteriormente por ele em American recordings (1994).

Songwriter traz Johnny Cash cantando e isso vale muito, mas como em quase todo disco em que demos antigas são retrabalhadas em estúdio por novos músicos, o resultado é mais burocrático do que deveria. Para ouvir no repeat, no entanto, tem o country falado e cantado de Drive on e as encantadoras Soldier boy e She sang Sweet Baby James – esta, fazendo referência a James Taylor, que em termos de insucesso havia experimentado nos anos 1980 um isolamento até mais complexo que o de Cash. A Rolling Stone resenhou o disco e disse que Songwriter lança no ar uma pergunta: como Johnny Cash teria soado se ele nunca tivesse conhecido Rick Rubin? É por aí.

Nota: 7
Gravadora: Mercury Nashville

Crítica

Ouvimos: Anika – “Abyss”

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Ouvimos: Anika - "Abyss"

RESENHA: Anika mistura pós-punk, krautrock e sons ritualísticos em Abyss, disco sombrio e cru sobre confusão, fuga e relações quebradas.

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Anika vem de Berlim, Alemanha – você vai perceber isso logo que escutar as primeiras faixas de seu terceiro álbum, Abyss. Além do sotaque fortíssimo (ela canta em inglês), os vocais remetem logo a Nico e às tentativas musicais de Christiane F (a própria). Na verdade, quase dá pra dizer Anika soa como uma filha perdida de Nico e Iggy Pop, só que criada por Lou Reed e tendo Ian Curtis como padrinho.

Procurando, ou até sem procurar, você acha toda essa vibe em Abyss, disco de pós-punk duro, de krautrock, gravado quase totalmente ao vivo, e variando da crueza punk às aclimatações tecno (a abertura, com Hearsay), e aos sons de garagem dos anos 1960/1970 – nesse caso, a faixa-título, que lembra Stooges e a era do disco Funhouse, de 1970. Anika segue com o ruído distorcido de Honey, o power pop em preto-e-branco de Walkaway (que chega a lembrar Ramones), o punk ruidoso e dramático de Into the fire – cuja guitarra remete à intro de Life goes on, do The Damned.

O repertório de Abyss é endereçado a quem já se sentiu confuso/confusa demais para entender o mundo e já quis fugir. Essa sensação de desnorteio, de abismo (“abyss”, enfim) permeia todas as letras do álbum, passando pela desassociação de Oxygen, pelos relacionamentos falsos da faixa-título, pelo clima destrutivo de One way ticket e de Walk away. Com referências assumidas de Genesis P-Orridge, Anika também embarca em sons ritualísticos em Out of the shadows (com ruídos misteriosos na abertura). Sem deixar de evocar The Cure e até o lado mais sombrio dos Rolling Stones em Last song e na velvetiana Buttercups.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8,5
Gravadora: Sacred Bones Records
Lançamento: 4 de abril de 2025.

  • Ouvimos: The Cure – Mixes of a lost world
  • Joy Division antes, durante e depois do fim, no nosso podcast
  • Relembrando: Iggy Pop – New values (1979)

 

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Crítica

Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – “Curse” (EP)

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Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra - "Curse" (EP)

RESENHA: Curse, novo EP do Unknown Mortal Orchestra, mistura terror, lo-fi e riffs setentistas num som sujo, psicodélico e estranho, mas cativante.

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O único disco mais, digamos, orientado para o mainstream da Unknown Mortal Orchestra é V, de 2023. O restante do trabalho do grupo de Ruban Nielson inclui grooves psicodélicos, singles de 27 minutos (!) e improvisações bem estranhas – como em IC-02 Bogotá, resenhado aqui. Pois bem: Curse, novo EP do grupo, se equipara a V e consegue ser mainstream sendo, ao mesmo tempo, esquisito pacas.

Curse foi inspirado nos giallos, filmes italianos de terror, e de quebra, inspirou-se também nessa época maluca de tirania no poder norte-americano, desgraças nos jornais, violência e outros temas nada amenos. Ruban inspirou-se também, claro, na ondinha que vem se erguendo de produções lo-fi – o repertório do EP parece ter sido gravado em fita K7. Dessa vez, as referências mais comuns da UMO desapareceram e o grupo se transforma numa daquelas bandas desconhecidas de rock pauleira dos anos 1970 que, lá por 2005, geral baixava de blogs, comunidades do Orkut ou endereços do 4shared e do Rapidshare.

Daí, se o papo é terror e porrada, mais fácil comparar a nova Unknown Mortal Orchestra com formações pouco lembradas como o Buffalo (o Black Sabbath australiano dos seventies) e Black Widow (a “outra” banda britânica que falava de temas ocultistas há uns 50 anos). Curse tem essa mesma aura underground, exibida na introdução aterrorizante de Aura, na riffarama de Boys with the characteristics of wolves e Sorcerers of silence, no metal ambient One hundred bats, na aura grunge de Death comes from the sky. No fim das contas, Curse soa como uma trilha sonora psicodélica para um pesadelo vintage – estranhamente atual, perigosamente sedutor.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8
Gravadora: JagJaguwar
Lançamento: 18 de junho de 2025

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Crítica

Ouvimos: Ultrasonho – “Nós nunca vamos morrer”

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Ouvimos: Ultrasonho - "Nós nunca vamos morrer"

RESENHA: O Ultrasonho estreia com um disco aterrorizante, Nós nunca vamos morrer, feito de colagens sonoras, jingles, discursos e ruídos que assombram como fantasmas.

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O projeto paranaense Ultrasonho (ou U L T R A S O N H O, como costuma estilizar o nome) faz música para meter medo, perturbar. Nós nunca vamos morrer, primeiro álbum do projeto criado por Thomas Blum, é formado por estranhas colagens sonoras que mexem com o conceito da hauntology (fantologia), de elementos da cultura do passado que assombram o presente como fantasmas.

Ouvir Nós nunca vamos morrer é tomar contato com esses fantasmas – e com sons que não são reconhecíveis à primeira vista, mas logo vão tomando forma. Nervos de aço, na abertura, é um vaporwave aterrorizante com sintetizador aludindo aos anos 1980, gravação de desenho animado e tom de Richard Clayderman dos infernos – até que tudo é acelerado. Tem de haver uma resposta une discursos de políticos, propagandas antigas da Bombril, jingles e trechos de I know there’s an answer, dos Beach Boys. Narrações e sons da natureza, em meio ao clima sombrio, animam Quem realmente está livre.

  • Ouvimos: Manco Capac – Bom jantar (EP)
  • Ouvimos: Fluxo-Floema – Ratofonográfico
  • Ouvimos: Unknown Mortal Orchestra – Curse (EP)
  • Ouvimos: Anika – Abyss

Um detalhe interessante sobre o Ultrasonho é que Thomas acha terror em sons que vemos como naturais. Baclofeno midnight faz de sons de rádio e de uma propaganda de creme dental (!) puros manifestos sobrenaturais. Um conto infantil de extremo mau gosto, narrado com sotaque sulista, dá o tom em Os meninos pregados, enquanto até mesmo o piano romântico de Dolce frequentiae aterroriza, ao lado de vários samples de voz. Preciso desinstalar meu instagram é um blues medonho, que reduz o pitch de uma gravação de voz de Silvio Santos – o “patrão” fica parecendo um zumbi.

Muita coisa de Nós nunca vamos morrer vem do rádio, transformado em uma caixinha de sons assustadores em Infinitu scrimu, e subvertido de forma irônica em Relatos de um pai ausente, em que colagens criam a frase “a maioria das pessoas trabalha de 96 a 98 horas por dia” e transformam o dia a dia de um filho com pai sumido em um corredor sombrio. No final, a faixa-título mistura musica de faroeste e uma onda sonora de vozes distorcidas e sons superpostos. Se o álbum do Ultrasonho fosse uma colagem de imagens, você não conseguiria assistir duas vezes.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8
Gravadora: Hominis Canidae REC
Lançamento: 5 de junho de 2025.

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