Crítica
Ouvimos: Bob Dylan, “The complete Budokan 1978 (Live)”

- The complete Budokan 1978 (Live) é uma box set que expande o repertório do LP duplo ao vivo Bob Dylan at Budokan (1978), gravado ao vivo na arena de Tókio. Traz a gravação integral de dois dos shows de Dylan no Nippon Budokan, feitos durante a turnê do cantor de 1978, que durou um ano e passou por 114 países, com Bob acompanhado por uma trupe bem grande de músicos.
- O set sai em três formatos físicos – uma caixa deluxe de 4 CDs, que possui 58 faixas, 36 das quais inéditas; set de 8 LPs (somente no Japão) e uma versão LP duplo com 16 faixas inéditas do box set. As fitas originais haviam sido descobertas em 2007. Detalhe: o material ficou por quase 30 anos armazenado em um cofre numa fábrica em Shizuoka, no Japão. As fitas estavam completamente embrulhadas em um saco plástico, como proteção para a umidade – e estavam muito bem preservadas.
Pouco depois do disco duplo Bob Dylan at Budokan chegar às lojas no Japão, em agosto de 1978, uma banda-colega de gravadora do cantor lançou um outro álbum gravado na arena de Tókio. Cheap Trick at Budokan saiu em 8 de outubro de 1978 por lá, flagrou a banda norte-americana surfando uma onda excelente de popularidade no país e se tornou o item mais vendido do quarteto.
Columbia (a gravadora de ambos), Japão, Budokan, um título de disco igual – encerram-se aí as semelhanças entre as empreitadas do cantor e da banda, certo? Bom, se o power pop do CT era considerado por roqueiros radicais como pop usando argamassa de rock para bater carteiras (maldade…), o disco de Bob Dylan gravado no Budokan foi considerado por alguns críticos uma filial folk-rock dos shows caça-níqueis de grandes artistas em Las Vegas. Faz sentido, já que Dylan tinha assistido a um show de Neil Diamond por lá e, tentado por uma boa oferta de um empresário, quis fazer um show de “grandes sucessos” – com uma super banda, backing vocals, metais e arranjos próximos do easy listening, em alguns casos.
Foi nesse pé que Dylan iniciou sua turnê de 1978, passou pelo Japão e gravou o LP duplo, que hoje volta transformado em caixa de 4 CDs e com nome mudado para The complete Budokan 1978. Incluído pelos críticos musicais Jimmy Gutterman e Owen O’Donnel no anti-guia The worst rock-and-roll records of all time (muita maldade!), o álbum original foi criticado por não se parecer com Dylan, e sim com uma banda cover liderada por um imitador soltando a voz no repertório do cantor.
Ouvido hoje, turbinado, mostra o cantor tentando dar um passo além, encarando o amadurecimento de seu público, e ciente de que canções como A hard rain’s a gonna fall, Shelter from the storm, Just like a woman, Mr Tambourine Man e You’re a big girl now precisavam fazer sentido numa época de punk, disco music, rock de arena e aquecimento do mercado de shows. Ainda que para isso, transformasse Love minus zero/No limit num chacundum na onda de Peter Frampton, com riff de flauta e metais levemente chupado de Crimson and clover, hit chiclete de Tommy James and the Shondells (sim, isso rolou, tá no disco e você vai querer ouvir dez vezes).
O maior ponto de comparação do som de The complete Budokan 1978 é com artistas que habitam galáxias bem distantes da de Bob – e analisando bem, era exatamente isso que o cantor queria. Maggie’s farm virou um misto de disco music e rock “de macho” na linha do Bachman-Turner Overdrive, Ted Nugent e do Lynyrd Skynyrd. Girl from the North Country retorna com guitarra, saxofone e órgão, com aparência de country de FM. Ballad of a thin man perdeu o aspecto folk-blues-de-cabaré do original e virou rock de terno e gravata. Já All along the watchtower virou soft rock de adulto, com violino e flauta, lembrando um passo além de hits como Hurricane.
Se faltou algo para você lembrar dos especiais anuais de Roberto Carlos, o álbum abre com a banda atacando A hard rain’s a-gonna fall em versão instrumental. Pode acreditar: nada disso diminui o valor de The complete Budokan, que traz um Dylan diferente, ousado e (por que não?) lúcido em relação ao que estava acontecendo na música em 1978, e reagindo a seu modo.
Nota: 8
Gravadora: Columbia/Legacy
Foto: Reprodução da capa do álbum
Crítica
Ouvimos: Kathryn Mohr, “Waiting room”

- Waiting room é o novo álbum da musicista californiana Kathryn Mohr. O disco foi concebido durante um mês que ela passou numa vila de pescadores de Stöðvarfjörður, no leste da Islândia. A moradia-estúdio de Kathryn no local foi uma sala de concreto sem janelas, iluminada por uma fileira de lâmpadas multicoloridas – que aparece na capa do álbum.
- “Os jovens são expostos a todos os tipos de mídia, sem razão ou cuidado. É a mesma coisa na vida – você nunca espera o que vai acontecer a seguir ou quão horrível pode ser. Em um segundo você está assistindo a um documentário sobre a natureza, no momento seguinte a reprodução automática mostra alguém tendo o braço arrancado em um elevador. O inesperado do horror, como ele é jogado sobre você, imposto, por outras pessoas, governos, demônios pessoais, algoritmos ou puro acaso, é chocante para mim”, conta ela sobre o disco e sobre uma das faixas, Elevator.
Kathryn Mohr chega com um primeiro álbum que parece sussurrar do além. Waiting room não é só um disco sombrio – é quase um ritual, sem pressa, sem concessões, que envolve o ouvinte num ambiente rarefeito. Letras, músicas e arranjos parecem um véu que, ao ser tirado, revela muito do dia a dia, dos medos terrenos e até das cidades-fantasma pessoais de cada um de nós.
Por acaso (ou não), a faixa-título, que encerra o disco trazendo Kathryn acompanhada por um órgão de tubo, transforma o amor em algo vazio, utilitário, pleno de carências e de misoginia, prestes a ser descartado: “Meu amor é uma cadeira vazia/meu amor é uma sala de espera (…)/meu amor é uma árvore podre/meu amor é um floppy disk”, diz a letra.
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Waiting room, a música, ainda assim, é um raro momento de respiro melódico num disco sobrenatural. Em quase todo o álbum, Kathryn canta e toca violão e guitarra em meio a vários efeitos sonoros – sem nenhuma bateria ou percussão, com exceção do batimento cardíaco de Cornered e de alguns ruídos mais ou menos ritmados em Prove it. Músicas como as gêmeas Diver e Driven foram feitas para assustar e embevecer: os sons desafinam aos poucos, vozes aparecem invertidas e o design sonoro parece evocar presenças invisíveis, como se vultos pudessem ser ouvidos além de vistos.
Petrified é um misto de PJ Harvey, Kurt Cobain e Neil Young, em que Kathryn parece uma folk singer do além, cantando e tocando de pernas cruzadas em cima de uma tumba. Elevator, um grunge fantasmagórico, é para quem tem paixão por sangue, morbidez, automutilação e terror: “Ponho meu braço na porta/o elevador de andar em andar, de andar em andar (…)/e agora meu membro começa a sangrar/eu perco meu braço na manga”. A já citada Cornered, após o tal batimento cardíaco, ganha uma gravação de caixa postal anunciando que “você ligou para um número que foi desconectado ou não está mais em serviço” – e prossegue com três minutos de samples aterrorizantes, numa vibe desassociativa, de transe post-mortem.
A “sala de espera” do disco de Kathryn explora o medo do desconhecido, além das estranhas vibrações (e atrações) ligadas àquilo que Raul Seixas disse que “talvez seja o segredo desta vida”. Mas no fundo, Waiting room não é só sobre morte – é sobre o que nos assombra enquanto ainda estamos aqui.
Nota: 8,5
Gravadora: The Flenser
Lançamento: 24 de janeiro de 2025.
Crítica
Ouvimos: Anna B Savage, “You & I are Earth”

- You & I are Earth é o terceiro álbum da musicista Anna B Savage, londrina que reside hoje na Irlanda. O release do álbum o define como “um disco que é tanto sobre cura quanto sobre um senso de curiosidade inabalável e, mais simplesmente, ‘uma carta de amor a um homem e à Irlanda’ (…) O disco testemunha um pedaço específico da terra – a Irlanda, e o relacionamento de Savage com ela como seu novo lar”.
- “Para aquele disco (in/Flux, segundo álbum, lançado há dois anos) eu estava trabalhando quase dois anos atrasada e eu só precisava lançá-lo. Mas eu já sabia que esse novo álbum estava chegando, então, quando eu estava escrevendo, eu meio que canalizei algumas coisas para o futuro, o que foi uma tarefa mental interessante para mim mesma”, contou Anna B Savage site The Line Of Best Fit.
Música, natureza e amor se entrelaçam em You & I are Earth, terceiro álbum de Anna B Savage. Já no título, a cantora sugere um universo íntimo e particular, um planeta criado a dois, enquanto a capa evoca uma música das matas. Entre ecos de sonoridades celtas e irlandesas — reflexo de sua vida de artista inglesa vivendo em Dublin — e nuances quase progressivas ou próximas do jazz, o disco cria uma atmosfera mágica, envolvente e, por vezes, hipnótica, num folk contemplativo e experimental.
You & I are Earth é invadido por sons de mata na quase new age Talk to me, que abre o álbum e revela a voz simultaneamente forte e angelical de Anna B Savage. Os ruídos da natureza seguem em Lighthouse, um folk maduro e contemplativo, guiado pelo balanço envolvente de um baixo acústico. A bela Agnes, uma dos maiores destaques do álbum, funde a melancolia dos Smiths e a vibe agridoce do folk setentista. É importante falar que as letras do disco, carregadas de romantismo, às vezes flertam com uma idealização amorosa que soa um tanto fora de lugar. Isso fica evidente na delicada The rest of our lives, quase camerística, ou no folk celta de Donegal, onde juras de amor eterno dominam o tom.
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Já Mon cheol thú (“você é minha música”, uma expressão de louvor tradicional na Irlanda) abraça o encantamento do amor com versos como “você é minha música/você é minha musa/eu vou cantar por horas/e escrever um álbum sobre você”). A melodia, outro destaque do álbum, começa como um folk pastoril, dedilhado na guitarra, e vai ganhando corpo com a entrada de cordas e sopros. A relaxante Big & wild e o folk-quase-valsa de I reach for you in my sleep também são invadidas por imagens mais ternas do amor.
Nem tudo no conciso You & I are Earth é perfeito. Mas trata-se de um disco ora etéreo e meditativo, ora arrebatador, e que convida à imersão, sempre com a força da emoção em primeiro plano.
Nota: 8
Gravadora: City Slang
Lançamento: 24 de janeiro de 2025.
Crítica
Ouvimos: Rei Lacoste, “O que você ouve/O que houve com você”

- O que você ouve/O que houve com você é uma mixtape do produtor e artista multimídia baiano Rei Lacoste. “Tive participações de pessoas muito especiais: Dunna, Giovani Cidreira, Bebé, Tangolomangos, Juçara Marçal, cajupitanga, Davzera, Vênus Não É Um Planeta, Clara SFX, Volúpia, Clarisse Lyra, além da mixtape ser produzida por mim e Zepeto (que também fez todas as masters)”, diz o artista ao site El Cabong.
- “A mixtape é um trabalho que dentre suas investigações e limitações, estão questões com a própria linguagem. Quando Rita Lee morreu, eu tive o contato com um tweet dela que dizia: ‘Obrigada Música por sempre estar lá quando ninguém mais está’. Isso me pegou legal (…) No meu caso a música está num lugar central. Como Ferreira Gullar disse: ‘A arte existe porque a vida não basta’. Para mim a arte está neste lugar de fazer a vida bastar, de fazer com que as pessoas não se matem”, continuou na entrevista.
O conceito de mixtape, muitas vezes, passa batido para quem não é do ramo da criação de beats, ou da turma do hip hop. Muitas vezes é enxergado como um quase-álbum, com repertório bem fornido, mas que de modo geral apenas serve como preparação para um trabalho mais elaborado. Ou como um laboratório de criação que chegou ao público, com testes de melodias, de beats, de convidados.
No caso do baiano Rei Lacoste, a mixtape O que você ouve/O que houve com você é um álbum pronto para ser ouvido do começo ao fim – uma experiência musical concisa, envolvente e cheia de personalidade. Com apenas 30 minutos de duração, o novo trabalho do cantor, compositor e produtor se revela uma verdadeira carta de amor à música e à sua capacidade de criar conexões, provocar identificação e fazer companhia para quem escuta.
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O rap lento e sinuoso de Cavalo (com participação de Zepeto) embala o ouvinte, enquanto Sem paz mistura funk e hip hop para traduzir em sons e versos o turbilhão emocional de uma ressaca amorosa, com a presença marcante de Dunna. Já Ghosting, um soul-reggaeton com participação de Giovani Cidreira, traz um relato melancólico sobre a ausência de alguém: “é noite de novo, te espero/ninguém bate à porta/sua vida lá fora acontece/eu sei, mas é foda”.
O que você ouve prossegue com a MPB marítima e romântica de Metade, o batidão entre funk, axé e r&b de Sem ódio na pista, e o inventário de vacilos e perigos do dia-a-dia da intensaLeão do Norte, que destaca o batidão quase psicodélico, com samples da trilha do filme La planete sauvage de Rene Laloux. A letra não economiza nas mensagens afiadas: “seu nome na dedicatória não vale sua paz, não vale sua glória (…)/perdemos só os falsos amigos/duvidoso medo da verdade/preferem perder os braços para não te aplaudir/querem teu bem mas só pela metade”.
Destaque também para Sem contrato, parceria com Juçara Marçal, que evoca as raízes afro-brasileiras e soa como o grande hit de um bloco de Carnaval, pulsante e cheio de energia. Na mesma vibe percussiva, Pareando reforça a conexão entre ritmos e experimentação. E, no desfecho, Rei Lacoste, Giovani Cidreira e o projeto baiano Cajupitanga se unem no refinado senso melódico e rítmico de Me dê um beijo.
Com O que você ouve/O que houve com você, Rei Lacoste reafirma seu talento como um artista bom de mistura – um cara que une ritmos, sentimentos e vivências em um trabalho que é, ao mesmo tempo, experimental e acessível. E muito sensível.
Nota: 8,5
Gravadora: Independente
Lançamento: 24 de janeiro de 2025.
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