Crítica
Ouvimos: Inocentes, “Antes do fim”
- Antes do fim é o primeiro álbum acústico da veterana banda punk paulistana Inocentes, que sai nas plataformas digitais e também em LP pelo selo Red Star. O LP havia sido precedido pelo EP Não acordem a cidade, que adiantava cinco faixas do projeto.
- O repertório traz um apanhado de canções do grupo e, segundo Clemente, a ideia foi privilegiar músicas que nunca haviam sido regravadas – embora haja clássicos da banda como Garotos do subúrbio, que já teve outras versões ao longo da história dos Inocentes.
- O vocalista destaca a versão de Expresso Oriente. “A letra tem uma atualidade impressionante. Um amigo palestino me falou anos atrás, que era a única música que ele conhecia, fora do Oriente Médio, que citava os palestinos. E me agradeceu muito. Fiquei emocionado, não sabia dessa relevância”, diz Clemente.
É de se questionar porque o rock brasileiro ainda costuma gerar discos acústicos e revisionistas até hoje – os Titãs têm vários álbuns recentes no formato, por exemplo. Se numa época esse esquema vendeu muitos discos, em tempos de streaming, pegar no violão para reler músicas que originalmente tinham peso, requer bastante musicalidade. E disposição para prender a atenção dos fãs.
No caso de Antes do fim, os Inocentes deixam as guitarras de lado com excelentes argumentos. Para começar, acústicos de bandas punk não são lá muito comuns, pelo menos no Brasil. Se ninguém conseguia imaginar músicas como Pânico em SP, Não acordem a cidade e Pátria amada sem guitarras e baixo elétrico, o grupo de Clemente Nascimento (voz e guitarra), Anselmo Monstro (baixo), Nonô (bateria) e Ronaldo Passos (guitarra) foi por outra via, inserindo características de blues em boa parte do repertório, além de uma ou outra coisa que soa parecida com bandas como Violent Femmes – só que em tom mais hard e classe-operária.
Nesse esquema, vale ouvir primeiro em Antes do fim o retrabalho nos riffs de Expresso oriente, o tom country punk de Não acordem a cidade, o r&b folk de A face de deus e o afropunkfunk de O homem negro, essa meio eletrificada pelo clavinet do tecladista Wagner Bernardes. Nem tudo volta reaparece como pós-punk acústico, lembrando o lado mais suave de bandas como New Model Army.
Entre as músicas nem tão lembradas dos Inocentes, Escombros (originalmente do CD Ruas, de 1996) voltou em tom estradeiro e ganhou até um clipe excelente em desenho animado, feito por Leandro Franco. Do repertório também consta São Paulo, do 365, com diálogos entre violões e piano.
Nota: 8,5
Gravadora: Red Star
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Crítica
Ouvimos: Linda Thompson, “Proxy music”
Existiu uma cena pujante de folk britânico na virada dos anos 1960 para os 1970, liderada pelo Fairport Convention. Uma banda da qual surgiram outras bandas importantes, como Steelye Span e The Albion Band. Além de outras carreiras musicais fortes, como a de Sandy Denny (a voz feminina de The battle of evermore, do Led Zeppelin) e a do então casal Richard e Linda Thompson.
Na verdade, entre ambos, só Richard fez parte do grupo oficialmente. Mas Linda era uma espécie de “parente” da banda, já que fez vocais como convidada em Rosie, disco deles de 1973, e dois anos antes havia se juntado a um supergrupo de curta duração formado por ex-integrantes do Fairport, o Bunch. A partir de 1974, Richard e Linda Thompson lançaram em dupla uma série excelente de álbuns, começando pelo excelente I want to see the bright lights tonight, já pendendo para a união de folk, rock, gospel e soul.
Entre turnês, lançamentos, brigas e bodes pessoais (Linda, influenciada pelo marido, chegou a abraçar o sufismo e largar a música por uns tempos, o que foi motivo de arrependimento para ela por vários anos), o casal ficou junto até 1982, ano do “disco de separação” Shoot out the lights – uma referência ao apagar das “luzes brilhantes” do primeiro álbum. O disco era cheio de sentimentos rançosos e músicas de fim de linha. A turnê foi complicada a ponto do casal ficar sem se falar fora dos palcos.
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Com a separação dos dois, quem mais teve problemas para se manter no mercado foi Linda. Em 1985, ela retornou com One clear moment, seu primeiro disco solo. Mas uma enfermidade nos músculos da garganta chamada disfonia espasmódica passou a impedi-la de falar e cantar normalmente, o que a afastou dos estúdios e shows. Injeções de botox na garganta foram lhe devolvendo a voz por uns tempos, o que resultou na retomada de sua carreira solo e no lançamento de uma série de álbuns – nos quais aparecia, pela primeira vez, compondo suas próprias músicas.
Mesmo com os problemas na voz, Linda continuou gravando – reuniu inclusive o ex-marido, os filhos Teddy e Kami e o neto Zak Robbs no álbum Family (2014), creditado a Thompsons. Agora, ela retorna de maneira bem original, com o álbum Proxy music. A capa faz uma sátira da arte da estreia do Roxy Music, de 1972 – e o conteúdo traz belos temas de country e folk compostos pela pela própria Linda. A novidade é que ela preferiu desta vez não cantar. Em vez disso, convidou vários cantores para soltarem as vozes nas canções – uma turma que inclui, além dos filhos, nomes como Martha e Rufus Wainwright, o duo escocês The Proclaimers, além do cantor norte-americano de alt folk John Grant.
Proxy traz Linda mostrando-se como é de verdade aos 77 anos, e não apenas na capa. Entre temas de folk, country e até polca, ela surge lidando com temas como amor, solidão, envelhecimento e descobertas pessoais. O repertório impressiona pela beleza, em faixas como Those damn roches, I used to be so pretty, Mudlark (no mesmo tom celta de Going to California, do Led Zeppelin) e o jazz Darling this will never do. Um disco cheio de musicalidade e verdade.
Nota: 9
Gravadora: StorySound Records
Crítica
Ouvimos: The Police, “Synchronicity – Super deluxe edition”
Discos excelentes feitos enquanto a banda quebrava o pau no estúdio, nos bastidores de shows e em tudo quanto era lugar, existem vários. No caso do The Police, as brigas eram constantes e visíveis – diz a lenda que chegaram a terminar em atracamento físico, algumas vezes. E Synchronicity, de 1983, ainda teve a qualidade de ser, simultaneamente, o melhor disco e o último disco da banda.
Uma visão perfeita de como foi a elaboração de Synchronicity surge agora com o lançamento da edição super deluxe do disco, que já está nas plataformas digitais, com seis discos contendo demos, outtakes e até um show inteiro no Oakland-Alameda County Coliseum, na Califórnia, em 10 de setembro de 1983. Quem puser as mãos na edição física, vai ganhar ainda um livro de 60 páginas, assinado pelo jornalista musical Jason Draper, contando tudo sobre o disco.
Sobre o fim do grupo após seu ápice comercial e artístico, só quem não fazia a menor ideia do que rolava nas internas do trio poderia não desconfiar de que aquele álbum era a despedida. O processo criativo do álbum, basicamente, era o processo criativo do líder Sting. O cantor chegava com as demos prontas, deixando espaço suficiente para os integrantes apenas incluírem seus instrumentos no que o compositor já havia delineado. Nada muito diferente do que Pete Townshend fez diversas vezes no Who, mas isso deixava o guitarrista Andy Summers e o baterista Stewart Copeland provavelmente mais putos do que os companheiros de Pete em sua banda.
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O guitarrista e o baterista tinham direito a uma faixa-solo como autores em cada disco. Andy preferiu gastar sua cota com a esquisita Mother, inspirada em Captain Beefheart, berrada ao extremo, e parecida com um audiolivro de terror – mas que parecia fazer todo sentido, psicanaliticamente falando, num disco cuja raiz vinha da “teoria da sincronicidade” do psiquiatra Carl Jung. Nos discos adicionais, ela surge em versão alternativa e até instrumental, para o horror de quem costumava pular essa faixa no disco (não era meu caso, aviso). Stewart se deu melhor com o afrobeat Miss Gradenko, que soava como uma típica música da banda.
Synchronicity será eternamente lembrado, claro, pelo progressivismo atualizado das duas faixas título (a I e a II, que abriam cada lado do álbum). E mais do que tudo isso, por Every breath you take, uma canção sobre um relacionamento abusivo, que se tornou a canção mais executada de toda a história do rádio norte-americano – e também uma bizarríssima escolha de música para casamentos (!), mesmo que a letra tenha versos bem evidentes como “cada passo que você dá/eu estarei observando você”. King of pain e Wrapped around your finger também marcaram época e ajudaram o Police a se tornar uma das bandas mais populares e mais imitadas do mundo, numa época em que Sting já contava as horas para começar a pensar só na sua carreira solo.
Nos discos extras, qualquer fã sério/séria do Police tem que correr o mais rápido possível para os álbuns ao vivo, com releituras bastante potentes do repertório da banda, e não apenas das músicas novas. A seleção começa logo com as duas Synchronicity, parte para Walking in your footsteps (outra do disco novo) e cola nos hits, como Message in a bottle e Walking on the moon.
As demos e sobras são para fãs extremamente detalhistas: muita coisa enche o saco pela repetição e pela presença de versões instrumentais. Em compensação, há a lendária Every bomb you make, versão-paródia de Every breath you take feita para a comédia britânica Spitting images (dirigida por um time de cineastas), com versos anti-guerra como “cada bomba que você faz/cada trabalho que você assume/cada coração que você parte…/cada sepultura que você preenche”. No fim das contas, para quem nunca ouviu Synchronicity, é a chance de descobrir um clássico. Quem conhece bem o disco, vai redescobrir e esgotar o assunto.
Nota: 9
Gravadora: Universal Music
Crítica
Ouvimos: David Gilmour, “Luck and strange”
Talvez a essa altura nem David Gilmour estivesse esperando que um disco novo seu trouxesse tantas mudanças à sua obra, mas Luck and strange fez exatamente isso. Tipo o que rola com o single Dark and velvet nights, que você pode tocar numa festa e dizer que é uma música perdida dos Arctic Monkeys (isso se ninguém reconhecer a voz). Ou com A single spark, música de tom sombrio e mais associável ao rock dos anos 1990 do que a qualquer coisa que lembre o Pink Floyd, banda cujo bonde Gilmour pegou já andando em 1968. E cujas direções futuras dependeriam dele e do líder Roger Waters – e das tensões entre ambos.
O que mais fica na memória de quem ouve o disco é o lado tranquilo e experimental do guitarrista. Tranquilo até demais para quem recentemente andou sendo envolvido em mais encrencas envolvendo o nome de sua ex banda (tipo essa e essa), e atraiu a raiva de fãs do grupo lançando o esquisito single Hey hey rise up em 2022. E experimental porque Gilmour decidiu aderir à velha fórmula de artista-experiente-contrata-produtor-mais-novo.
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O escolhido foi Charlie Andrew, um cara de 44 anos que começou a carreira como assistente de estúdio em Abbey Road, lugar onde o Pink Floyd gravou bastante. Por conta de seu antigo emprego, aliás, Andrew já prestou serviços ao ex-amigo e atual rival de Gilmour – seu nome aparece nos créditos do DVD The wall – Live in Berlin, de Roger Waters. Charlie juntou músicos bem experientes a gente mais nova, e jurou em entrevistas que não estava tentando fazer o disco soar como Pink Floyd ou como David Gilmour solo. Por sua vez, o guitarrista elogiou o produtor e disse que Andrew “não se intimida” com ele.
Bom, não custa lembrar que Gilmour, um dos melhores guitarristas de blues a não serem chamados de bluesman, tem um toque reconhecível a quilômetros de distância. Mas se Luck and strange tem algo a ver com o Pink Floyd, é porque muita coisa que aparece nas contribuições de Gilmour para o grupo ressurge aqui com outra cara, em músicas como a vinheta Black cat, a estelar e quase erudita Scattered e o blues da faixa-título.
De qualquer jeito, a essência do álbum surge mesmo é em músicas como a meditativa A single spark, a cavernosa e bela The piper’s call (marcada por percussão seca e uso de vibrafone), a balada grandiloquente e contemplativa Sings e o folk sombrio e simpático de Between two points, no qual Gilmour toca para sua filha Romany cantar – e sem querer, faz quase uma canção que Adriana Calcanhotto poderia acrescentar a seu repertório. E em outra música com a filha, a tranquilinha e pastoril Yes, I have ghosts.
No fim de Luck and strange, um presentinho pros fãs do Pink Floyd: o músico acrescentou uma versão de 14 minutos da faixa-título, gravada numa jam em seu celeiro em 2007, com a participação do saudoso tecladista do grupo, Richard Wright, que morreria no ano seguinte. Mas é um mimo pros que são fãs de verdade: acrescida de quase dez minutos em relação à faixa oficial, a versão “estendida” fica ligeiramente chatinha. E soa como aqueles bônus de relançamento que você só ouve uma vez na vida para nunca mais.
Nota: 8
Gravadora: Sony Music
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