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Peraí, ninguém lembrou dos 50 anos de Escalator Over The Hill, de Carla Bley?

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Muito tempo depois de lançar o experimental (e exigente) disco triplo Escalator over the hill, a pianista de jazz Carla Bley disse numa entrevista que, ao compor, costumava usar um método que costumava chamar de “mundo da fantasia”. Basicamente, ela sentava ao piano e pensava em frases verbais, que não chegavam a ser balbucios (tipo “lalala”, etc) mas que também não podiam ser considerados letras.

Esse material acabava ajudando Carla a chegar a novas melodias, e acabou auxiliando a pianista a escrever boa parte das músicas de Escalator – que por sinal chegou aos 50 anos neste ano, um tanto esquecido se comparado a outros discos mais conhecidos de rock e até de jazz. O álbum não é das experiências mais fáceis. Foi lançado da mesma forma que All things must pass, de George Harrison, numa caixa de três LPs, com um encarte completíssimo, cheio de letras, fotos e até textos sobre os músicos. A sonoridade misturava jazz, rock progressivo, tons operísticos e até sons indianos. A parte “falada” do disco trazia narração de ninguém menos que Viva, ex-atriz da turma de Andy Warhol.

Escalator era um trabalho coletivo, apesar das melodias serem todas de Carla. Ela dividia os serviços com o marido, Michael Mantler (que fizera a produção). Os textos eram de Paul Haines, poeta e letrista de jazz, que montou todo o trabalho como se fosse um roteiro de teatro, ou até de radionovela, com participação de um elenco numeroso. Carla fez algumas vozes, ao lado de nomes como Jack Bruce (Cream), o baixista de jazz Charlie Haden, o clarinetista Perry Robinson e até mesmo a cantora novata Linda Ronstadt.

A lista de músicos, enorme, incluía todos os citados, além de John McLaughlin (guitarra), Gato Barbieri (sax), Leron Jenkins (violino) e a própria Carla dividindo-se em piano, órgão e outros instrumentos. Muita gente da turma era ligada à Jazz Composer’s Orchestra, criada pelo casal Carla e Michael para tocar só jazz experimental. Escalator acabou sendo um lançamento do selo da orquestra, o JCOA – que depois geraria uma central de distribuição de LPs independentes de música de vanguarda, o New Music Distribution Service.

Carla teve trabalho para recrutar cantores que pudessem brilhar em partes bastante difíceis do disco (enfim, em quase todo o álbum triplo, mesmo em canções mais simples como Like animals). Mas recordou num texto que uma de suas ideias era buscar cantores que não tivessem vozes treinadas ou maneirismos típicos, ainda mais nas partes operísticas de Escalator.

O resultado é que em várias faixas, como a música título, aparecem cantores líricos de verdade, lado a lado com vozes comuns, dando uma cara ate bastante divertida (e mais próxima do conceito de ópera-rock) a um disco planejado para ultrapassar os limites do experimentalismo (existe isso?). Mais: para cada momento do disco, foram montadas bandas diferentes, com conceitos diferentes. Convivem no álbum triplo a Orchestra & Lobby Hotel Band, a Jack’s Travelling Band (com Jack Bruce), a Desert Band, a Original Hotel Amateur Band e a Phantom Music (responsável por alguns dos momentos mais perturbadores do disco).

Por acaso, faixas como a quilométrica Hotel overture, que abre o disco, podem interessar bastante a quem curte bandas como King Crimson, embora a abordagem seja bem outra.

Carla teve o trabalho de escrever todo o material do disco pensando especificamente em cada músico – verificando qual deles poderia contribuir melhor em cada faixa. Mas um músico em especial foi “personagem” de quase todo o disco. Era justamente Jack Bruce, baixista do Cream, que além de tocar bastante no álbum, soltou a voz em Rawalpindi blues. O resultado, com direito a uma extensa jam de Bruce e John McLaughlin, é mais progressivo do que propriamente jazz.

Imagens (hoje raras) dos ensaios de Escalator, com John McLaughlin e Jack Bruce, além de Carla no piano. Essa filmagem foi feita por Steve Gebhardt, que gravou várias sessões do disco, e foi aproveitada no documentário Escalator over the hill, que saiu em 1999, mas hoje está sumido das plataformas.

Já que existe um documentário, vale afirmar que a gravação de Escalator over the hill dá um filme, um livro, uma novela inteira. O álbum foi feito de 1968 a 1971, e passou por vários processos. Carla e Michael já estavam cansados do mercado fonográfico formal, eram costumeiramente enrolados por uma gravadora que não conseguia se decidir se lançava ou não o disco, e haviam decidido lançar o álbum de forma independente mesmo, pelo selo JCOA.

Só que não seria nada fácil: o casal decidiu alugar o caríssimo estúdio RCA e fazer gravações em 16 canais quando isso era luxo. Tiveram uma facilidade no começo: um casal de amigos mudara-se para a Índia e resolvera doar tudo o que tinha, inclusive a quantia de 15 mil dólares (!) para o financiamento do disco. Ainda assim, o restante do tempo foi dividido em gravações, arrecadações e frustrações (quando alguma promessa de financiamento não se concretizava). A ideia original da turma era usar todo o dinheiro em projetos da Orquestra e não auferir lucros, mas a realidade era: estúdios para pagar e músicos cobrando por hora.

O zelo e o detalhismo aplicados em Escalator over the hill foram aplicados também na hora de prensar e embalar o disco. Carla e Michael suaram para conseguir manter o tom dourado correto na capa e frustraram-se quando viram que a primeira fornada de discos tinha erros mecânicos. Curiosamente, apesar de a data oficial do disco ser 1971, Carla relembra nesse diário de produção do disco que Escalator não saiu até janeiro de 1972, por causa desses problemas.

Enfim, se você nunca ouviu o disco, reserve aí duas horas do seu dia e ouça.

Aliás, pega aí uma das vezes em que Carla esteve no Brasil, no Heineken Concerts, em 2000.

Em 2008, ela se apresentou no TIM Festival. Olha aí um papo dela com o produtor Alexandre Kassin.

Com infos do livro Carla Bley, de Amy C. Beal

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Crítica

Ouvimos: Wet Leg – “Moisturizer”

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Wet Leg volta com Moisturizer, disco coeso, sexy e feroz, que soa como clássico instantâneo e reafirma: o rock ainda pulsa, e muito.

RESENHA: Wet Leg volta com Moisturizer, disco coeso, sexy e feroz, que soa como clássico instantâneo e reafirma: o rock ainda pulsa, e muito.

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Vai ter muita gente vendo em Moisturizer, segundo disco do quinteto Wet Leg – apesar do foco nas duas mulheres da banda na capa – o disco do ano, a salvação do rock, coisas do tipo. Motivos para isso não faltam: Moisturizer segue a mesma escola de discos como Nevermind, do Nirvana, Never mind the bollocks, dos Sex Pistols, Rocket to Russia, dos Ramones, e (vamos de Brasil) Mudança de comportamento, do Ira! – o tipo de álbum que faz você ter vontade de voltar ao começo dele assim que acaba. Não há nada fora do lugar, nenhuma gordura a mais, o disco é programado desde o começo para ser exatamente o que ele é, e o resultado não poderia ser mais feliz.

Olhando de perto, o segundo disco do Wet Leg é uma boa junção de apitos de cachorro do rock. Uma série de atrativos que vão desde o novo visual punk-docinho da vocalista Rhian Teasdale, até a atual imagem do grupo, de quinteto que, nos clipes, zoa em passeios por um carro conversível, numa clima de trupe de desenho animado – ou de “quem é da nossa gangue não tem medo”. Como se não bastasse, Moisturizer é cheio de amor e sexo – dois temas que surgem mais como norte atitudinal do que qualquer outra coisa.

Tanto que o primeiro single, Catch these fists, um indie rock que lembra a descontração dos hits do Elastica, fala sobre quando Rhian descobriu sua sexualidade (“pensava que era heterossexual e que sempre seria assim, até conhecer a pessoa com quem namoro agora”, chegou a afirmar). Os dois outros singles, CPR e Davina McCall, são sobre amor cego, dedicado, ilimitado e reconhecidamente sem noção (em CPR, Rhian canta com deboche que “amarrei uma corda na minha cintura / eu costumo me perder nos seus olhos / eu respirei fundo / pulei do penhasco porque você me disse para pular”). Não é só letra, som ou poesia: é uma banda olhando no olho do público – coisa que o Wet Leg ainda não era no primeiro disco.

Entre evocações que vão de My Bloody Valentine e Pixies a Siouxsie and The Banshees, o Wet Leg mostra-se uma banda ótima para criar rocks de pista. Liquidizer vai nessa onda; Jennifer’s body, com clima meio The Cure + grunge, idem. Manguetout, com vocal blasé e batida punk, passa por rock gostosinho até que o refrão entra e a coisa fica meio feroz. Pond song tem algo tanto de pop francês quanto da zoeira das Slits. Pokemon é tecnopop orgânico com guitarra ressacada. Pillow talk, pesada, sáfica e irônica, é sobre as mil e uma utilidades que um travesseiro pode ter nas noites de solidão. A tristinha 11:21 dá uma ligeira baixada de bola, mas serve como uma boa ponte, como acontecia nos grandes vinis de rock – quando mesmo canções que à primeira vista, não eram tão geniais, passavam a bola pro craque chutar pro gol.

No fim do disco, U and me at home fala das delícias de ficar em casa – sem deixar de trazer algumas linhas de amor e tristeza que fazem lembrar Pretenders e até Bruce Springsteen (“às vezes, fico tão triste / e meus olhos azuis ficam cinzas / você me diz que não é tão ruim / você sempre sabe o que dizer”). Uma música, por sinal, que lembra também Pixies, com refrão ótimo, operando entre o punk e os anos 1960. É por causa de bandas como o Wet Leg e de discos como Moisturizer que o rock está vivo e passa bem.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 9
Gravadora: Domino Recording Co.
Lançamento: 11 de julho de 2025.

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Crítica

Ouvimos: Tune-Yards, “Better dreaming”

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No álbum Better dreaming, o Tune-Yards aposta no pop, no soul e na leveza, sem abrir mão do experimental. Um disco pra dançar, sonhar e se surpreender.

RESENHA: No álbum Better dreaming, o Tune-Yards aposta no pop, no soul e na leveza, sem abrir mão do experimental. Um disco pra dançar, sonhar e se surpreender.

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Melhor sonhar do que entender que o mundo virou um caldeirão de intolerâncias. O título do novo disco do Tune-Yards (a dupla de Merrill Garbus e Nate Brenner) é, digamos, de entendimento fácil – mais fácil do que em vários álbuns anteriores deles. O repertório e o processo de gravação de Better dreaming também: Merril e Nate centraram na dupla, e compuseram tudo pensando na diversão do casal e do filho pequeno – cuja voz é ouvida nos backing vocals do r&b-afropop Limelight, uma música cujo andamento lembra Prince e Michael Jackson.

Bom, Prince e Michael Jackson? O Tune-Yards sempre teve interesse em explorar batidas afro em seu indie rock, mas dessa vez a ideia foi fazer dançar e soar tão pop quanto possível. Heartbreak é uma balada com ar soul e cara de hit, mesmo com o início no despojamento experimental. Swarm é afrobeat indie como várias músicas antigas da dupla, mas tem vibe de baile funk. Em Never look back, o vocal de Merrill chega a lembrar as vozes das divas pop dos anos 1980, mas com baixo sinuoso e explosão guitarrística repentina. Get through soa como uma versão anárquica de Gladys Knight, e dos hits da Motown em geral.

  • Ouvimos: University – McCartney, It’ll be OK
  • Ouvimos: See Night – Just another life

Better dreaming tem lá suas intenções políticas – numa época bem tensa, os dois resolveram falar de liberdade, felicidade e de como a vibe agressiva dos dias de hoje pode afetar crianças (Limelight, o casal contou, quase não entrou no disco porque inicialmente eles achavam a letra “banal”). Mas a maior política do Tune-Yards dessa vez é combinar elementos acessiveis e viagens misteriosas. Tanto que o repertório combina o clima sombrio da faixa-título e de Suspended, com a felicidade de Limelight, o espírito indie e infantl da dance track How big is the rainbow e a beleza de See you there – canção vocal que, com arranjo formal de rock, poderia estar no repertório dos Beatles ou dos Ramones, e cujas vozes vão crescendo e ganhando argamassa gospel até o fim.

O Tune-Yards dá certos sustos em Perpetual motion, canção sombria de vibe mutante. E encarta referências de Antenna, do Kraftwerk, nas células rítmicas de Sanctuary, faixa de encerramento, com vocais de onda camerística. Mas o padrão mesmo em Better dreaming é assustar fãs dos discos menos acessíveis da dupla – e abrir mentes de alguma forma.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 8
Gravadora: 4AD
Lançamento: 16 de maio de 2025

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Crítica

Ouvimos: Death In Vegas – “Death mask”

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Richard Fearless retorna com o Death In Vegas em Death mask, disco fantasmagórico que mistura alucinação, batidas e clima de recomeço.

RESENHA: Richard Fearless retorna com o Death In Vegas em Death mask, disco fantasmagórico que mistura alucinação, batidas e clima de recomeço.

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Durante vários anos desde a década de 1990, Richard Fearless foi o frontman do grupo de música eletrônica Death In Vegas. Agora, o Death In Vegas é ele, tudo nasce da mente e do trabalho dele, e Death mask, primeiro disco do grupo em nove anos, vai seguindo firme na missão de transformar a obra do projeto numa imensa bad trip – algo que une alucinações, sustos e medos.

Por acaso, num papo com o site Louder Than War, Fearless contou que o uso de fitas na construção de Death mask acentuou a fantasmagoria do álbum, como vem fazendo com álbuns anteriores. “Há sons antigos que se infiltram no disco. Usamos muito isso em Transmission (disco anterior, de 2016). Porque construímos um para captar os serviços de emergência e a estática. Parecia que você quase conseguia ouvir vozes ali”, afirmou. Esse clima de viagem sonora fantástica surge na faixa de abertura, Chingola – som vindo, aos poucos, com poucas notas -, ganha batidão dançante em Lovers, e une ritmo e distorção em While my machines gently weep.

Death mask tem também faixas mais próximas do universo (digamos) clubber, como a tempestade dançante de Hazel e de Roseville (essa, bem mais hi-NRG), a vibe hipnótica de Robin’s ghosts e a onda sussurrada, escapista e introvertida de Your love. Róisín dub (h) vira o clima para um lado mais experimental e saturado. No final, a faixa-título soa mais próxima de uma trilha para o fim – um time lapse de algo que vai terminando aos poucos. Uma faixa composta para “falar” musicalmente sobre o funeral de seu pai, e uma música que, apesar do nome, traz mais recomeço e transformação do que qualquer outra coisa.

Texto: Ricardo Schott

Nota: 7,5
Gravadora: Drone
Lançamento: 6 de junho de 2025

  • Ouvimos: Swans – Birthing+
  • Punkt: o disco “perdido” do Faust nas plataformas

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