Crítica
Ouvimos: Little Simz – “Lotus”
RESENHA: Em Lotus, Little Simz mistura rap, rock, soul e psicodelia para transformar mágoas pessoais em arte intensa, política e visceral.
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Não tem como desvincular Lotus, novo álbum da rapper Little Simz, da briga que ela teve na justiça com InFlo, criador do misterioso grupo de soul Sault. Ela acusa InFlo de não pagar um empréstimo de £ 1,7 milhão, feito por ela – um dinheiro cujo destino teria sido o financiamento da única apresentação ao vivo do Sault.
O suposto calote do produtor – que era um colaborador bem próximo dela em álbuns anteriores – gerou faixas raivosas como Thief (“ladrão”, em bom português), um rock-jazz-rap com elementos do pós-punk em que ela enfileira versos como “tive sorte de ter saído, agora é uma pena, embora eu realmente sinta pena da sua esposa” e “essa pessoa que conheço a vida toda virou o diabo disfarçado”, “me fazendo sentir como se eu fosse a convidada, mas eu paguei por aquele jato” (eita).
Já Flood, com participação do nigeriano Obongjayar, é electrorockrap com clima sombrio e beat herdado da batida histórica de Bo Diddley, cuja letra dá conselhos sobre como construir fortuna: “nunca coma com as hienas / porque elas vão olhar para você como ossos (…) / mantenha os negócios longe da família / a rivalidade entre irmãos é cruel”. As duas faixas iniciam Lotus e dão a pista: ecletismo musical que une rap, rock e vibes soturnas, raiva, busca pelo equilíbrio, sinceridade desconcertante.
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Tudo isso junto gera Lotus, que ainda une soul sessentista e psicodelia em Young (single do disco, sobre loucuras da juventude), samba-de-gringo na cola de Sergio Mendes e The Doors em Free, pop de câmara com Moses Sumney nos vocais em Peace, atmosferas musicais próximas dos Beach Boys de Pet sounds em Hollow… vai por aí. Tem ainda o soul progressivo da faixa-título, que traz Little Simz acompanhada de Michael Kiwanuka e Yussef Days, num pedido de paz interior: “a paranoia me fez olhar pela janela (…) / rezo para que curemos com palavras, quem Jah abençoa, nenhum homem pode amaldiçoar”.
Mensagens para algum torturador psicológico tomam conta de Lonely, soul tenso com evocações da era What’s going on, de Marvin Gaye: “eu estava sozinho fazendo um álbum, tentei quatro vezes (…) / você me vendendo mentiras e dizendo que eu devo comprar / mexendo com minha mente que eu trabalhei duro para proteger / está causando dores no meu peito, então é melhor que eu corte os laços”. Diálogos difíceis entre irmãos afastados tomam conta de Blood (com vocais de Wretch 32).
No encerramento, nada poderia ser mais cru e verdadeiro que o folk triste de Blue, com participação de Sampha: “como você se sentiria, o que faria / se sua vida estivesse coberta de bandagens? / se você tivesse uma família de quatro / e as crianças quisessem coisas que você nunca poderia pagar (…) / o que você diria para sua filha / quando ela te perguntasse sobre a supremacia branca?”. Em Lotus, Little Simz busca a paz – e usa a própria vida para falar do mundo e vice-versa.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 9
Gravadora: AWAL Recordings Ltd
Lançamento: 6 de junho de 2025