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Entrevista: Ave Máquina volta com EP e show inspirados pelo sentimentos da pandemia
Ventre, o EP novo da banda carioca Ave Máquina, é fruto de um crowdfunding, pelo qual a banda financiou a gravação e a produção feita por Jr Tostoi. Também é fruto da pandemia, já que duas faixas foram compostas durante o isolamento, e as canções escolhidas conversam com os sentimentos que o grupo teve nessa época. O Ave Máquina, influenciado desde sempre pela vanguarda da música popular brasileira, retorna também influenciado pelo steampunk (estilo da ficção científica que aborda o impacto das tecnologias) e por filmes como Waterworld – O segredo das águas e Mad Max, explorando imagens bastante apocalípticas.
“Nosso novo trabalho chega para dizer que com a pandemia ninguém passou ileso e todos nós mudamos de alguma forma”, diz a vocalista Katia Jorgensen, que divide a banda com Rafael Monteiro (baixo), Fiu (bateria) e Yuri Ribas (guitarrista). O disco chega a público nesta sexta (14) tanto nas plataformas como no show de lançamento no Teatro Cesgranrio, no Rio de Janeiro (mais infos sobre o show no Instagram da banda). Vai ser a última apresentação de Yuri, que passa as seis cordas do grupo para Rafael Oliveira. E nós batemos um papo com a banda sobre o disco.
Como foi contar com o apoio dos fãs no crowdfunding, numa época em que estava rolando uma crise braba no país (e no mundo, claro)? Houve algum momento em que pensaram: “pô, não vai dar certo…”?
Fiu: Foi lindo, emocionante. Acho que um sentimento de acolhimento, era uma oportunidade única e sem a ajuda deles não íamos conseguir. Dentro de um período tenso, perceber que tinham pessoas acreditando e apoiando o nosso projeto nos deu mais motivação pra acreditar. E sim, a princípio fiquei inseguro, até pela condição que eu me encontrava, que as pessoas ao meu redor se encontravam, era difícil acreditar que íamos conseguir. Descobrimos que temos um público maravilhoso e isso é especial demais.
Rafael: De fato deu uma insegurança. Mas tentamos ser realistas dentro do orçamento que poderíamos conseguir. Vimos o mínimo que precisávamos para lançar esse projeto com a qualidade que queríamos e fizemos uma campanha forte.
Mesmo com as novas tecnologias, vocês diriam que ainda é caro gravar bem um disco? No que o montante do crowdfunding foi aproveitado?
Fiu: Investir em música é caro. Parafraseando o Rodrigo Amarante, “pra ser músico no Brasil precisa ter dinheiro”. E o investimento começa desde ter um bom instrumento até pagar os ensaios. Gravar um single já é caro, um EP mais caro ainda e quem dirá um disco. A tecnologia até deixou as ferramentas mais acessiveis, além dos programas há bastante material, cursos e interesse. Temos o exemplo do rap, do funk.. A molecada se produz e se lança. Mas ainda sim a expertise, a experiência e os equipamentos profissionais disponíveis fazem a diferença no resultado final. Pudemos acompanhar isso nesse EP. O que conseguimos ganhar no crowdfunding foi somatizado com o que já tinhamos em caixa então foi possivel pagar a gravação e a masterização.
Como foi trabalhar com o Jr Tostoi no disco e como surgiu a ideia de chamá-lo?
Katia: Trabalhar com Tostoi já era um sonho de muito tempo. Sempre fui fã das guitarras, timbres e do bom gosto dele. Além de depois de ter conhecido ele e o achar o cara mais divertido de todos os tempos. Nos conhecemos nos bastidores de uma participação que eu faria no show do Fernando Holanda. Ele estava por lá na passagem de som e ficamos uns 10 minutos conversando. Parecia até que já nos conhecíamos! Depois disso, tentei fazer com que ele produzisse meu primeiro disco solo – que ainda sairá em algum momento, creindeuzpai – mas acabou não rolando o edital que esperávamos.
Aí pintou a ideia de chamá-lo pra produzir essas 4 faixas do EP, por meio de um crowdfunding e foi maravilhoso. Foi uma sinergia incrível. Alguns dias de muito encaixe, muita descoberta. Tostoi é de uma generosidade viciante. Ele dirige o trabalho de uma forma que parece que nada está acontecendo. Isso porque ele deixa as coisas fluírem da maneira certa. Ele sabe tirar o melhor de cada um. Um gênio mesmo na liderança de todo processo.
Rafael: Quando Kátia nos apresentou a ideia de trabalharmos com o Tostoi, já conhecia seu trabalho como artista e produtor, então claro que adorei a ideia. Antes de começarmos a gravar o EP, ele foi nos nossos ensaios e conversamos sobre música. Quando finalmente começamos a gravar a sintonia já era total. Ele é um cara muito criativo e aberto a novas ideias e soube bem como se conectar rapidamente com a banda. O resultado dessa energia é perceptível no som que fizemos.
Fiu: No início foi assustador. Nunca tinha trabalhado com um produtor que chegasse junto. Já parou pra olhar o currículo do cara? Mas desde o primeiro contato o Tostoi foi um cara super amoroso. Chegou pedindo licença, respeitando o nosso processo de criação e nos recebendo muito bem em seu estúdio. Saí dessa experiência apaixonado.
Falem um pouco de como o conceito do steampunk entrou na história de vocês.
Katia: O conceito steampunk entrou na minha vida há alguns anos por meio de um conhecido. Ele curtia essas vibes RPG, steam punk, games etc… Eu achei a estética muito foda. Depois que vivemos a pandemia, eu pensei que o visual da banda tinha que passar por esse lugar da destruição, da guerra, do apocalipse e lembrei muito do filme Waterworld e Mad Max primeira versão – acabei esbarrando na segunda com Charlize Theron e amei aquela figura feminina tão poderosa. Achei que as cores e todo visual tinham a ver com a proposta do EP e lembrei da teoria steampunk.
Começou a tudo se encaixar na minha cabeça. Essa teoria de que as máquinas seriam movidas a vapor me trouxe essa sensação de que o mundo precisaria se reinventar depois da pandemia, depois do “fim do mundo”. Me fez refletir sobre como os seres humanos podem renascer. E aí o visual apocalíptico, a reinvenção das máquinas, as engrenagens do steampunk, tudo isso se somou ao som reflexivo e quase melancólico do álbum. Surgiu então Ventre, que seria o renascimento desse novo ser humano depois do fim do mundo.
Tem três músicas feitas durante a pandemia no disco… Que aspectos da pandemia mais influenciaram a banda nessas composições?
Rafael: Na verdade apenas A outra mulher, da Kátia e Baque d’água, de minha autoria foram compostas totalmente durante a pandemia. As outras duas músicas foram escolhidas por acharmos que conversavam com os sentimentos que estávamos tendo que lidar naqueles tempos. Coisas como rotina, isolamento e solidão. Avenidas é uma música anterior ao grupo, mas tem uma melancolia e retrata uma solidão e uma necessidade de libertação que achei que encaixaria perfeitamente. O riff dessa música, esse sim, foi feito durante a pré produção do EP. Curiosamente ele foi composto pensando na música da Kátia. A Baque d’água foi a última canção composta e é a que abre o EP. É uma música inspirada nas canções praieiras do Dorival Caymmi e na música Meu baque é lento da Nação Porto Rico de Maracatu. Assim como Avenidas ela também usa a metáfora do mar e das águas como um caminho.
Fiu: Vou falar da Personagens de mim mesmo, que é uma música minha, criada antes da pandemia mas apresentada pra banda no momento em que decidimos tocar esse projeto do EP, durante a pandemia. Essa música tem como base questionar uma certa “romantização” do dia a dia. A vida não é uma novela, não é o filme que a gente gosta. É tão fácil se entupir de estímulos externos pra fugir de nós mesmos. É um olhar pra dentro, é compreender que tenho várias facetas, várias máscaras. Que com uns posso falar de um jeito, com outros me sinto mais a vontade, uns sabem que eu fumo e outros nem imaginam, olha quantos personagens… Na pandemia tivemos que, pela primeira vez, lidar com a gente mesmo, sem escolha. O mundo se acabando e todo mundo dentro de casa. O tanto de demônios que bateram na minha porta se apresentando, não foi brincadeira. Fui forçado a lidar com vários sentimentos, que facilmente a gente se desfaz numa pedalada. Então poder olhar pra si, como indivíduo mais também dentro de um coletivo. O que é ser para mim e o que sou para os outros?
A banda atualmente é o principal projeto dos integrantes? O que vocês vêm fazendo?
Katia: A banda tem um lugar de prioridade pra mim hoje. Pois tem muito trabalho autoral. Isso acaba me trazendo a vontade de que a banda cresça muito. Eu tenho alguns outros trabalhos paralelos. Atualmente sou idealizadora e diretora artística do Viva Gal, projeto dedicado a memória da minha ídola maior Gal Costa. Já tenho um trabalho de pesquisa sobre a Gal desde 2012 e depois com meu show Mãe em 2019, cantando só o repertório dela. Depois da morte da Gal eu resolvi fazer esse tributo e tem sido lindo. Tenho alguns singles lançados e feats nas plataformas. Também tenho projetos solos pro futuro mas por agora, Ave Máquina é minha prioridade
Rafael: Sou professor de música da rede pública do Rio de Janeiro. Então, além do privilégio que é ensinar música, posso me dar ao luxo de me dedicar artisticamente apenas ao que me interessa, sem ter que pensar num retorno financeiro rápido. Sendo assim, artisticamente a Ave Máquina é meu principal projeto, sim. Tenho também planos de lançar um álbum de um projeto de música infantil do qual sou um dos criadores, o Expresso Pindorama. O disco já está gravado, falta apenas uns detalhes finais.
Fiu: Infelizmente não. Apesar de amar muito essa banda o meu ganha pão é produzindo alimentos veganos e sendo feirante, pra complementar a renda. Mas sonho todos os dias poder um dia largar tudo pra viver dessa paixão que é a música.
O disco vai sair em formato físico? Como vocês estão pensando o lançamento?
Rafael: Não é uma ideia que descartamos, mas como grana é sempre uma questão delicada, preferimos investir na qualidade da gravação e deixar só no digital por enquanto. Dessa forma, o EP estará em todas as plataformas digitais a partir do dia 14 de abril.
Vocês foram influenciados pela vanguarda brasileira dos anos 1960 e 1970. O que essa geração tem pra ensinar a músicos novos, ainda mais nessa época em que tudo é algoritmo?
Fiu: Desde que conheci o tropicalismo – e isso me rendeu uma monografia – fiquei apaixonado com esse movimento de liberdade de expressão, da antropofagia atiçada, do canibalismo cultural. Nessa mistura de referências, não só no aspecto sonoro mas num todo. “É preciso estar atento..” e antenado.
Rafael: Uma coisa incrível dos tropicalistas e dos artistas de vanguarda que vieram na sequência é a capacidade de absorver elementos e influências que para a maioria pareceriam inconciliáveis. Misturaram o “brega” e o “erudito”, o “regional” e o “urbano” sem o menor pudor. Tudo é arte e tudo pode dialogar. Acho que isso é algo que eles tem nos ensinado desde então.
O que vocês têm ouvido ultimamente e o que tem entrado como influência no trabalho novo?
Rafael: Eu tenho me interessado cada vez mais pela música latino-americana de um modo geral. O Tostoi também tem esse interesse, então acho que rolou um alinhamento. Foi ideia dele dar aquele tempero latino em A outra mulher. De coisas mais atuais gosto muito da Natalia Lafourcade (México), Mon Laferte (Chile) e da Eruca Sativa (Argentina). Mas ando sobretudo fascinado pelo rock argentino. Caras como Charly García, Spinetta e as bandas que eles fizeram parte.
Fiu: Tenho ouvido muito dois grandes produtores do rap, Madlib e J Dilla. Mas tenho o hábito de ouvir de Miles Davies, Pharonah Sanders, Paul Desmond a Anelis Assumpção, Candeia, Planet Hemp, Gilberto Gil… Acho que estar numa banda de rock sem pensar – somente – como uma banda de rock é a liberdade que preciso pra compartilhar minhas influências com a Ave Máquina.
Katia: Minhas referências são louquésimas. Escuto de Nina Simone a Slipmami. Adoro a música como um todo. Não só a letra, melodia e harmonia. Eu gosto do que a artista tem a dizer. E todo mundo precisa de um porta voz do seu nicho. Isso me encanta. Ouvir o que a galera jovem quer falar. Meu repeat no Spotify é sempre diferente. Letrux, Duda Beat, Micah, FKA Twigs, Feist, Fiona Apple, Silvia Machete, Mary J Blige, Rosalia… e por ai vai.