Crítica
Ouvimos: The Waterboys – “Life, death and Dennis Hopper”
O Waterboys, uma das bandas mais mágicas dos anos 1980 (ouça o clássico disco This is the sea, de 1985), decidiu lançar uma ópera-rock – e não uma ópera-rock qualquer. Life, death and Dennis Hopper é, antes de tudo, uma homenagem ao ator contracultural morto em 2010, conhecido por filmes como Sem destino (1969) e O último filme (1971). É também fruto de uma visita do vocalista Mike Scott a uma exposição de fotos de Hopper, um daqueles caras que viveram intensamente – e não só na carreira. Scott ficou impressionado a ponto de compor uma faixa chamada Dennis Hopper, que saiu em Good luck, seeker, disco dos Waterboys de 2020.
Hopper é, para a cultura estadunidense, o equivalente a figuras casca-grossa do cinema brasileiro como Paulo César Pereio e Jece Valadão – só que com vários pontos a mais na escala Richter. Sua trajetória reúne relacionamentos enrolados, brigas, hippismo, excessos (a revista Rolling Stone chegou a descrevê-lo como “um dos viciados em drogas mais notórios de Hollywood” por duas décadas), fases de ostracismo – virou fotógrafo após ser considerado um ator “difícil” ainda no início dos anos 1960 – e reinvenções. Afinal, a Nova Hollywood, aquela onda de cineastas jovens, ousados e doidões no fim dos anos 1960, tem muito do seu DNA.
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Passou também por inúmeras situações próximas da loucura. Durante as filmagens de Human highways (1982), dirigido por ninguém menos que Neil Young, Hopper – que interpretava um cozinheiro – resolveu brincar com uma das facas do cenário e acabou ferindo a atriz Sally Kirkland, amiga de longa data. Ela foi parar no hospital e processou Neil. Muito piores foram as histórias do superfracasso O último filme (1971), que ele dirigiu e protagonizou. Hopper avisou à Universal Pictures que filmaria no Peru (na época, capital mundial da cocaína), e os bastidores viraram uma gozolândia de drogas e sexo. O filme ficou apenas duas semanas em cartaz.
Hopper, que foi bastante entrevistado e biografado ao longo da vida, costumava dizer que sua história era uma grande mentira – “nem eu acredito na minha história!”, exagerava. A proposta de Life, death… é justamente transformar esses estilhaços de vida caótica – fracassos, sucessos, doideiras, casamentos e separações — em música e letra. São 25 faixas curtas (somando uma hora), que às vezes lembram a trilha insana de Head (1968), filme dos Monkees (Os Monkees estão à solta, no Brasil), misturando narrações, vinhetas, ruídos e canções que muitas vezes nem são canções no sentido clássico.
Life, death and Dennis Hopper tem um lado progressivo forte, mas é um progressivo que se associa ao lado cabeçoide de discos como Tommy, do Who, e os álbuns operísticos-teatrais dos Kinks. O som vai do country de Kansas à big band de Hollywood ’55, passando pelo híbrido punk + Bo Diddley de Live in the moment, baby, pelo easy listening retrô de Andy (A guy like you) e por uma viagem sonora com emanações de Beach Boys e Jefferson Airplane em The tourist. O Waterboys oitentista aparece em Hopper’s on top (Genius) e na comovente Michelle (Always stay) — esta, feita para a ex-esposa Michelle Phillips. E Transcendental peruvian blues parece saído da cartola psicodélica de Kevin Ayers, com guitarras em moinho de vento ao estilo de Pete Townshend.
Lembranças de Pink Floyd, Bob Dylan, Rolling Stones e até Red Hot Chili Peppers dão as caras em faixas como Frank (Let’s fuck), Freakout at the mud palace e I don’t know how I made it. E ainda tem duas lendas que invadem o disco. Fiona Apple canta a balada de piano Letter from an unknown girlfriend, que explora o lado sedutor e abusivo de Hopper. Bruce Springsteen, com voz grave, surge em Ten years gone, um curioso misto de Pink Floyd com o U2 de Achtung baby (1991). O assunto vai até depois da morte de Hopper, com a faixa de encerramento Aftermath, que repassa a história entre ruídos, narrações e uma vibe que lembra Queen e Pete Townshend solo.
Mesmo os momentos mais entediantes do disco – Freakout at the mud palace é uma das raras faixas puláveis – acabam fazendo sentido diante do todo de Life, death and Dennis Hopper. Um álbum que mergulha num personagem cheio de camadas, algumas delas profundamente estranhas. Um retrato sonoro de uma vida marcada por extremos, onde a dualidade médico-monstro é combustível para a arte — e para a curiosidade.
Texto: Ricardo Schott
Nota: 9
Gravadora: Sun Records
Lançamento: 4 de abril de 2025