Crítica
Ouvimos: Marshall Allen, “New dawn”
O “novo amanhecer” de Marshall Allen não é apenas uma mera figura de linguagem. Saxofonista e multi-instrumentista, comandante da Arkestra do jazzista espacial Sun Ra desde a morte dele (ocorrida em 1993), ele lança New dawn, sua estreia solo, aos cem (!) anos. Deve ser o único caso de músico que começou uma carreira, ou pelo menos uma nova fase de carreira, nesta idade. E a vitalidade, necessária para o início de uma outra história, salta aos olhos e ouvidos nos 40 minutos do álbum.
Marshall, antes de ser um músico excepcional, era um dos discípulos mais aplicados de Sun Ra, um sujeito que misturava jazz, espiritualidade, afrofuturismo, papos extraterrestres e protesto. No documentário Sun Ra: A joyful noise, dirigido por Robert Mugge, Sun aparece na porta da Casa Branca, em Washington DC, soltando o verbo: “Estou sentado em frente à Casa Branca olhando para o outro lado da rua, e não vejo a Casa Negra. Você não pode ter nada sem seu paralelo e seu oposto. Isso é algo que as pessoas da Terra desconhecem”, vociferou.
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New dawn, um disco de jazz espiritualista e (vá lá) psicodélico, deixa transparecer essa relação com as ideias do mestre de Marshall em títulos de músicas, e em escolhas musicais. African sunset, uma jazz-bossa espacial, representa o nascer do dia com música introspectiva e solar, e com um zumbido de um theremin, que volta e meia surge na faixa. E aparece também em Angels and demons at play, jazz ocultista em que baixo e bateria circulam em meio a solos de Allen e sua turma – Michael Ray e Cecil Brooks (trompete), Jamaaladeen Tacuma (baixo), Bruce Edwards (guitarra) e George Gray (bateria), entre outros.
A música título, única faixa a ter letra, conta com os vocais de Neneh Cherry e é um jazz gospel mágico e dissonante, pregando que “um novo amanhecer espera por você”. Sonny’s dance traz todo o caos ordenado pregado pela Arkestra, assumindo um clima menos intranquilo na sequência. Are you ready é som de big band, que adquire um aspecto sinfônico e mágico quando as cordas entram. Destaque também para o afro-jazz de Boma, aberta com baixo e percussão, abrindo caminho para a entrada de metais.
Cem anos de vida, mais de sete décadas de música. E, ainda assim, Marshall Allen segue olhando para frente, sem esquecer do passado. New dawn não é um ponto final, é mais um capítulo de uma jornada cósmica que continua a nos surpreender.
Nota: 10
Gravadora: Mexican Summer
Lançamento: 14 de fevereiro de 2025.