Crítica
Ouvimos: Ethel Cain, “Perverts”
- Perverts é o segundo álbum de Ethel Cain, pseudônimo usado pela artista norte-americana Hayden Anhedönia. O som dela é inspirado em canto gregoriano, folk, ambient e música cristã – ela foi criada na igreja batista e se considera uma “batista do Sul dos Estados Unidos”.
- Seu primeiro disco, Preacher’s daughter, saiu em 2022 e falava de temas como violência sexual e traumas na família. Ethel contou em entrevistas ter sido diagnosticada como autista já na fase adulta.
- “Isso aumenta tudo sensorialmente. Acho que é por isso que tenho tanto crossover entre mídias, porque é como se nunca houvesse apenas um sentido. Música não é apenas algo que você ouve”, contou.
2024 foi um ano bom para quem 1) enxerga música, antes de tudo, como contemplação (dá para ver pelo sucesso de Caju, álbum da Liniker cheio de passagens instrumentais longas); 2) gosta daqueles momentos em que conceito e música andam de mãos dadas (e enfim, Brat, de Charli XCX, é isso). Faz todo sentido que o primeiro álbum importante de 2025 seja uma fuga dos padrões, e Perverts, segundo álbum de Ethel Cain (pseudônimo da artista Hayden Anhedönia) é isso aí.
Bom, é mais do que apenas um isso aí, já que Perverts é um lançamento bem perturbador, em todos os sentidos. A faixa-título, que abre o álbum, tem doze minutos – abrindo com um hino religioso fantasmagórico (executado como se tivesse vindo de um K7 antigo e despedaçado) e prosseguindo com um drone ambient bem esquisito. A dolorida Punish, que vem em sequência, é o contrário de um dream pop – os vocais doces e angustiados de Ethel Cain são acompanhados por ruídos e por notas esparsas de piano. O clima de drone fantasma volta na terceira faixa, a estranhíssima Housofpsychoticwomn, de quase quatorze minutos.
O comecinho do disco já mostra que em Perverts, o/a ouvinte será apresentado (a) a um mundo em que masturbadores são costumeiramente punidos, pessoas com paixões reprimidas são tidas como loucas e devem ser afastadas, e a auto-gratificação (a base do onanismo, enfim) é uma jornada – resolvida numa faixa de seis minutos chamada Onanism. Tem um pouco das vivências pessoais de Hayden/Ethel nisso, claro. Ela costuma dizer que não quer ser uma estrela pop comum e faz uns dois anos, deletou seu Twitter porque não queria ser “amiga dos fãs” (a faixa Vacillator soa como um pedaço disso, já que repete diversas vezes a frase “se você me ama, então guarde para si”).
Mais: a dicotomia religião vs. loucura do álbum faz lembrar que Hayden passou a infância no repressor universo cristão do cinturão da Bíblia. Sua imagem pública consiste em volta e meia usar peças de roupas associadas ao que no Brasil se chama de “moda crente” (saias enormes, roupas escuras, braços cobertos, nada de transparências, tudo tapado até o pescoço). A Vogue entrevistou Hayden e abordou a diferença entre a criadora e a criatura – ouviu dela que ela é Hayden no palco, mais do que tudo, e que é “apenas uma garota tentando passar por uma performance, um show de cada vez”.
O material de Perverts tem uma única faixa com uma insinuação de ritmo – a já citada Vaccilator, cuja bateria, mesmo ritmada, soa como uma obra na casa do vizinho, e cujos vocais e instrumentos parecem sombras ou vultos. Onanist tem uma frase circular de piano, que parece um sonho (um pesadelo?) ou uma fita velha, além de sombras sonoras no playback – até que surge a voz de Ethel e, na sequência, uma onda de ruídos.
Pulldrone, com quinze minutos, traz Ethel Cain declamando um longo poema de tom quase ocultista, acompanhada de um ruído cuja intensidade vai aumentando no decorrer da faixa. Etienne é talvez o primeiro momento mais formalmente “musical” do disco – uma canção folk instrumental e quase progressiva, de violão e piano. O final é ocupado pelos sete minutos de Thatorchia (cuja primeira metade é ocupada por um ruído lembrando Metal machine music, de Lou Reed, embora um clima quase dream-pop surja depois) e pelos quase doze minutos de Amber waves (outro momento prototipicamente “musical” do disco, com uma melodia folk de voz e guitarras que vai saltando devagar do tom lo-fi).
O site Stereogum, que resenhou Perverts, nota que no material de divulgação, ele mal é chamado de LP, ou de álbum, e que surgem termos como “projeto”, “corpo de trabalho”, ou até mesmo “EP” para definir o disco – mesmo que Perverts tenha 90 minutos de duração e quatro faixas que ultrapassam os dez minutos. Uma boa forma de se referir a um álbum profundamente “artístico”, mas que, para muita gente, é quase inaudível.
Nota: 7
Gravadora: Daughters Of Cain Records
Lançamento: 8 de janeiro de 2025.
- Apoie a gente e mantenha nosso trabalho (site, podcast e futuros projetos) funcionando diariamente.