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Underground Press Syndicate: um instagram só de jornais marginais ao redor do mundo

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Amanda Lucio tem 27 anos, é historiadora, mora em São Paulo, e em 2017 começou a estudar sobre políticas culturais na ditadura militar, imprensa marginal e temas adjacentes. “Comecei como curiosa mesmo, tive contato com as leituras na graduação e fui me aprofundando. Ainda sei pouco, é um universo de informações dispersas”, conta ela, que hoje faz mestrado e trabalha como redatora freelancer. No meio do caminho foi fazendo contatos, achando mais jornais independentes e decidiu fazer uma pesquisa de iniciação científica sobre o Almanaque Navilouca, organizado pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão, e lançado em 1974, dois anos após a morte do primeiro.

Amanda Lucio

A historiadora percebeu que havia um enorme intercâmbio de jornais alternativos entre vários países, a partir de uma olhadinha nos materiais ligados ao Navilouca. A pesquisa gerou uma dissertação de mestrado e também um dos endereços mais interessantes do Instagram, o Underground Press Syndicate, só com imagens de jornais alternativos ao redor do mundo – incluindo alguns brasileiros. Vários deles estão organizados por países nos stories.

“Tento fazer algo menos acadêmico, que seja mais fluido, assim como os jornais que estudo. Me preocupo em produzir algo que seja instigante, que consiga acessar as pessoas”, conta Amanda, que está planejando um podcast sobre o assunto e pensa também num catálogo ou livro.

O POP FANTASMA bateu um papo com Amanda sobre o instagram, sobre os projetos e sobre a pesquisa que ela vem fazendo. Leia e inspire-se.

Me fala um pouco da pesquisa de mestrado que você está fazendo? No que ela consiste?

Então, a minha pesquisa é uma espécie de incursão dentro do que se chamou nos anos 1960 e 1970 de “imprensa underground”, “contracultural”, “alternativa” e outros nomes que usavam para categorizar jornais que eram produzidos de maneira autônoma por pequenos grupos, abordavam temas que não participavam do debate da grande imprensa, além de circularem em circuitos específicos.

A minha ideia de estudar mais a respeito surgiu de uma pesquisa de Iniciação Científica sobre o Almanaque Navilouca (1974) que fiz durante a graduação. Essa publicação foi uma espécie de “grande acontecimento” da imprensa marginal e eu tentei entender como foram as alianças que se formaram em torno dela, aspectos do editorial e coisas assim. Nesse momento eu tive muito contato com as cartas dos editores e outros materiais, muita gente falava do exílio, foram para NY ou Londres. Foi então que percebi a existência de uma circulação desse tipo de impresso pelas mãos da galera. O pessoal que morava fora do país enviava uns exemplares pra cá e o pessoal se apropriava desses modelos, criando algo semelhante à moda brasileira, sabe?

Existiam muitas limitações tecnológicas e a censura não deixava o pessoal publicar coisas sobre determinados assuntos, então era bem complicado. Foi por esses indícios de circulação desses impressos entre o Brasil, EUA e Inglaterra, que eu decidi começar a procurar mais a respeito! Jornais que abordavam temas que circulavam lá fora e traziam novidades sobre o underground brasileiro: falavam de música, literatura, cinema, budismo, hinduísmo, viagens de carona, ícones da cultura “jovem” daquele período, longas matérias sobre Zé do Caixão e Andy Warhol, por exemplo.

Aqui não havia possibilidade de explorar alguns temas como lá fora, aqui tinha censura e então era tudo muito restrito. Os dois jornais assumidamente “undergrounds” do Brasil foram o Flor do Mal, editado por Luiz Carlos Maciel (que escrevia a coluna Underground do Pasquim), Torquato Neto, Rogério Duarte e Tite de Lemos; além do Presença, que era do Rubinho Gomes, mas tinha colaborações do Joel Macedo, Hélio Oiticica, Waly Salomão, Torquato Neto e mais uma galera. Ambos tiveram poucas edições, o Flor só teve cinco edições semanais e o Presença teve duas mensais.

Era difícil manter esse tipo de jornal por aqui, além de vender pouco, era mal visto (coisa de “hippie”) e o risco de parar na polícia era grande. Só que como eu tinha dito antes, existia uma circulação desse tipo de impresso através de cartas e viagens, muita gente “perambulava” naquele período e levava/trazia informações. O exílio (voluntário ou forçado) foi muito importante nesse trânsito de informações. Em Londres existia o jornal International Times, que era o ícone contracultural de lá, inclusive era lido por Caetano e Gil durante o exílio deles, assim como por Torquato Neto e Hélio Oiticica que moraram lá em 1968-69. Esses são apenas alguns exemplos.

E o meu objetivo é entender como se caracteriza a identidade editorial desse tipo de publicação, já que são todos muito parecidos na forma de organização do conteúdo, das seções e nos temas. Eu separei o jornal britânico, que foi fundado em 1966 e lido por aqueles que participaram/enviavam matérias para publicarem aqui, porque haviam muitas menções e muita inspiração para criar a partir dos temas que surgiam lá. Então a ideia principal é essa, entender a apropriação desses modelo de impresso aqui no Brasil, levando em conta toda limitação tecnológica, política, social etc.

Como você tem encontrado alguns dos jornais que coloca no Instagram e como surgiu a ideia de partilhar o que você tem pesquisado ali?

Conforme fui pesquisando nos documentos, descobri que existia uma organização chamada Underground Press Syndicate (UPS) fundada em 1966 nos EUA por pessoas como Tom Forcade e outros jornalistas que produziam alguns desses jornais alternativos. E na lista de filiação, tinham jornais de diversas partes do mundo! A cada ano tinham mais filiados de locais diferentes, então comecei a pesquisar quais eram esses jornais e qual era o motivo da criação do sindicato.

A ideia era que os membros pudessem compartilhar conteúdos uns dos outros sem precisar pagar os direitos e coisas do tipo. Além de permitir uma divulgação ampla, pois essas listas de filiados eram publicadas nesses jornais com os endereços de correspondência da redação e também eram separadas por continentes. Assim, as pessoas se conheciam, faziam contatos e ficavam por dentro daquilo que acontecia em outras partes do mundo.

Foi então que veio a ideia da página no Instagram com o mesmo nome, Underground Press Syndicate. Vi que não existia um conteúdo parecido na internet, a não ser perfis de sebos e colecionadores que postavam um exemplar ou outro. Fui além e inclui também jornais que não eram filiados ao grupo. Eu achei que seria legal para quem gosta do tema da contracultura, jornalismo, psicodelia, colecionismo e afins. Agora há a possibilidade de encontrar e conhecer jornais tão diferentes e em idiomas distintos em um só lugar!

Os stories do seu instagram estão muito bem organizados por países e tal. Como foi organizar isso tudo? Você tem pessoas que mandam recortes e capas para você?

Na verdade, eu estou tentando criar um banco de dados para esses jornais, documentando os países, edições, datas e locais onde podem ser encontrados! A organização não é difícil, mas algumas vezes os jornais são de exilados que representam seus países em outros lugares. Um exemplo disso é o jornal Forward, criado no final de 1976 pelos estudantes etíopes em universidades estadunidenses durante o início da Guerra Civil da Etiópia na década de 1970.

Nesse caso, como classificar? Eles se identificam, assinam endereçando à terra natal deles, mantinham laços políticos e sociais com a Etiópia e estão em outro país por conta do ativismo estudantil e para evitar perseguição política, então mesmo que seja produzido nos EUA e escrito em inglês, é um jornal etíope. Houve uma coisa parecida com os jornais da Somália, Espanha e Catalunha, as lutas pela independência rolavam e essas pessoas precisam ter suas identidades reconhecidas. No caso da Espanha e Catalunha, coloquei os jornais de Barcelona como catalães, ao invés de espanhóis, por exemplo. São aspectos importantes na hora da classificação do material.

Eu sempre tento ler o conteúdo (quando o idioma torna isso possível, rs) e pesquisar a respeito. Quero construir um acervo bem sólido, baseado em um trabalho de fôlego com pesquisa e que dialogue com as questões históricas e sociais que envolveram suas produções. E não, infelizmente as pessoas não me enviam nada, eu gostaria que enviassem, mas acho que ainda vai rolar!

Há alguma raridade que você conseguiu publicar?

Olha, acredito que boa parte deles são raridades, pois se tratam de publicações com baixa tiragem e circulação, duração curta, periodicidade irregular e tal. Só que tem algumas que são ainda mais raras, não sei se é porque estou no Brasil e não tenho amplo acesso, além das dificuldades de idioma e essas coisas. Só que até os jornais daqui são dificílimos de encontrar (inclusive são os mais difíceis). Nem na internet tem acesso, nem digitalizado. Tem que ir nos arquivos ou acervos de colecionadores tirar fotos. Os jornais brasileiros Flor do Mal e Presença que eu publiquei são bem difíceis de encontrar, o Flor tem algumas edições online, mas o Presença não tem nadinha.

Consegui minhas edições por contatos com amigos que também são pesquisadores do tema. E do exterior, o jornal palestino Al Hadaf, o suíço Ouef, o soviético Leaflet e o japonês Buzoku são alguns bons exemplos de raridades. Deu pra ver que é difícil escolher um, né?!

Onde você tem achado alguns jornais? Guarda alguns deles em casa?

Encontro em acervos online, blogs de colecionadores, arquivos do próprio jornal, bibliotecas de universidades, lojas de colecionadores, sites de museus nacionais ou temáticos, organizações sociais ou partidárias que divulgam e tantos outros. Minha pesquisa é toda feita online, algumas vezes leio sobre algo sobre alguma organização, partido, grupos artísticos e penso que eles produziram algum material impresso. Então vou atrás e começo a pesquisar. Dependendo do idioma, o Google Tradutor me ajuda e eu consigo ir fazendo a busca no idioma do local de produção do jornal, o que facilita bastante na busca de resultados.

E eu não tenho nenhum deles em casa, infelizmente. Boa parte deles são itens de colecionador, eu encontro vários para vender em sites gringos, mas são uma fortuna. Fico paquerando as edições online, quem sabe visito um arquivo para manusear alguns exemplares? Só isso já seria incrível.

O que você percebe de comum entre todos os jornais que você pesquisou?

Bem, posso dizer que praticamente todos eles foram movidos por iniciativas independentes. Foram jornais feitos por indivíduos e grupos que queriam mostrar suas ideias, discutir projetos políticos, sociais ou culturais. Já que não encontravam espaço na rádio, televisão e grande imprensa, os idealizadores desses jornais formularam um espaço próprio para se comunicar com seus pares. Muitos deles foram fundamentais para formular circuitos de produção, redes de sociabilidade, movimentos e partilha de sensibilidades. Alguns movimentos formularam esses jornais e também foram formulados através deles. Há um grande senso de colaboração e partilha em todos eles.

A imprensa alternativa latino-americana tem algo que una países, por exemplo?

Havia algo entre os países do cone sul, principalmente Argentina, Chile e Uruguai. O Brasil não participou muito desse diálogo, mas consumia bastante coisa dos argentinos, em especial do poeta e jornalista Miguel Grinberg. Na imprensa alternativa brasileira há muitas menções sobre os textos dele, as edições do jornal argentino “Eco Contemporâneo” eram lidas pelos brasileiros, acredito que traziam por meio das viagens e contatos. Só que lá fora, os nossos irmãos latino-americanos não liam nossos jornais contraculturais.

Talvez fosse pela restrição, os anos de chumbo da ditadura no Brasil estavam pesando e esses impressos duravam pouco, circulavam em uma rede específica, enfim. Só que entre eles, havia uma partilha e colaboração, já encontrei várias menções. Inclusive, na lista da UPS, o Eco Contemporáneo do Miguel Grinberg consta como representante do sindicato na América Latina. Alguns anos depois, o Luiz Carlos Maciel vai aparecer lá com o Pasquim! Esse contato é algo que estou buscando entender também, fico pensando como que se deu essa troca.

Você pensa em transformar isso em algum outro material? Livro, podcast, site?

Poxa, boa pergunta! Eu queria transformar esse material que eu levantei em um livro, uma espécie de catálogo que seria separado por países, algo na lógica da página mesmo.. Ainda é algo muito remoto, pois precisaria de tempo e investimento financeiro. Queria algo que fosse organizado por mim e por meus amigos, pessoas que acreditam nesse projeto. Um ebook é uma via mais fácil, além de possibilitar a disseminação na internet de forma gratuita. Acho que é um material legal e pouco conhecido, vale a pena reunir e divulgar.

Enquanto o livro não chega, estou planejando um podcast com um amigo meu que também é pesquisador do tema, a gente tava trocando uma ideia e decidimos que seria legal gravar algo sobre. Por enquanto, o nome vai ser “Mini Mistério”, que nem a música da Gal Costa de 1970. A proposta é falar de contracultura e suas vertentes culturais/sociais, seja no Brasil ou no exterior. A gente tá fazendo a pesquisa do conteúdo e esperamos que até o final do ano seja lançado o episódio piloto!

Tem falado com editores de alguns desses jornais? O que eles contam sobre como era fazer imprensa alternativa em tempos complicados?

Falei com alguns! Foi uma grande experiência e serviu até para desmistificar algumas ideias. Falei com o Joel Macedo, que foi editor das primeiras edições da Rolling Stone brasileira lá em 1971 junto com o Luiz Carlos Maciel. Também falei com o Rubinho Gomes, editor do jornal Presença em 1971. Do exterior, falei com o John May, que editou o jornal britânico Frendz durante a década de 70. Boa parte dos editores desses jornais já faleceram, infelizmente. Leio algumas entrevistas, vejo vídeos, mas contato mesmo só tive com esses. Os três me relataram experiências bem diferentes, mesmo os brasileiros.

No geral, falaram sobre a dificuldade de conseguir informações e como que as revistas gringas como a NME  serviam para saber o que acontecia lá fora, além das questões da falta de dinheiro, volume baixo de vendas e de como era difícil tratar de alguns temas. No fim, disseram que era divertido, eram jovens jornalistas e faziam aquilo por acreditar no que se publicava, estavam tentando construir uma carreira. Tinha algo de despretensioso naquilo. Já o John May me contou sobre seu apreço pela tropicália, sobre os brasileiros exilados em Londres, as drogas e a cena cultural britânica que os jornais relatavam. Falaram daquilo com ternura, acredito que são lembranças boas para eles.

Recomenda alguma leitura sobre o assunto?

Tenho algumas leituras que me ajudaram a abrir a cabeça e me dedicar mais à pesquisa! Uma delas é o livro do historiador John McMillian Smoking typewriters, que é um panorama da imprensa alternativa, só que com foco nos EUA. No Brasil, tem o livro do Sérgio Cohn, chamado Revistas de invenção que é um compilado, espécie de catálogo de impressos brasileiros com viés experimental desde a década de 20 até os anos 2000. A Elizabeth Nelson tem um livro sobre imprensa underground britânica, o British counterculture 1966-73.

Recentemente, duas sociólogas argentinas publicaram um artigo bem legal sobre imprensa e experiências contraculturais na América Latina, o nome é Experiencias contraculturales en Argentina y Bolivia: conexiones dispersas en contextos de opresión. Tem uma grande lista de leituras, mas acho que essas indicações servem pra entender um pouco sobre cada continente. Ainda preciso descobrir leituras sobre a Ásia!

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