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Um papo com o Sakim de Kola: o punk vai à escola e zoa o sistema
Hugo Panicali (voz), Rafael Cassimiro (guitarra). Vinicius “Krnero” Bordon (baixo) e André Bonini (bateria) são o Sakim de Kola, uma banda punk do interior de São Paulo que tem como missão zoar (muito) o governo brasileiro atual e o conservadorismo, em canções como Vô mito, Carro do ovo e João Dória experiência. O EP de estreia, Cantigas pedagógicas aprovadas pelo MEC, foi ensaiado e parcialmente gravado no pátio de uma escola pública. Boa parte das letras vêm da vivência do batera André como professor. Os títulos das canções são corrosivos e auto-explicativos: UZI, Universidade Federal do Zap, Ministro da educassão, entre outras.
Aproveitamos o lançamento do EP (que dá o pontapé inicial no selo próprio deles, cujo nome, apropriadíssimo, é Quinta Série Records) e fomos bater um papo com eles para saber como surgiram a banda, o EP e a disposição para sacanear bastante essas figurinhas sombrias do poder (foto: Flávia Silvestrini/Divulgação)
Como a banda se formou e como é a cena da cidade em que vocês se formaram?
Hugo: A Sakim de Kola nasceu em 2019, em Santa Fé do Sul (SP). A banda saiu da ideia do André (baterista) e do Rafa (guitarra). Eles já possuíam uma outra banda autoral na cidade, a Cerveza de Litro, que misturava rock com música caipira e letras bem humoradas. Como a banda estava entrando num estado de inércia, eles resolveram montar uma banda de punk, com humor mais ácido e crítico. Eu, Hugo, fui chamado pelo André, que após ter escutado uns áudios meus imitando canções e fazendo umas palhaçadas julgou que eu tinha a versatilidade que ele buscava pra nova proposta. Logo após, chamamos o Krnero, nosso amigo em comum, para assumir o baixo.
Nosso primeiro encontro para ensaiar rolou em abril de 2019, de onde foram tiradas pela primeira vez Carro do ovo e Vô mito, ambas composições feitas originalmente para a Cerveza de Litro. Uma curiosidade, antes da Sakim, tanto o André como o Krnero nunca haviam tocado seus respectivos instrumentos antes. A partir daí, nossa dinâmica de banda começou a ser construída. Nossa cidade é um reduto conservador, daquelas cidades do interior bem tradicionais, não passando de 30 mil habitantes.
Até o ano de 2017 alguns pequenos shows underground ainda ocorriam por aqui (com certa raridade, mas ocorriam) e, de vez em quando, brotava algum projeto autoral feito por amigos em comum, mas nenhum teve vida longa. O Cerveza por um bom tempo foi a única banda autoral da cidade, até seu fim e o nascimento da Sakim de Kola. Não há algo que podemos chamar de cena por aqui, as pessoas que curtem som underground são as poucas pessoas do nosso convívio, não há mais bandas e tampouco lugar para tocar. Os rolês só acontecem nas cidades ao entorno.
O repertório do disco basicamente foi formado pelas notícias que a gente tá vendo hoje no jornal e na TV. Já pararam pra pensar como vai ser explicar daqui a alguns anos esse momento que a gente tá vivendo? O disco já seria uma boa introdução?
Hugo: Estamos numa fossa histórica tão grande que vai ser um pega pra capar explicar isso tudo pras gerações futuras, haha. A quimera construída pelo conservadorismo moral aliada ao neo-liberalismo e ao fetiche militar vão deixar chagas tão profundas na nossa sociedade que resultará num árduo trabalho para recuperarmos até o mesmo básico já perdido.
Nosso EP reflete uma das faces da tragédia; o desmonte da educação, a desvalorização e repressão dos professores, a alienação dos alunos cujas máximas ambições não passam de um fetiche consumista ao passo em que são criados como futura mão de obra barata, o desdém pela ciência que os conservadores conspiracionistas promovem… Enfim, um disco cuja proposta é expor, de forma ácida e sarcástica, as entranhas desse projeto nefasto implementado no país, neste caso, na área da educação. Certamente um material que conta um pouco do que estamos vivenciando nesse momento da história, seria uma boa introdução, sim, juntamente com diversos outros materiais do meio underground com o mesmo intuito de denunciar toda essa barbárie lançados nesse mesmo período. E tem muita coisa boa por aí!
As letras têm muito humor ácido e ironia. Como as pessoas que ouviram as músicas receberam isso? Tem gente que ouve fica chocada?
Hugo: Desde o começo a proposta da banda era essa, fazer um som debochado, sarcástico, meio maluco. Isso não reflete só nas letras, mas na nossa própria sonoridade, na fusão de gêneros do meio punk que resultam na nossa identidade. Até o momento, nunca tivemos grandes problemas com esse tipo de coisa.
Pessoal que já tá habituado com esse tipo de som sacou a proposta direto, até mesmo algumas faixas que antes nos gerava um leve receio por uma possível má recepção, como Educação Moral e Cívica, não nos deram dor de cabeça alguma com más interpretações. A canção Uzi, até o momento, foi a que mais gerou espanto, mas sempre no pessoal que não entende muito a pira do nosso estilo musical, gente de fora da cena, amigos ou familiares nossos. Algumas pessoas não sacaram o que a música quer atacar, acham que é um ode aos tiroteios em escola… pá acabar, haha! Mas quando rola algo do tipo, a gente explica, sem problemas. Como disse, no geral, pessoal sacou nossa proposta, isso nos deixa bem contentes.
André, você é professor. O quanto a vida que você leva na escola influenciou as letras? Como tá sendo dar aula num momento escroto desses?
André: Trabalhar em uma escola pública possibilita ter uma boa visão de parte da realidade brasileira, principalmente no convívio com os alunos mais carentes. Duas contribuições marcantes dessa vivência são a letra da música Lucasmatheus, que é inspirada nas conversas de adolescentes do nono ano e também a escolha de começar o EP com um som de sirene de escola, o mesmo usado em fábricas, o que diz muito sobre como a educação é vista no Brasil. Lecionar no Brasil nunca foi fácil, mas nesse momento escroto, algumas bizarrices têm se destacado, como vereadores que querem fazer leis estúpidas para interferir no currículo e usar a escola para surfar na onda conservadora e até uma tentativa de transformar em cívico-militar a escola em que trabalho.
E como foi isso do disco ter sido gravado e ensaiado no pátio de uma escola pública? Rolou de aluno da escola terem ouvido as músicas? Tem um coral de adolescentes em Tia Neide, não?
André: Moramos numa cidade bem pequena e por isso não temos estúdios à disposição. Então ensaiar e gravar a bateria na escola foi uma alternativa bem legal já que o espaço é grande e o barulho não chega a perturbar a vizinhança. Somos muito gratos à diretora por isso e até emprestamos nosso equipamento de som para a realização da formatura do nono ano como forma de retribuir.
Os alunos acabam conhecendo as músicas por iniciativa própria, já que só tocamos lá nos fins de semana. Punk rock não está nas preferências musicais dessa geração, mas eles ficam curiosos e curtem saber que o professor toca em uma banda doida dessas. As vozes no final de “Tia Neide” são de alunos meus e foi bem massa essa participação, porque lemos a letra juntos e discutimos o sentido dela antes de gravarem os versos declamados.
Falem um pouco do Quinta Série, o selo que vocês montaram pra lançar o disco. Vão sair outras bandas por ele?
Hugo: O Quinta Série Records, inicialmente, foi uma iniciativa nossa para lançar os sons da Sakim e de outros projetos que nós, os integrantes, pudéssemos vir a concretizar futuramente. Essa ideia tornou-se mais concreta a medida que fomos adquirindo nossos novos equipamentos de gravação, e eu, Hugo, fui estudando pra poder produzir os materiais.
Toda nossa produção é pelo do it yourself, e neste primeiro lançamento pelo selo, todo o processo, do começo ao fim, foi feito de forma genuinamente independente. Não fomos a nenhum estúdio profissional pra gravar e nem pagamos ninguém pra produzir o disco. Isso nos gerou um envolvimento maior, um propósito maior. Foi minha primeira experiência produzindo um material de forma mais séria, o intuito agora é melhorar as habilidades e conhecimentos de produção pra poder, sim, começar a produzir e lançar outras bandas e projetos underground num futuro próximo.
Nosso EP ficou bem legal, ainda que eu saiba que muita coisa ali pudesse ser melhorada, principalmente na parte de masterização. É um processo, é aprendizado que vem com o tempo. Mas sim, minha vontade maior é poder trampar com outras pessoas de fora pra poder concretizar mais e mais projetos e dar voz a outros artistas que tenham essa necessidade de gritar ao mundo suas revoltas. E que viva o barulho!