Cultura Pop
Todos somos Sinéad O’Connor. Ou podemos ser.
Se você já encarou uma luta árdua e passou não apenas por momentos de descrédito, como por ocasiões em que nem mesmo você acreditava em si, existe uma grande chance de você se identificar com a história e o sofrimento de Sinéad O’Connor.
Provavelmente ninguém que apontou o dedo para a cantora irlandesa (que saiu de cena nesta quarta, dia 26) vai parar para pedir desculpas a ela pela maneira como ela foi tratada nas últimas décadas. Foi tachada de punk falsa, mitômana, louca, excomungada pela Igreja Católica. Foi transformada em inimiga até pelo compositor que lhe deu seu maior sucesso (Prince). Menos gente ainda deve ter percebido o quanto ela se sentiu sozinha nesses últimos anos, negligenciada por parentes e antigos amigos. Nem perceberam, ou fingiram que não viram, ou os olhares de desespero que ela dava a cada aparição na mídia – como no seu pedido de ajuda pelas redes sociais, em 2020, auge da pandemia.
Pouca gente se deu conta de que os protestos dela contra a pedofilia na Igreja Católica faziam sentido e foram comprovados – ao cantar War, de Bob Marley, no Saturday night live, em 1992, ela encartou referências a “abuso infantil” na letra, rasgou a foto do Papa João Paulo II, e sua vida mudou para bem pior a partir daí. O “verdadeiro inimigo” do qual ela falou no palco no SNL não foi combatido por nenhum dos que a vaiaram quando se apresentou no concerto do 30º aniversário de carreira de Bob Dylan no Madison Square Garden, pouco depois disso. Pelo contrário. Tá por aí até hoje.
Fica a música, além da tristeza pela forma como Sinéad morreu (e viveu). A discografia da cantora estacionou, para vários ouvintes de ocasião, no segundo disco, I do not want what I haven’t got (1990), que fez muitos fãs da primeira fase dela estranharem o clima choroso e romântico de Nothing compares 2 U, a tal música de Prince. Mesmo com uma sonoridade mais amansada, o clima intenso da estreia, The lion and the cobra (1987), ainda estava por lá: o primeiro disco de Sinéad tinha peso punk, influências eletrônicas, religiosidade, blasfêmia, luta por direitos, orgulho (inclusive orgulho irlandês), drama, arranjos cujos ecos podem ser escutados em discos nacionais da época (de Titãs a Capital Inicial).
Em quase toda a sua discografia, Sinéad foi uma espécie de nervo exposto – de questões religiosas, das tretas envolvendo a história da Irlanda e da Irlanda do Norte, de sua própria saúde mental em meio a vários traumas. Em 1992, ano da foto do Papa, saiu um disco tranquilo, Am I not your girl?, com versões de clássicos do jazz, sobrepujado pelas tretas pessoais e que deixou um rastro de insucessos comerciais na carreira dela. Indo de memória, recordo também do bom e solidário Universal mother (1994), do duplo, religioso e místico Theology (2007), do pop, frágil e sincero How about I be me (And you be you) (2012) como álbuns excelentes e eficientes para, mais do que ouvir Sinéad O’Connor, conhecer Sinéad, sua história e saber contra o que ela lutava.