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O filho do ditador fascista que virou músico de jazz

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Após o término da Segunda Guerra Mundial, o jazz estava severamente prejudicado na Itália, pela falta de material. Os bombardeios haviam destruído muitas coleções de 78 rpm, além de matrizes. Em decorrência disso, o som feito no país entre os anos 1910 e 1940 tornou-se raro para muitos fãs do estilo musical.

Ainda assim, surgiam novos artistas no país. E um deles foi um cara de uns 20 e poucos anos chamado Romano Full, que tocava piano e estava fazendo suas primeiras gravações. O trabalho de Romano passou despercebido por alguns anos, até que ele resolveu participar do prestigioso festival de San Remo, já em 1956.

O que muita gente não sabia – e saberia após o festival – era que Romano era filho de ninguém menos que Benito Mussolini, o ditador fascista que tomara o poder na Itália após um golpe de estado em 1922. E que até 1945 deixara um rastro de repressão, tortura e mais de 440 mil mortes. Ainda assim, Romano – que tirou o “full” de uma jogada de pôquer – sempre negou que tenha escondido seu sobrenome “por vergonha”.

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Pelo menos à primeira vista, Romano Mussolini parecia uma espécie de clichê narrativo ambulante. Afinal, era o filho de ditador que espera sair da sombra do pai para envolver-se com atividades artísticas. Levando em conta o poder que seu pai teve, e a maneira como o exercia, ele só escaparia da herança maldita por milagre, é lógico. Mas Romano estudou vários instrumentos musicais e conheceu música clássica com o próprio pai. Em sua casa, durante alguns anos, o jazz foi terminantemente proibido. Mas ele conseguiu ter aulas de piano com um músico do exército alemão. Também virou pintor.

Um matéria no The Sydney Morning Herald explica que Romano não foi nem um pouco poupado de saber as maldades que seu pai fazia. Aliás, ele viu até mesmo quando Benito ordenou a execução do marido de sua irmã mais velha, Galeazzo Ciano, como traidor. Apesar disso, o próprio Romano costumava falar que seu pai tinha uma persona para a família e outra para a vida pública.

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A tal matéria do Herald contava detalhes sobre Romano que podem surpreender muita gente. Para começar, ele costuma ser elogiado por críticos musicais por suas habilidades ao piano (e, de fato, os discos que gravou mostram um pianista bastante versátil). Por acaso, mesmo sendo filho de quem era, Romano aparentemente não encontrou nenhum tipo de cancelamento no meio artístico. Tocou em vários países, dividiu palco com músicos como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie e Lionel Hampton. Costumava contar que alguns músicos foram solidários a ele quando seu pai morreu, como Chet Baker. Aliás, às vezes comparavam Romano muitas vezes com o jazzista canadense Oscar Peterson.

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Se todo e qualquer ditador ama loucamente a ideia de controlar a produção artística do país que preside, as relações da família Mussolini com as artes e (er) a cultura pop na Itália são de assustar. Para começar, Romano se casou com Maria Scicolone, a irmã mais nova de uma das instituições cinematográficas do país, Sophia Loren.

Alessandra, uma das filhas do casal, é uma figurinha famosa na Itália. Morou por alguns anos com Sophia, chegou a gravar discos e a atuar em filmes, e posou para a Playboy, que a apresentou como “uma mistura do carisma do avô e do sex appeal da tia”. Depois entrou para a política, concorrendo por partidos de direita. Entre eles o Social Action, que foi fundado por ela própria. E o Social Alternative, definido às vezes por jornalistas como “neo-fascista”.

Romano, que conseguiu se manter afastado da política durante toda a vida, compôs o hino do Social Alternative (note o nome da canção: Orgulho de ser italiano). Em 2004, dois anos antes de morrer, começou a lançar livros com suas memórias da convivência com o pai. Aliás, também abriu o coração durante uma entrevista a Jan Nelis, professor da Universidade de Kent, na Bélgica. E falou bastante da época em que conviveu não apenas com seu pai, mas com o fascismo na Itália.

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Só que, ao contrário do que aconteceu com vários filhos de pais torturadores, Romano deu uma boa minimizada (e umas belas viajadas na maionese) nos estragos provocados pelo fascismo e por Mussolini. “O fascismo é um ideal tipicamente italiano. Mas o motor, o homem que manuseia as máquinas, era o meu pai. Sem meu pai nunca haveria algo como o fascismo”, contou. Afirmou também que quem era contra o fascismo era um bando de “liberais ou comunistas fanáticos, mas eles eram poucos”.

Esse aí é o som de Romano Mussolini. Você decide se vale separar o homem (e sua família) da obra. Ou se há alguma obra a ouvir, levando em conta quem é o pai do homem.

 

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