Cultura Pop
Relembrando: Wire, “Pink flag” (1977)
Pink flag, estreia do Wire, era um disco punk que já ia bem além do punk. Aliás, o Wire, uma banda londrina que não conseguiu a mesma projeção de vários de seus pares, já ia bem além do proto-punk antes do levante do estilo. Em 1976, quando ainda se chamavam Overload, e tinham George Gill como guitarrista e principal compositor, já faziam demos com um material que era um compêndio de vocais gritados, melodias ríspidas e muito “1,2,3,4”. E também solos histriônicos de guitarra. Uma fase que rendeu anos depois o pirata Wire 1976.
Com a saída de Gill, e já devidamente reunidos como Wire, Colin Newman (vocal, guitarra), Graham Lewis (baixo, vocal), Bruce Gilbert (guitarra) e Robert Gotobed (bateria) foram essenciais para, mais do que apresentar o punk ao mundo, preparar o terreno para bandas como Joy Division, Pop Group, Public Image Ltd, Magazine e tudo o que seria definido como pós-punk. Apesar de tanta inovação, conseguiram um querido contrato com a EMI, aliás justamente com o selo “progressivo” Harvest, que havia lançado bandas como o Pink Floyd e buscava uma mudança de direção. Foi por lá que saíram os três primeiros álbuns deles.
Em Pink flag, o primeiro álbum, o som deles era pré-hardcore, e mais do que isso, era às vezes um avô das bandas de pós-hardcore, com suas batidas quebradas e vocais maníacos. Era igualmente um parente do krautrock alemão, por sua rispidez sonora e suas batidas secas e frias. Mais complexo e duro de entender: o Wire podia também operar como um primo disfuncional do rock progressivo, como nas diversas partes da faixa-título, que iam do som mais frio ao quase hardcore, com um sombrio rufar de tambores no final.
Por acaso, essa variedade, que o transformava num parente distante de Pink Floyd e Velvet Underground, foi o que chamou a atenção da Harvest. Para complicar mais: o grupo podia soar “eletrônico” usando apenas guitarra, baixo e bateria, por causa de sua abordagem musical, que funcionava como um relógio. Especialmente em vinhetas como Straight line e It’s so obvious.
Tinha ainda Brazil, uma estranha “canção de amor” de menos de um minuto, cuja letra tem versos como “sei que estou certo, porque quando você se foi não sobrou nada/esquerda direita, esquerda direita”. E cujo nome, aliás, surgiu porque Newman via no andamento dela uma certa conexão com as músicas de Sergio Mendes (“mas a conexão é bem pequena”, admitiu). Mas tinha também um hard rock anos 1970 “torto” e distorcido, Strange – só que lá pelas tantas, surgem ruídos estranhos que lembram pássaros assustados, ou gemidos (feitos com guitarras), e quebram a possibilidade da música tocar no rádio.
Para ouvir no último volume: o punk ágil de Different to me, e o tom mais amigável de Champs, Ex lion tamer e Mannequin, e a quase balada Feeling called love. E Three girl rhumba, com uma sonoridade que lembrava Stranglers – e anos depois reapareceria em bandas como o Elastica (Connection, hit da banda de Justine Frischmann, era tão parecido que rolou acordo extrajudicial).
O nome do disco não era Pink flag por acaso. Além do estranho tom militarista e de guerrilha urbana da faixa-título (“fui vendido rio acima para o tráfico de escravos vermelhos/as provisões foram reunidas, os planos foram traçados/… quantos mortos ou vivos em 1955?”), tinha ainda 12xU, uma canção com um contexto queer que não passou despercebido (“vi você numa revista/beijando um cara”, diz a letra). Mas a estreia do Wire já seria um disco político mesmo que não tivesse letras corrosivas.