Cultura Pop
Relembrando: Bob Marley and The Wailers, “Uprising” (1980)
Na época do álbum Uprising, um grosso temporal de granizo parecia ter baixado na vida de Bob Marley e seus Wailers. Para todos os efeitos, o pior já estava a caminho, uma vez que o cantor tinha sido diagnosticado com câncer em 1977 e morreria em 11 de maio de 1981. Na contracapa daquele que seria seu último álbum em vida, Marley aparece envelhecido e bastante magro, com um olhar perdido. Mas em janeiro daquele ano a turma já havia tido uma experiência bizarra, durante dois decepcionantes shows no Gabão, país africano.
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Marley e sua trupe chegaram lá para fazer duas apresentações e descobriram na hora que não fariam shows para um público grande, mas sim para uma plateia de cerca de 2 mil pessoas, todas da elite do país. Não era o esperado, mas ainda tinha mais: uma parte do cachê da banda simplesmente sumiu. O cantor já estava culpando o governo local pelo sumiço do dinheiro (o que levou autoridades a procurarem o artista para um papo), até que descobriu que seu empresário Don Taylor tinha desviado parte da grana. E já vinha dando seguidas calças-arriadas no cantor fazia tempo.
Os métodos que Marley usou para extrair a confissão de Taylor são zero recomendáveis – ele simplesmente desceu o cacete no (a essa altura ex) empresário, enquanto o assessor do cantor, Alan Skilly Cole, apontava uma sub-metralhadora Uzi na direção de Don. Mas naquela altura do campeonato, o fato do rei do reggae ser deslavadamente roubado por seu empresário e nem se dar conta de que ganhava uma parte bem pequena de seu cachê, era o maior sintoma de um histórico bem complicado. Quase dez anos depois de gravar seu primeiro álbum britânico, Catch a fire (1973), Bob ainda tinha (muitos) problemas para ser bem remunerado pelo seu próprio trabalho.
No meio da confusão, o cantor tentava se manter ativo: gravou material para dois discos completos e trouxe para mais perto uma das pessoas que mais haviam confiado nele no mercado da música: o dono de sua gravadora Island, Chris Blackwell. Foi Chris quem produziu o urgente e simplificado Uprising, o encerramento da carreira de Marley. Por sinal, além das canções de Marley e das guitarras, havia, nos Wailers, a força rítmica do recém “ido” Aston “Family Man” Barrett (baixo) e de seu irmão Carlton Barrett (bateria). Ambos presentes em Uprising ao lado de Junior Marvin (guitarra), Carlton “Santa” Davis (bateria) e outros integrantes do grupo.
Quem ouvia Uprising não percebia o clima de despedida – tanto que até hoje muita gente classifica o último disco de Marley como seu melhor lançamento. É o disco de Could you be loved, basicamente um reggae dançante – na real uma herança da disco music, com riffs de clavinet (clavicórdio usado por Stevie Wonder em músicas como Superstition), órgão e até uma cuíca. É o disco também de Coming in from the cold, Bad card, Zion train, da anti-guerra Real situation, e várias outras canções que não poderiam ser chamadas de outra coisa que não fosse “clássicos”, “hits” ou algo parecido. Afinal, com o reggae devidamente traduzido pelo punk e pela new wave na Europa, Marley não poderia deixar de abrir os anos 1980 com um álbum carregado de futuros sucessos.
É também um disco esperançoso, repleto de ganchos religiosos (tem Forever loving Jah entre as faixas), e trazendo também uma capa na qual Marley, em desenho de Neville Garrick, surge vitorioso, os dois braços emergindo das montanhas da Jamaica. Também é um álbum que deixa entrever que as tietes estavam ganhando bastante a atenção do cantor – o reggae-doo wop Pimper’s paradise tem tanto ressentimento na letra, que parece mais coisa de rapper gangsta.
Principalmente é o disco do tema de despedida de Marley, com a última canção do álbum, a acústica Redemption song. Com trechos tirados de um discurso do ativista jamaicano Marcus Garvey, ela trazia o cantor lidando com a finitude, numa época em que só os mais chegados sabiam de seus problemas de saúde. A ideia de gravar a canção como se fosse uma música de Bob Dylan, com Marley cantando e acompanhando-se com a guitarra acústica, foi do próprio Chris Blackwell: após experimentarem versões com banda, o produtor decidiu que uma canção simples e desplugada teria mais força.
Com Bob saído de cena, os lançamentos póstumos começaram rapidamente: Chances are, uma coletânea de gravações raras feitas entre 1968 e 1972, saiu em outubro de 1981. O primeiro póstumo “oficial”, Confrontation, saiu em 1983 com gravações feitas em 1977 e 1980 e remexidas em estúdio. O baú de Marley daria ainda muitos outros frutos – até hoje, aliás, já que estreia em breve Bob Marley: One love, cinebiografia do cantor. Uprising, no entanto, foi o fecho de uma história. E o fim de uma era de canções, turnês, política e celebração, tudo junto e misturado.